segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

8 - SIM, HÁ LONGE E HÁ DISTÂNCIA...


Um lago de um verde intenso, ladeado por carreiro salpicado de árvores frondosas e seculares…
Por baixo delas, como que salpicados e de quando em quando, uns bancos de madeira.
Um deles, onde costumo sentar-me, diria que onde costumo pensar-me.
O sol tímido, o céu azul ponteado por flocos de algodão aqui e ali, tu e eu, nesse meu banco preferido.
Tu sentada, eu deitado, a cabeça no teu colo, olhos fechados, só este momento existe.
Afagas-me o cabelo, enleio-te os caracóis, um a um, deliciado pela sua maciez, curvas-te para que lhes sinta o cheiro.
A respiração, quente, no meu rosto, enternece-me, olho-te fundo nos olhos, ofereço-te a boca, que se une à tua num longo beijo terno, doce.
Abandono-te os caracóis e divago … o sol brilha e aquece-nos, mansinho …… e … sabendo quanto de impossível nos separa, entreolhamo-nos cúmplices, sem que o digamos, trocamos essa realidade pelo sonho do momento.
A impossibilidade parece-nos um mito de que desdenhamos. Recusamos aceitar um mundo tão curto e simultaneamente tão extenso. Um mundo nem feito para nós nem à nossa imagem ou semelhança.
É agreste este mundo, cresta-nos toda uma vida, todo um futuro.
Nem é mundo que queiramos, nem vida que desejemos, sabemo-lo.
Tão bem o sabemos que tudo fazemos para o ignorar e, quanto mais nisso teimamos mais dele parece aproximarmo-nos. Ilusão.
Quão gritante e desesperante ilusão.
Estendemo-nos as mãos num gesto derradeiro que forças ocultas recusam que, até neste sonho, se concretize.
Frustrante, tão frustrante quanto o calor desse sol imaginário sob o qual buscamos comprazer-nos neste dia tímido de céu azul.
Nele não pontilham já flocos brancos, algodoados, antes castelos, brancos, negros, cúmulos, nimbos, e prenúncios exasperantes de dias jamais cumpridos.
Não sonhes, não sonhemos, recusemos sonhos, ilusões, devaneios.
Cada um de nós tem um caminho a seguir, um silício, cumpramo-lo, que se cumpra na dureza dos dias, do tempo e vida que nos resta, que o soframos na mesma coragem intimidade e segredo com que guardamos para nós, e aceitemo-lo sob a força desta frondosa árvore cuja sombra os nossos sonhos acoita e, porque embora o não queiramos, sim, aceitemos que afinal há longe e há distancia, reconheçamos quanto de impossível nos separa.
Aceitemos este mundo curto e extenso, nem feito para nós nem com espaço para que nos cumpramos.
Sonhemo-nos como quando a tua respiração quente no meu rosto tanto me enternece, me leva a olhar-te no fundo dos olhos, beijar-te terna e docemente, e, num longo e aconchegado abraço, chegar a mim o teu peito arfando, no qual me perco e afogo enquanto as mãos me vogam pelas tuas coxas quentes e sedosas, as quais apertas como quem prende o futuro e o desejo numa avidez não saciada, exasperante, e me solicita que avance e te descubra.
E é quando te soltas e me aceitas que me perco deslumbrado, extasiado na premência de ti e de mim, te percorro suavemente as curvas dessa imagem que me tolhe, me tolda os sentidos, e te sinto acariciando-me o peito, a tua boca sugando-me num ímpeto que me esforço por devolver-te, tremendo de emoção ao afagar-te, sôfrego, os seios repentinamente endurecidos, cujo odor adivinho enquanto dos meus dedos por ti passeados colho o cheiro inebriante da tua oferenda, qual dádiva sacrificial de quantas promessas juraste e jamais cumpriremos, porque afinal, e por muito que o neguemos, há longe e há distancia.
Refreemos sonhos e desejos, ilusões, sentidos e emoções, travemos promessas e esperanças, e, sabendo quanto de impossível nos separa, recusemos cumplicidades, reneguemos o momento e sonhemos a realidade.
Cada um de nós tem um caminho a seguir, sigamo-lo nesta ilusória intimidade por partilhar e cumprir, conscientes de que o pouco que de inolvidável possuímos jamais poderá ser esquecido por tudo a quanto platónicamente aspiramos.

Aceitemo-nos, cumpramo-nos na certeza do que somos e temos, porque ainda que somente em sonhos, nos pertencemos.


domingo, 30 de janeiro de 2011

7 - SOMENTE OS OLHOS...

Olhos vermelhos, carregados, inchados, só o cansaço te foi visível ?
E o peso acumulado de sonhos desfeitos ? Traídos ?
De frustrações assumidas? O cansaço de tantos fardos carregados…
Não lograste alcançar ? 

E os meus olhos ?
Mais é o que escondem que aquilo que mostram não é ?

Mas tu não sabes, e por eles tentas descortinar-me a idade ?
Olhando-os ? Medindo o grau da cor que carregam, como quem, numa feira, esquadrinha cautelosamente os dentes de uma mula que qualquer cigano venda ?

E eu feliz, escondido nestas olheiras mas feliz, rindo do mundo, desse mundo que aprendi a não tomar a serio mas para o qual me faço parecer, ou… não me perdoariam a ousadia, sei-o, não me perdoarão o desprendimento das coisas terrenas, o alheamento aos pormenores comezinhos que prendem, prendem ?

Vidas vulgares, fúteis, cheias de nada, impantes de vazio !

E eu sorrindo para mim mesmo apesar das desilusões, também as tenho, mas saboreando a vida, ainda que esta tenha duas faces, como qualquer moeda, sabendo que sem uma a outra nada vale, é falsa, por isso sei dar valor a cada momento, a cada minuto, como se único, e fruí-lo, porque será pago, ser-me-á cobrado, como tudo na vida, o reverso, a outra face, e só quem está para se dar receberá, apesar dos custos, da cobrança, da hora do acerto, por isso este coração enorme, devastado, devassado, ferido, cicatrizado, contudo cada vez maior, cada vez mais dado, oferecido, e quanto mais oferecido e dado mais se agiganta, feliz, contente, jamais saciado mas permanentemente em paz, em dádiva, em oferenda.

E
é pelos olhos que me perscrutas ?

Que coisa mais tola, abre-me antes o peito, olha-me, vê como sou, ficarás maravilhada, assombrada, talvez siderada.

Não presa, não estupefacta por bater ainda neste ritmo certo, rimado, mas surpreendida com a sua grandeza, generosidade, porque apesar dos remendos, o seu acolhimento, magnanimidade, a sua invariável batida, o modo repentino como bateu acelerado ao teu olhar, ao teu toque, á tua observação.

