quarta-feira, 26 de março de 2014

182 - STRESSADOS DE GUERRA * ..........................


Afadigam-se há 25 anos (hoje serão 40, 42 anos) * os antigos combatentes das guerras coloniais para sensibilizar o estado quanto ao reconhecimento das suas deficiências psíquicas adquiridas em situação de grande stress, exigindo serem equiparados aos mutilados, seus irmãos de sangue. Se persistirem aposto que ganham um monumento igual aos dos combatentes da I Grande Guerra.

A pátria é madrasta, aliás todas as pátrias o foram sempre, a juventude é, sempre foi, carne para canhão. Aproveitem os jovens agora os quatro meses de SMO (Serviço Militar Obrigatório) ou a não obrigatoriedade de cumprimento desse mesmo SMO, porque se estala alguma guerra rapidamente serão recrutados aos dezasseis anos para cumprir 4, 6 ou 8 anos de serviço, o que aliás acontece em muitas pátrias nos dias de hoje, quantas vezes lugares onde nem a objecção de consciência é conhecida quanto mais consentida.

É difícil provar o stress traumático pós guerra. Falta de provas, dificuldade na abertura e consulta de arquivos, indisponibilidade das chefias militares para remexer em assuntos que nem ao diabo interessa lembrar e que mais não são que publicidade negativa para o negócio. Negócio tantas vezes de inconscientes, inconscientes que nos submetem a guerras injustas, inconscientes os que nelas participam dando o corpo ao manifesto, ou já viram Napoleões recensearem homens maduros ?  Claro que não ! É muito mais fácil comandar adolescentes crédulos, no vigor da força e da inconsciência !

Mas francamente digam-me lá se não é de arrasar os nervos caminhar horas sem fazer barulho, tirar os relógios para que o reflexo do sol neles não nos denuncie, ou não fumar de noite pela mesma razão, sempre temendo pisar uma mina, levar um tiro vindo não se sabe de onde ? Digam lá se não nos marca ver um camarada de armas desfazer-se à nossa frente, ou morrer nos nossos braços pedindo-nos que não esqueçamos dizer à mãe quanto a amava. Homens feitos que pensam que o são e morrem chamando a mãe, chorando os filhos e as esposas…

Digam-me lá se não confunde a mente de qualquer um distinguir entre cubatas boas e más. Boas as feitas por nós, no terreno por nós dominado e para onde à força deslocamos as populações. As más, as más serão aquelas a que pegamos fogo, tenham gente ou não, que tiros e granadas fazem ir pelos ares e que, se à noite, são bonitas de se ver, soltam chispas que lembram fogo de artificio ! Digam lá se não aliena passar os dias bebendo água fétida dos charcos, a que se adiciona comprimidos purificadores, água que nem chegamos a beber por os tiros estalarem repentinamente sem que saibamos de onde partem. Digam lá se não aliena passarmos o dia rastejando no capim, morrendo e matando sem ver caras nem corações, mas ouvindo os impropérios que nos são dirigidos e respondendo-lhes no mesmo jaez.

E o comandante da coluna grita: - "vamos a eles filhos de puta cabrões !  O teu pai isto a tua mãe aquilo a tua mulher assim e assado ! Meu preto de merda ! " ... Enquanto os mortos exalam um cheiro nauseabundo que nos acobarda e os feridos largam a vida vagarosa e pegajosamente porque não há estradas que os salvem nem meios de transporte que os evacuem. Morre-se tão estupidamente na guerra. Felizmente uso penduradas do pescoço umas figas, num fio donde pende um crucifixo e tenho uma santinha na carteira. Pelo sim pelo não tatuei “amor de mãe” no braço esquerdo, o do lado do coração, não vou morrer pois não ?

No acampamento estou em segurança, os amuletos espetados nos postes da vedação já mirraram, lembram-me, nem eu sei por quê, a Capela dos Ossos, na igreja de S. Francisco. Servem de espantalho aos turras. Ao princípio custei a habituar-me a este espectáculo, agora se pudesse levava uma de recordação para a metrópole, talvez aquela maior pois eu mesmo a cortei. Às vezes jogávamos à bola com elas, ricos tempos ! Aquilo é que era camaradagem !

E de seis em seis meses, em Bissau, aquilo é que era festa ! Bebedeiras de caixão à cova ! Longe vá o agoiro ! A visita às sanzalas caída a noite, as pretas são mais quentes que as brancas.

Também jogávamos xadrez, não só damas.

Terei filhos ?

O civil dos passes na base aérea de Bissau colecciona armas e fez da sua casa um museu ainda que nunca tivesse sido tropa. O graduado do comando colecciona presépios, tem lógica não tem ? E a lógica é uma batata não é ? Estão todos malucos não estão ? Se me não vou embora depressa fico pior que eles, e é preciso cuidado não apanhe eu um cavalo.

Soldados ! No glorioso cumprimento dos deveres pátrios esperamos de vós todo o empenho e coragem para o desempenho da missão que vos foi confiada ! Que cada um tome consciência de que até a morte é honrosa quando estão em jogo os mais altos valores da nação e do império ! Boa sorte e desfaçam-nos !


Daqui fala o furriel miliciano 2831/73 Humberto Baião na mata de Contabani, para meus pais e irmãos um Feliz Natal e próspero Ano Novo.

* Este texto, à excepção do primeiro parágrafo, publicado em Janeiro de 1974 no jornal de parede da companhia em Bissau, valeu ao seu autor uma repreensão registada com destacamento pessoal para a metrópole afim de ser acusado de dissidência, castigo que o golpe de 25 de Abril deitaria por terra, este mesmo texto foi também já publicado, completo,  no Semanário Imenso Sul, Évora, em 11-02-2000