E, fora as marcas que observaste, não recordo já os maus momentos, nem recordo esquecer os bons por um segundo que seja.
E vivo sem tormentos, uma vida plena, feliz, cheia, preenchida, uma vida !

Eu tenho uma vida sabes ?

E adoro-a, e adoro-me, e desmesurada esta auto-confiança, este amor-próprio, esta auto-estima, e o ego inflado quanto baste, e nem um bar a mais, e nem um grama a mais, e tanto que me falta, e tanto que não tenho, nem invejo, nem procuro.

Espartano no ter, estóico no ser, vivo feliz, saciado, tenho uma vida sabes,? Vivo !

E não me chega o tempo, e sobra-me disponibilidade, como o Cristo-Rei, braços abertos, sim, sou eu !

Verdade que sempre cicatrizando feridas, verdade que sempre sorrindo á vida, e os olhos ?

Ah,! Os olhos,! São tudo para ti os olhos ?

Mas nada mais para mim que não um espelho opaco desta alma em permanente agitação. Vivo de agitação, vivo para a agitação, não consigo viver sem ela! Sabias ?

E nada viste,? Ao menos a cor,? A pupila dilatada,? Retraída,? E nada mais viste,? Que pena, que lamento, que ironia estas janelas do mundo se fecharem quando as olhas !

Mas viste o cansaço,? Notaste o cansaço,? Bastou-te ?

E então,? Contente,? Feliz,? Bastou-te,? E conclusões ? 
Posso sabê-las ?
Saber quanto ficaste longe da verdade, saber quão afastada estás da roda da vida…

Ah,! E que dizes da sobriedade,? Do tino,? Do juízo ?

E de tantas dessas merdas com que durante anos te encheram a cabeça !

Aposto as não viste nos meus olhos pois não ?

Ah! Ah! Ah! Há quantos anos alijei essa carga !

E crê em mim, só então o sol !

A luz !

A claridade !

A vida !

A plenitude !
Eu!

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

VOAR PARA SUL, DE LUANDA A XANGONGO ...

Noratlas da FAP numa operação logistica. 


Apesar de saturados devido a tantas horas de voo encerrados dentro do Noratlas da FAP* o moral era elevado, constituíamos um grupo coeso de instrutores, formadores e conselheiros militares em diversas áreas e acreditávamos piamente estar contribuindo para o nascer e fortalecer duma nova e grande nação, com a qual repartiríamos a história. Com origem em Luanda o voo não seguiu a rota normal, aquele voo pretendia-se inexistente, estaria no segredo dos deuses e toda a gente o desmentirá ainda hoje. Os problemas começaram ao levantar voo com dificuldade em Luanda, a aeronave carregava além de nós, bidons de combustível, mantimentos, medicamentos, munições, armamento diverso, explosivos, etc, por isso após cada escala e descarga o espaço a percorrer para a lenta aeronave se erguer nos ares encurtava, sobrando espaço para distendermos as pernas.

Evitámos o rumo e a rede de aeródromos já construídos por razões lógicas e rumámos a Bimbe no Huambo, saltámos dali para Benguela, seguidamente para Lubango, no Huíla, e muitíssimas horas depois aterrámos finalmente numa pista improvisada em Xangongo uma vilazita junto ao Cunene e que vinha sendo flagelada a partir do sul. Ao invés do rumo normal, mais rápido e mais directo Luanda, Ngunza, Benguela e finalmente Lubango junto a Lobito, zonas já servidas de aeródromos, ainda que com piso de terra mas permanentemente observadas por pisteiros, batedores, espiões e traidores de toda a índole, ziguezaguámos pelos céus afim de despistar olhares excessivamente curiosos. Valeu a todos o Noratlas ser o jeep dos ares e aterrar em qualquer lugar sem dificuldade, nesse aspecto aquele avião era pior que uma cabra. *

Éramos jovens, idealistas, e enquanto o dinheiro nos deslumbrasse e fosse caindo o trabalhinho não ficaria por fazer, podiam confiar em nós, eramos gente de bem e doravante, p’la primeira vez e solenemente empenhados em defender os pobres, os fracos e oprimidos das garras afiadas do capitalismo mundial, com assinatura em contrato, especialmente agora que também na metrópole o capitalismo e o fascismo tinham sido eliminados, precisamente por nós, os militares.

De Indiana Jones a Rambo ** todos os espíritos nos animavam, havia em nós uma sede de acção e uma sede de justiça, todos se sentiam o Super-homem, contudo não demorou que esse estado de espírito iniciasse um processo de acumulação de dúvidas, dívidas nunca tivemos e nunca ninguém as teve para connosco embora por vezes a burocracia ditasse períodos de meses, ou até um ano em que o pré não caía nas contas, ou em que nenhuma possibilidade tínhamos de tal confirmar e, não fosse a preocupação diária em mantermo-nos vivos num vespeiro cada vez pior e tal teria bastado para nos tirar o dormir ou democraticamente termos declarado uma greve. 
Noratlas da FAP aguardando abastecimentos.

A democracia é para todos, e como por cá se dizia e diz, “ou há moralidade ou comem todos” ou então uma versão mais popularucha, “ou todos direitos ou todos marrecos” os angolanos lutavam pelos seus direitos, nós pelos nossos e cedo aprendemos haver direitos que só à força se adquiriam, todavia armas e munições era coisa que não nos faltava, embora nunca tivesse sido necessário resolver qualquer destas situações que se metiam insidiosamente entre nós a tiro.

A população do sul de Angola era em simultâneo a menos politizada, menos arrebanhada para as hostes partidárias das várias guerrilhas ou facções, movimentos que se congregariam em volta dos partidos, sendo também a menos culta, com pouca ou até nenhuma escolaridade, o que muito havia de dificultar o nosso trabalho dado nos calhar ser também a mais heterogénea que imaginar possamos, cada um dos formandos com seu dialecto, nem entre eles mesmos por vezes se entendendo. Portanto poderão imaginar, e aquilatar quão difícil se tornava transmitir-lhes ensinamentos teóricos, quer técnicos quer práticos.

O nosso vocabulário teria que ser mínimo e descer a um nível mais baixo que o deles se nos queríamos fazer entender. O português falado era uma espécie de resíduo assente nos cérebros ao longo de quinhentos anos de colonização, incipiente, arcaico, prenhe de deformações, pelo que seria inútil socorrermo-nos dele, como inútil era o uso de palavras caras como circunspecto, inferir, inerente, deduzir, e de vocábulos de idêntica índole, mais valeria falar-lhes chinês numa data em que nem os chineses sonhavam ainda sequer o papel que viriam a ter em Angola.

Esta limitação imposta pela linguagem, estendia-se em menor grau à formação prática, ao manejo e compreensão das armas e da complexa mecânica a elas associada não lhes colocando problemas, nem tão pouco a compreensão do arco balístico descrito pela granada do morteiro, arma em que poucos deles não seriam peritos, e de um modo inato que nos surpreenderia. Muitas vezes discutimos entre nós se essa facilidade de entendimento não derivaria do uso indígena do arco e flecha e da lança, armas em que de modo empírico digamos, os obrigava desde cedo a compreender e aprender a relação entre a distância ao alvo e o arco descrito pelo projéctil, flecha ou lança. Era inegável ter que haver ali uma relação de causa efeito, os pretinhos não nasciam com pré-disposição para o manejo do morteiro, ninguém nasce. 

Esquadrilha de Noratlas sobrevoando o Cunene perto da foz.

Aos poucos fomos ganhando a sua confiança, aos poucos fomos ganhando o conhecimento dos seus dialectos e eles o domínio do português, aos poucos as barreiras entre nós foram-se esbatendo, então, e só então arriscámos as aulas práticas e o que isso implicava, sair para o mato, ler pistas, perseguir inimigos, enfrentá-los investindo ou sustendo os seus avanços, usando e aplicando as teorias aprendidas e socorrendo-se do conhecimento adquirido nas aulas, flagelando-o e evitando que nos fustigasse, sendo neste momento que duas verdades indesmentíveis e incontornáveis nos assolaram a nós, instrutores, a nós parte neutra, a nós advogados do diabo.

Contrabalançando os problemas de linguagem e de comunicação apontados, e nada despiciendos se nos lembrarmos como a comunicação é vital debaixo de fogo, ou numa ofensiva silenciosa e concertada contra o inimigo, estou a lembrar-vos que as nossa vidas e as vidas dos demais dependiam disso, de nos entendermos e fazermos compreender, sem o que nada mais restaria que confusão, asneiradas, gritaria, caos e mortes. Mas, adiantava eu que contrabalançámos essa nada insignificante desvantagem com a habituação prática à linguagem gestual, linguagem esta que desenvolvemos até à exaustão em combate e quase nos permitia trocar impressões, dar e receber ordens e actuar sem um pio, sem abrir a boca, sendo esta mímica o corolário da camuflagem perfeita e que nos colocava próximos da invisibilidade, tornámo-nos quase invisiveis e infalíveis e, quando em grupo actuávamos na prática como um homem só mas potencialmente perigoso, destruidor e letal.

Outro aspecto que ajudou imenso a contrariar as dificuldades de linguagem e comunicação apontados foi sem dúvida nenhuma a disposição inata desses jovens indígenas para a luta, caçadores exímios, peritos na camuflagem e na furtividade, muito nós instrutores aprendemos com eles, em especial no tocante à leitura de pistas e tudo que fizesse parte da especialidade de batedor. Eram incríveis os seus dotes, o que os seus olhos viam, e mais incrível demonstrou ainda ser a explicação dada ou formada a partir de sinais ou pistas por eles observadas. Eram pisteiros incríveis, um cão não faria melhor e sabemos como os cães e o seu apuradíssimo faro são eficientes em qualquer busca, análise ou detecção. Eram absolutamente surpreendentes.  
Noratlas parqueado num aerodromo do sul de Angola. 

A par dessas qualidades guerreiras, eram motivados e aguerridos, sim, como se inda acreditassem que bala de branco não mata preto, ou bala de preto fossa não matasse preto bom. Eram voluntariosos, perspicazes, inovadores, empreendedores e eficazes em tudo quanto a guerrear respeitasse, incluindo as mulheres. Diga-se em seu abono muitas delas não ficarem devendo nada aos homens, tendo vindo uma dúzia e meia delas a ocupar lugares chave ou mesmo a comandar mais tarde destacamentos autónomos que atingiram um grau de operacionalidade e eficácia de fazer inveja a muita gente. Guerrilheiras houve que a história de Angola forçosamente terá que respeitar. 

        Verdade não possuírem, nem elas nem eles consciência ética ou moral idêntica à nossa, eram gente duma cultura diferente, sobretudo de umna cultura submetida a esta guerra havia demasiado tempo o que simplesmente atropelava os valores mais sensiveis devido à premência de sobrevivência. Enquanto a nossa cultura/civilização era balizada por preceitos civilizacionais de séculos, ou milénios, de que a Convenção de Genebra era o vértice, a sua ética ou moral estavam fortemente condicionadas pela sobrevivência, para a pátria mãe, mui viradas para a mãe terra, a mãe natureza, e do ponto de vista ambiental respeitavam-na como ninguém mais, porém eram pouco mais que insensíveis pois estariam mais perto do apelo da selva caso se vissem envolvidos em combate ou numa guerra, áreas em que eram sumamente eficazes, ou, caso se tratasse de enfrentar um inimigo, situação em que seriam implacáveis, irredutíveis e impiedosos, a tal ponto que, gradualmente, fomos obrigados a incutir-lhes respeito pela vida humana, fosse ela de amigo ou de inimigo, vida aliás nascida em África como reza a história, tendo-nos valido o facto de, a par de toda esta "selvajaria" em que nasciam e viviam, serem igual e excessivamente submissos aos poder, aos poderes, aos poderosos, ao branco e ao seu saber, ao branco e ao seu poder. (Continua).



** Rambo é o personagem do romance "First Blood", escrito por David Morrell em 1972 e posteriormente adaptado ao cinema. The Young Indiana Jones Chronicles, narram as aventuras desse personagem durante sua juventude ao lado de seu pai. A saga foi editada pela Marvel Comics que já a havia publicado numa série em quadrinhos, BD, muito antes de em 1983 ter vendido a sua adaptação ao cinema


Nota: Este texto foi extraído de uma tese de mestrado que o processo de Bolonha tornou inútil e portanto abandonada e transformada em memórias de guerra. Faz agora parte de um todo muito maior, procura retratar a realidade, não está sujeito às vicissitudes do politicamente correcto, narra factos, não faz juízos de valor nem alimenta preconceitos. Branco é branco, preto é preto, negro é negro, black é black, selvagem é selvagem, cada vocábulo será utilizado pura e simplesmente de acordo com o narrador e a sua exclusiva opinião quanto à situação em que melhor se insira no texto.

A ANGÚSTIA DO GUARDA - REDES ANTES DO FIM DO JOGO ...


Foram momentos únicos e o culminar de meses de receios fundados ou imaginados, pelo que quando a enfermeira mo mostrou sorri, ali estava o fruto da tanta preocupação, dias, semanas, meses, sem um defeito, todo escuro e narigudo como o avô paterno, uns pés enormes, já não mo trocariam, fui descansar de semestre e meio de apreensões, sim, que outro nome dar-lhes ?

Preocupações, vagos receios, pressentimentos ? Durante meses o Toninho não me saíra da cabeça, um primo nado deficiente profundo, daí o alívio agora sentido. Porém passadas duas décadas voltaram a assaltar-me as mesmas borboletas no estômago, não, não eram paixões, eram borboletas mesmo, apertos, o estômago contraindo-se em si, enovelando-se. Dizer-vos quando terá sido que ela me deslumbrou pela primeira vez é-me impossível, pois não recordo dia algum que não me tenha surgido como sempre, como uma aparição, e agora isto. Fora essa impressão incomum que me cativara primeiro e depois encantara para sempre.

Por isso agora esta dor, esta desorientação dos olhos que falam, que interrogam, que apoiam mas já não prometem por não o poderem fazer, só Deus poderá julgar, e submeter ou libertar. Foram essas as janelas da alma a que nos debruçámos ignorantes do porquê do devir, da sina, do fado, ignorantes do caminho a seguir, ignorando as borboletas, os apertos no estômago, eu esquecido daquilo em que me viciara, dos seus carinhos que não dispensava, antes procurava e alimentava como coisa natural e simultaneamente fulcral ao nosso sustento e agora isto, por esta é que eu não esperava.

Recordo que quando o mundo me assustava ela ali estava, inamovível, indispensável, imperecível, nutrindo as minhas esperanças, diluindo-me as dores, sossegando-me, falando-me, e o que ela adorava falar, falar de história, mas poderia ser qualquer outra coisa, sei lá, matemática, economia, física, ou geografia… eu desta vez fingindo ouvi-la, escondendo o embaraço, a dor, escondendo esta como escondera a precedente, camuflando o lamento, eu em conflito com a lógica a razão e a realidade, enganando a formalidade que a minha exposição e transparência denunciavam. 

Eu pressentindo aproximar-se o momento nunca pensado e sempre temido do fim desta história a dois que nos tem animado e fundido num só espírito, num só desejo, numa só vontade. Sinto-o sempre que à noite te abraço e o teu respirar cansado me assusta, pressinto-o quando te noto acordada rebobinando o passado, sinto-o porque voltaste a caber folgada no meu abraço, sinto-o por não te sentir preencher como dantes a conchinha do meu regaço, sinto-o porque as tuas coxas não comprimem já a minha mão como de antanho ou porque te tornaste leve no meu colo.

Verdade que nunca te prestara tanta atenção como agora, é do choque, é a reacção digo eu. E recordo como vivias, como falavas, tentando monopolizar tudo, aludindo às mais-valias, cotações e outras equações ligadas à economia, o câmbio, as acções, os discursos, as vontades. Por vezes nem te ouvia, tal seria naufragar no teu encanto de sereia, precisamente o que eu não queria. Porém, o que eu gostava ouvir-te falar de economia … ou qualquer outra coisa, história, matemática, física ou geografia… Estirado, pés fora da cama, inalando indolentemente um cigarro, debaixo duma manta curta, destapando ora os pés ora os ombros. 

Agora ambos sabemos e estamos cônscios serem os últimos tempos, dias, semanas ou meses quem nos porá à prova extraordinariamente apesar das borboletas no estômago, não são paixões, são borboletas mesmo, apertos, o estômago enrolando-se. O medo de fazer as malas, arrumar a vida, abalar, reclama o melhor de nós, quer sejamos o passageiro ou o bagageiro. Foi assim naquele dia, meticulosamente, como sempre fizeras com tudo arrumavas a vida afim de não deixar assuntos pendentes. A desorganização exaspera-te, a incapacidade do país aflige-te, a superficialidade das pessoas consterna-te. Questões de princípio em ti inculcadas há muito e agora, alheia a tudo que não seja pensado e ponderado ao pormenor, detestas ainda mais o improviso e como tal acautelas cenários possíveis, buscas soluções e fazes-me recomendações, a mim, que tudo faço para me subtrair à alçada da razão retinindo-me na consciência como uma campainha e alertando-me para a ameaça da mortalidade ou emergência que receio, temo, e atentamente vigio por paradoxalmente me parecer desta vez a ceifeira não admitir contradição.

Tenho medo, sinto medo, não irei contar-te de mim, nem tão pouco falar-te de mim, muito menos queixar-me, sei quão detestas lamúrias, não fazem parte do teu feitio, nem do meu, como tu interrogo-me, quem, quem irá depois cuidar de mim ? Será isto egoísmo ? Pela primeira vez na vida forço-me a esconder de ti estes olhos gotejando lágrimas mas a verdade é que me sinto abafado, e só a ideia de perder-te me provoca uma insegurança que esta falta de humor tão imprópria de mim não consegue disfarçar nem esconder por mais que eu tente.

Sim, é ressentimento e dor, por não conseguir esquecer-te quando tu falavas e eu ouvia, fosse história, ou geografia o que tu dizias à pressa, como sempre, como tudo, como se o tempo pudesse acabar-se-te, ou partisse eu, a quem a tua conversa seduzia como feitiço sobre mim caindo e revolvendo numa inquietação obscena. Nem sei quanto nem quantas vezes te relembro focando a geografia, contando-me dos lugares exóticos onde em puritanos sonhos tu nos vias, eu ouvindo e sorrindo nostálgico numa ternura impaciente. Temo sinceramente jamais te ouvir falar de geografia… ou d’outra coisa, sei lá, geometria, economia, álgebra, trigonometria …

O futuro ficou repentinamente d’uma estreiteza aflitiva e opressora, e qualquer contrariedade despoleta em mim uma onda de ansiedade e tristeza cuja emoção me fragmenta os sentidos e o ego. Tento não sucumbir à percepção paranóica das coisas e das pessoas, agora parecendo-me perigos reais ou situações a temer e, inda que saiba quão circunstanciais e imaginárias são essas temidas sensações de sufocamento, o peito apertado, a insegurança vívida, a falta de humor, a revolta e os ressentimentos, não é por isso que subjugo a dor, iludo a solidão e recuso a tua morte. 

Quantas noites e estremecimentos padeço só eu sei, quanta inquietude apreensão suporto veremos, quanto martírio me torturará ainda não recusarei, tudo que seja aflição, agonia, tormento e tribulação colocarei na conta do deve e haver desta catarse que abnegadamente aceitei mas pela qual ergo os punhos ao céu. Sim eu sei, é o preço da minha condenação à liberdade, como homem estou condenado a ser livre, vivo e respiro o livre arbítrio, sei-o agora, conheci agora o seu preço, o preço ou o valor desta condenação irrevogável à liberdade que todo o homem paga por ser condenado a ficar livre.

Munida de meras palavras, falaste-me um dia da eutanásia, do livre arbítrio, do conflito entre o Id o Ego e o Superego, da necessidade que tinhas desse equilíbrio entre o sujeito que eras e o social em que te movias, lembro-me como se fosse agora, lembro-me que nunca mais no meu espírito houve paz, condescendi e calei-me, disseste-me com um sorriso:

- A vida é um palco, sê.

Tornei-me egoísta,

e desde aí vivo no medo, de ficar só, de perder-te.
  


UMA BICA CURTA, O CAFÉ FORTE * por Maria Luísa Baião...


Nunca a tristeza me bateu à porta. Hoje estou triste. Hoje preciso de ti. Não suporto este silêncio ameaçador fazendo o universo parecer em mudança. Nunca pressentira tal, sinto, mais que nunca necessária, a calma a que me habituaste, a calma que me habita a alma, sempre. Mas hoje preciso de ti, de uma bica curta, o café forte, que coloque de novo em movimento este relógio parecendo parado no tempo, para que o tempo se repita e reencontre de novo o rio manso cujo destino traçámos.

Hoje preciso de ti, não consigo viver este espírito. Entre mim e a chuva esta janela, medito, e na memória a espuma das ondas, dias plenos de festa, não razoáveis, mas todos dias de festa que em mim provocam frémitos, ainda. Hoje preciso de ti. Rebusco recordações coloridas, um jantar, uma vela, o brilho da lua, a tua voz quente, sempre. Eu sei meu amor, eu sei, conheço a cadência das horas felizes passadas contigo, afastando sombras do meu coração. Talvez saudade das palavras eloquentes com que nunca me faltaste, dos hábitos de ternura de que me tornei carente.

Hoje preciso de ti, não dispenso a tua presença, só a tua companhia basta, afasta tristezas. Como foi, como sempre foi, ano após ano, não esqueço. Através de ti entendi o mundo, conheci o amor verdadeiro, esse amor que me tornou a vida feliz, me suavizou os dias, me deu a conhecer as carícias da noite. Hoje preciso de ti. Que me passeies terna, lentamente, e me recordes quão queridas tantas promessas já cumpridas. Uma bica curta, um café forte, o brilho das estrelas, a tua voz quente, sempre. Meu amor eu sei, não sei se te diga, se te conte, como foi quando me mostraste o céu, me deste a lua, e me chamaste mulher. Não esquecerei jamais essa revolução tranquila no meu ser, de como aprendi a ler e imitar o voo livre das aves.

Hoje preciso de ti. Aprendi a vida graças a ti meu amor. Ressoam ainda em meus ouvidos os dias em que te tornaste luz, te ergueste como um sol, notei como te apagaste e ainda apagas, sempre que é necessário que o saber brilhe em mim. Sei a que devo este sorriso perene. Como um raio solarengo e luminoso descansaste no meu colo e, na memória, ficou-me o teu rosto, o teu gesto, o prazer de te tocar. Não é um amor em braille, nem a vida é um ballet, mas fazes-me sorrir, pois não recordo dias negros, mas sim e sempre o desejo.

Uma bica curta, o café forte. Que me traga o sabor de coisas passadas e bonitas, que me traga fortes as recordações de ti, de nós. Hoje preciso de ti, revisitar recantos doces, desvendar de novo os mistérios que o fogo encerra, os corpos como marés, fazendo tinir fios de lantejoulas e conchas. Um café forte, a bica curta, julguei precisar de ti hoje. Tornaste-me o que sou, fizeste-me decidida, forjaste-me numa amizade que me preencheu a vida, o passado, o presente, e decerto o futuro. Foste tu quem me ajudou a ser adulta, a quebrar regras, a distinguir, entre outras, cretinice e idiotice no racionalismo ébrio que em mim inculcaste.

Já não preciso de ti. Uma bica curta, o café quente, e para ti estas palavras. Quero ver-te sorrir também, sempre, tu, eu, nós. Transgredir e rir, rir e transgredir. Assim, sempre, sim e sempre o desejo.

Não preciso de ti, a tua resposta chegou enquanto alinhavava estas linhas. Assunto resolvido. Uma vez mais te agradeço. Tens uma bica curta, um café forte esperando, comigo, agradecida, a gentileza que sempre me votaste, quase religiosamente, ardentemente, sempre. Chamaste-me um dia mulher, e eu mudei. Acordei. Reconheci desde aí capacidades que nem sabia existirem em mim, e se já me agradeceste um dia o que fiz por ti, é hoje a minha vez. Já não preciso de ti. Uma bica curta, o café quente, o meu coração ainda bate com a cadência de outrora. Já não precisar de ti foi o melhor que por mim fizeste, e, oh meu Deus que encantamento não ser capaz de te dedicar um lamento. Foste capaz de tornar-me a vida assim !


Vem meu amor, aquieta-me, aquieta-te, junto de mim !  

PUBLICADO POR MARIA LUÍSA BAIÃO EM DIÁRIO DO SUL, KOTA DE MULHER 2003                                                                                                                                                                                                                                                           
                                     

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

6 - DESENCANTO...


Quebrou-se o encanto, e quebrado esse que resta? Fragmentos. Fragmentos de uma imagem que construíra pedaço a pedaço, e agora vejo como reflexos dispersos por um espelho partido cuja soma jamais fará um todo. Afinal não mais que discrepâncias forjadas numa dicotomia unívoca, resultante de uma visão diacrónica artificialmente criada cujo entendimento demorei a traduzir.

Físicos e químicos desvendaram os segredos do infinitamente pequeno e do desmesuradamente interminável. Métodos, processos, análises, deduções, induções e experimentações, o socorro de modernos scanners lograram ver o invisível a seus olhos. Sou mais modesto, vejo o que me é dado ver, por vezes tarde e a más horas mas consigo ver. Outros processos me permitem contemplar o que aparentemente não será visível. Demoro, é certo, a perceber o que me é exposto, a juntar, peça a peça, os reflexos desse espelho quebrado. São jogo de imagens múltiplas num caleidoscópio, mas acabo conseguindo, também eu, e sem outro auxilio que a reflexão, ver o invisível.

Há momentos de luz no meu cérebro, e da luz o verbo, que, alicerçado em pequenos mas reverberantes clarões, pormenores aparentemente insignificantes, permitem todavia uma análise sincrónica das imagens reveladas por esses esparsos estilhaços do espelho partido que, qual prisma poliédrico, em minha mente tomavam interrogativa forma, agora real, dessas imagens dispersas e aleatoriamente captadas. Pudera eu então dizer que te vi, que te vi finalmente na tua verdade, na tua unicidade, e, lamento dizê-lo, não gostei do que me foi dado ver. Tanto esforço dispendido compondo um jogo floral, esse arranjo de lindas flores que o tempo se encarregou de mostrar, já não viçoso, já não tão belas como à primeira observação, à vista desarmada e ao longe me parecia esse ornato que tanto idolatrei.

Posso agora afirmar com propriedade serem algumas em dúctil plástico, e dele carregarem a ausência de aroma, viço, exuberância, sensibilidade e beleza perene que só a verdade engendra, ainda que transitória, transitória no sentido da renovação, da criação, da metamorfose da vida, e que somente o natural comporta. De nada portanto valem, no caso, fórmulas, teorias e teoremas, conjuntos lógico matemáticos ou racionalismo puro. No ar um olor incipiente que nem as condenadas de Eastwick professaram. Antes um calculismo e uma objectiva frieza que, não me tendo convencido, me lançaram em guarda e abriram o baú das dúvidas, qual caixa de Pandora que me será impossível conter, aberta que foi, e activada ou executada a profecia.

Mentira tem perna curta. Grilhetas e prisões que só Vampirella ou Magda Patalógica conscientemente para si criaram, não convencem, meros artifícios que, actualmente, insuficientes se mostram para acordar qualquer príncipe encantado…
  

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

5 - SIM, AMO A ARTE............................


         Era a minha primeira aula de História da Arte, e contra os meus princípios ia chegar atrasado,  bem atrasado. 

Entrei, na vetusta sala não se fazia sentir o imenso calor que grassava cá fora, e o Verão não chegara ainda, só as grossas paredes da velha Universidade nos protegiam da canícula. No ar, mau grado o considerável número de alunos, pairava sobre todos o aroma fresco de um perfume de mulher.

Sorrateiramente esgueirei-me para um lugar vago na primeira fila. Sempre procurei os primeiros lugares, ainda hoje assim sou. A professora, uma jovem mulher, de imediato me prendeu a atenção, dela emanava o suave odor que assinalei, era alta, esbelta, linda. Vestia de forma simples, uma blusa branca, de linho, a que devido ao calor ou a um daqueles gestos ensaiados e estudados de mulher, libertara os botões do decote. Calças justas de ganga e sapatos rasos, vermelhos, completavam o quadro.

Dissertava fluentemente, numa voz agradável de timbre levemente grave, num porte e com uma segurança que me cativaram. A páginas tantas dobrou-se sobre a secretária, talvez para escrever o sumário, não posso precisar já, e quando o fez deixou antever fugazmente dois seios pequenos, redondos, alvos. 

Não sei se pela altivez, se pelo seguro domínio das matérias e do discurso, se pela atmosfera grave e séria que se respirava naquela sala, naquela aula, não sei se foi o suave perfume que pairava no ar ou um relâmpago de erotismo o que me arrebatou. Ainda hoje o não sei passados que são trinta anos, o que sei é que me tomou de assalto uma paixão profunda, instantânea e fulminante, tão avassaladora quanto impossível.

Obriguei-me a tantas perguntas quantas as respostas que ficaram por achar.
                 O rio que passa sob os nossos pés não traz jamais a mesma água, e não volta nunca atrás, leva sim sentimentos dispersos, como sonhos submersos sob as águas calmas, arrastando desertos inteiros, raízes de ilusões.

Havia que sublimar essa pulsão que, para meu espanto, ameaçava romper-me o peito e o pranto, pelo que nesse semestre e nos seguintes, não faltaria a uma única das suas aulas e empenhar-me-ia solenemente nas matérias.

Abracei por isso milénios de arte e história, testemunhos, estilos, movimentos influências e tendências, mergulhei apaixonadamente na escultura, na arquitectura, na pintura, na literatura, percorri todo um calvário e venci.

Inquietação calada, onda acabada, assunto encerrado, livro fechado, sonho que nasceu e sumiu, adiante. 

Valeu a pena todo esse sacrifício, Deus foi indulgente para comigo ajudando-me a cauterizar a ferida aberta. Curei-me, cresci, aprendi a lição, mortifiquei no corpo essa sede no deserto, e ontem, e hoje, e sempre que a vejo, lembro porque amo a arte e aprendi a dominar o desejo.

Pela penitência apaguei o archote que ardia no meu peito, trespassei emoções, transformei em vitória uma derrota ao deitar ao chão a chama que incendiava o grito mudo que me sufocava.

" A todos o tempo cobra na vida alguns instantes, breves, de desvario, inquietação, em que nos estoira na alma um grito, um olhar delirante, um sobressalto, em que o sonho ou a vida se insinuam num vazio, em que bate forte o coração e se abate sobre nós a grande sombra da noite e a alma se solta conspirando paixões, desenhando e pintando no ar a aguarela os nossos mais profanos desejos. A gente baloiça, vai morrendo o quebranto, tudo se esquece, tudo se cala, o que foi passado, passou-se, rezam-se umas ladainhas e salvé rainhas e a caminhada segue, onde nasceu acabou, e logo ali se enterrou, num torvelinho de encomenda para uma alma que se remenda."  (by Fausto Bordalo Dias)

Façamos do sonho um esquecimento, e ergamos à arte um monumento… 
...



4 - NÃO, NÃO ME VISTE...



Não me viste.

Cruzaste-te comigo e não me viste, passaste rápida, como sempre foste, rápida, impetuosa, dinâmica, sem tempo sequer para ti, sem tempo para os outros... 

Não te teria visto não tivesse sido o brilho radiante dos teus olhos, grandes, pestanudos, belos. Lembras-te ?

Lembras-te de quando brincava com a beleza deles, a que meigamente chamava as minhas contas de vidro? Não lembras. Se calhar mais ninguém, alguma vez te lembrou esses olhos como lindas contas de vidro, com as quais eu brincava enquanto tu nada, tu alheia, como se essa beleza te fosse um direito adquirido, tornado hábito, vulgaridade.

Recordo-te indiferente quando chamados á baila, eles brilhando, e tu nada, numa exuberância desinteressada que me exasperava, a mim, então um homem imaturo, inseguro, tímido, diria que ingénuo ainda, inocente mesmo.

Eu sempre hesitante, sempre temendo assanhar-te no receio de um dos teus repentes, no receio que, numa das tuas tão frequentes quanto habituais birras e explosões de orgulho, momentâneas mas consequentes, te fosses, airosa, atirando a asa da mala sobre o ombro, a mão afastando o cabelo da testa e dos olhos e estes lançando-me um olhar vago de indolência fingida mas alheia a tudo, a mim, a ti, ao desfecho, para meia hora depois estares telefonando;

- Não sei o que me passou pela cabeça, passei-me, devia estar doida de todo, perdoa-me querido, quando podemos ver-nos de novo ?

 E eu aparentando uma calma que não tinha, eu numa atitude meiga, terna, paternal quase, perdoando, perdoando-lhe mas na realidade com uma vontade vera de a esganar, frustrado, sabendo quão difícil era estarmos juntos, vermo-nos.

A leviandade dela quebrava-me a paciência, mas pelos olhos, aquele lago onde me perdia e afogava, perdoava-lhe tudo na esperança de jamais se acabar aquele jogo em que os olhos, quais contas de vidro fulgurantes, me tornavam irreal o tempo, aparente a rua, o mundo reduzido á contemplação deles, vogando naquele mar de cabelos aveludados em que eu era um marinheiro encantado pelo seu cântico de sereia.

Ela pujante, mulher feita, no auge da beleza e, diria eu, de uma leviandade e vaidade sem igual, que simultaneamente adorava e detestava, num conflito interior a que me mostrava incapaz de dar solução, eu, homem feito de uma imaturidade não assumida, primando por toda a inconstância que a incapacidade para lidar com o imprevisto me provocava, e ela isso mesmo, o imprevisto, e toda ela inconsequência e ligeireza, e eu nada, incapaz de tudo, sorrindo para fora e rangendo os dentes por dentro.

Pouco mais recordo hoje que o flash radiante dos seus olhos, ah ! 

E vagamente a Tv ligada, para que o quarto não escuro, para que uma meia-luz coada nos iluminasse e, nos Jerónimos, homens engravatados sucedendo-se assinando um qualquer tratado de uma vaga comunidade, ou clube de ricos, dizia ela, e eu atrapalhado com o colchete do sutiã, ainda hoje atrapalhado com esses colchetes, devia treinar, mas treinando as mãos não me tremem, e nesse momento sempre, porque sôfrego do gozo depois do colchete, louco por me dar e ávido da entrega pela qual anseio, envolto em sonhos e névoas exaladas daquele olhar, desesperado pelo instante que nos junta, nos une, nos irmana na fruição dos raros momentos partilhados...

E toda tu te transmutavas quando eles, quais faróis, se acendiam excitados projectando essa luz calma, trazendo à penumbra do quarto uma serenidade inusual, uma matriz uterina em que nos refugiávamos, numa atitude cúmplice, alheia a tudo menos a nós, cada um sedento do outro, buscando-nos e encontrando-nos naquele ambiente de mar de coral em que flutuávamos esquecidos de nós, do mundo, de tudo e de todos.

Depois, repentinamente, como era teu hábito, davas tudo por terminado, abruptamente, como se aquelas horas não tivessem sido, eu num torpor, a preguiça tomando conta de mim, exausto, cansado, sonolento, sonhando-me dormindo juntinho a ti o sono reparador dos justos, e tu já de alça da mala ao ombro, tu já desviando o cabelo da testa e dos olhos antecipando a partida, na Tv aplausos, aplausos porquê ?

Pela tua partida ?

Ah ! O Primeiro-Ministro assinando o Tratado com caneta de ouro !

Ao fundo os Jerónimos e toda aquela gente que jamais até hoje deixei de ver na televisão, botando discursos, assinando compromissos, enquanto o país se afundava e eu perdia os teus olhos cuja luz maravilhado olhava.

Não, não me viste, cruzaste-te comigo e não me viste, uma passagem rápida, um instante, e na minha mente repentinamente acendido o brilho radioso dos dias passados sob a luz quente e calma do farol dos teus olhos, essas contas de vidro ainda com o mesmo brilho fulgurante de outrora, e tu nada, tu alheia a mim, como dantes, eu um agora outro homem, crestado pelas experiências vívidas das dores da vida, agora seguro, agora extrovertido, agora perdida a inocente ingenuidade dos puros, agora cheio de certezas, firme de convicções, agora a calma em pessoa, tornado ternura e meiguice, e já não em mim frustrações ou traumas, antes valorando o tempo que dantes me parecia infindo, seleccionando momentos, amizades, olhos, eu já de carácter e mãos firmes, contudo, hoje como ontem, a mesma hesitação, a mesma inexperiência, a mesma atrapalhação, os mesmos colchetes que nunca aprendi a manejar.

Não me viste, talvez melhor assim, talvez já nem lembres, talvez nem uma recordação, não eu, não eu que jamais esqueci esse amor pródigo, fogoso e inconstante, que me tornou homem, o homem completo que agora me julgo, mau grado os colchetes…


3 - SEREIA EM NENÚFAR....................


Minha ventura começou com convite de grão-vizir para que passasse férias naquela fortaleza. Desde então, e lembrem que sou do tempo em que os animais falavam, seduzido pela beleza da paisagem e pelo mar azul, por ali me fico a metade do ano em que nos pólos faz frio e no equador calor em demasia.

Não só por isso me avezei aquele lugar, banhado por águas tépidas onde nenúfares perfumam o ar e servem de leito a dezenas de sereias que, como eu, fugindo dos rigores gelados ou cálidos de seu mundo, ali passam igualmente o período estival. Entre elas, uma teve o condão de me encantar com o seu canto. 

Loira, de uma beleza ímpar até para sereias, cabelo caracolado, há séculos troca comigo insuspeitos e cúmplices olhares e intenções, tendo mesmo chegado a deixar livre para mim um dos gigantes nenúfares onde se espraiam, tomando sol, cantarolando e atraindo com o seu canto, depois do poente, navios e marinheiros.

Naquelas águas calmas, prateadas, vi passar ao longo dos séculos navios negreiros, navios piratas e muitos, muitos outros carregadinhos de café… Em cada carregamento o aroma forte do café torna este reino acolhedor, provocando em mim o desejo quando, desta fortaleza de Odemira, vejo as luzes refulgindo e o destino me traz à memória essa sereia.

Espero-a, imaginando os oceanos lindos por onde anda, espero-a, e sonho percorrer com ela esses mares para mim enigmáticos, espero-a e recordo-a em cada lufada carregada do odor forte que até mim chega. O café, as águas azuladas, o mar um lago lindo donde ela emergirá, mais bela que nunca, mais sedutora que nunca, ela linda, eu feliz a seu lado, eu feliz como jamais estivera, como se há tanto tempo….

Por isso a recordo como se ontem, como se hoje, o canto harmonioso, as palavras e os modos de deusa marinha, a delicadeza feminina e simultaneamente diáfana. Sonhando-a sonho o mar numa tarde de solstício, o seu olhar, os seus olhos, o seu sorriso, beijos, carícias, desejos, que eram os meus, o seu corpo jovem, o odor a mar, os cabelos em minhas mãos, ela em minhas mãos e eu, no azul tépido e escuro daquelas águas, cativado com tanta ternura, com os seus seios cheios, túrgidos, lindos, excitantes, ela tão doce, tão querida, tão meiga… eu, velho de séculos, sei-a de cor, ainda hoje a sei de cor...

E jamais um café sem que a evoque, sem que nos lembre, e esqueço-me de o beber olhando-o, desligado do tempo infindo em que perduro, até o beber frio, e se frio… não me queixo, há cafés e cafés, depende do que nos recordem, e então sim, uns sabem bem… outros a nada, outros ainda a saudade e a ausência, a desejo, a ansiedade, a tormento, e tanta coisa nos diz um café, um espelho de água com nenúfares, e jamais me ocorrera tanta coisa coubesse numa chávena de café…  todo um mar florido.

E nesse mar eu, e ela, e todo aquele dia dentro… banhados nas águas do seu mundo. Como de outro modo senão numa chávena de café? Numa simples flor ou numa memória, reminiscência memorável, e fico olhando o fundo, não as borras , que as não tem, mas o fundo, o resto do café bebido, e vejo-a reflectida em cada chávena, e sorri-me, recordando-me o melhor dela. Como não o melhor se não lhe conheço defeito, apenas a beleza etérea… o sabor a salmoura dos seus beijos… O calor das águas em que nos banhámos, o fulgor do céu que nos cobria, a profundeza do mar em que nos atolámos… E já me habituei a pedir o café sempre num canto resguardado do balcão, longe de olhares, longe do bulício, para ficar ali sonhando-a, recordando-a, amando-a numa chávena de café…

Estarei lúcido? Estarei sóbrio? Será possível?

Queria beber com ela cada café da minha vida, e tantos dias, tantos cafés, tanta felicidade, e já está fria esta bica, vai sendo costume já, estou habituado, é bom, nunca lembrara uma bica como agora, e agora… Nem esqueço nenhuma, mesmo que fria, justamente por me ver, e a veja, no fundo de cada chávena.

Sitio linda o desta fortaleza.

Este mar florido e tépido, o seu sorriso, beijos, carícias, desejos, que eram os meus, o corpo jovem de ninfa, o odor a algas salgadas, os cabelos nas minhas mãos, ela nas minhas mãos, e eu vendo-me nas profundezas do mar onde me levava o céu com que nos cobria, embevecido com tanta ternura, com os seus seios cheios, lindos, excitantes, ela tão doce, tão querida, tão meiga…

Temo desde há séculos a morte dos nenúfares, lendas dizem que a cada um corresponde uma sereia que morrerá com ele, por nada deste mundo queria perder aquela que, de entre tantas logrou encantar-me. Temo desde há séculos a morte dos nenúfares, lendas dizem que em cada um uma sereia que morrerá, e por nada deste mundo queria desencantar-me...


terça-feira, 25 de janeiro de 2011

2 - A CABELEIRA DE BERENICE .............................


 Conta a lenda que Berenice, rainha do Egipto e conhecida pela sua beleza e encanto, terá oferecido aos deuses, em troca da vitória dos seus exércitos, a formosa cabeleira que a animava. Afrodite terá ficado deslumbrada com a beleza desses cabelos, levando-os egoisticamente para o céu, com os quais se deleitava. 

                Adoro as lendas clássicas, tanto quanto as detesto, dependendo do fruto das suas fruições ou dos pesadelos que me provocam as suas lembranças. Não é a mesma coisa vivê-las, sonhá-las, ou submeter-me ao seu tormento. Por isso hoje estou magoado, não zangado ou ressabiado com quem tantos momentos únicos me prendou. Qual Medeia, a bela, também Berenice, que me alimentou sonhos e ilusões, vi transformada em fonte de sentimentos tão belos quanto contraditórios, senão mesmo cruéis.

Muitas vezes sonho com estrelas, muitas vezes me vi vogando nos céus, tão feliz quão Aldebaran, imbuído de honras e riquezas tais que nesses momentos também eu experimento grandiosos e radiantes sentimentos e, como ela, a sensibilidade de um brilho ofuscante, em muito superior ao de Betelgeuse, essa sim, conhecida pela sua grandeza, brilho e eterna duração. Como poderão ver, eu, como toda a gente, tenho momentos que, mesmo oníricos, são de uma beleza e felicidade impares. Não serei único, como não serão exclusivos meus adversidades, frustrações e desilusões, comigo, com a vida, com os demais.

É a vida, e como soa ouvir-se, o que não nos mata fortalece-nos, contudo, parafraseando um ditado da minha terra; “ elas não matam mas moem”. Mas estou a desviar-me do meu sonho, do meu sonho e de Berenice, a tal beleza que, e só nos sonhos tal acontece, a exemplo de Aquiles o belo, que banhado no rio Estige quando criança, se terá tornado invulnerável á excepção do calcanhar por onde lhe pegaram para o banhar, e por onde teria entrado a seta envenenada que anos mais tarde o mataria...

Também eu sonhei Berenice banhada nas águas do rio Ingá e delas saindo risonha, feliz, um sorriso contagiante que haveria de a acompanhar a vida inteira. Sonhos são mesmo assim, num minuto o nascimento e baptizado de Berenice nas águas desse rio que as flores dos Ipês roxos sagravam, no minuto seguinte o seu corpo moreno retesando-se na brancura dos lençóis, tensa, bela, esbelta, olhares e unhas cravadas em mim, as coxas quentes rodeando-me a cintura, sôfrega, ávida, suada devido à intensidade do calor do momento, suado eu, igualmente vogando no Olimpo, utopias e idílios, fantasias e propósitos, ficções devaneios e quimeras, saboreando salivas, as nossas peles húmidas, como húmido tudo o resto, na vacuidade do momento, do instante em que suas coxas num desafio me rodeavam, abertas, oferecidas, refúgio, abrigo, consolo e êxtase que a circunstância num ápice transformava de princípio e meio, em fim, 

e minhas mãos, envolvendo os seus cabelos lindos, reparam sobressaltadas que não têm nelas Berenice, nem Medeia, mas ternamente afagam a cabeça de Medusa, cujos cabelos, volvidos serpentes, me causam repulsa e sobressaltado, me acordam desse sonho transformado em pesadelo, do qual recuo em rejeição e recusa, revoltado, magoado, do qual me evado antes que, petrificado, inexplicável e surpreendentemente apresado, esqueça tantos e todos os sonhos sonhados, ainda vívidos em mim, e se me frustre a vida, a ilusão, a esperança, eu.