segunda-feira, 23 de junho de 2014

195 - NA MESMA, COMO A LESMA …



Mal caiu a noite o senhor Honrado parou o Simca Ariane 1500 duas vielas abaixo da Travessa do Embuçado, voltou para buscar as malas sacos e tralha variada recomendando-me :

- Alberto, vai já e não faças barulho.

Eu era um rapazinho com doze ou treze anos, e demorei outros tantos a entender o porquê de tanto segredo. As tias Teodora e Sofia, meio agachadas nas sombras da viela, correram em passinhos pequeninos, e sem deixar de bichanar acomodaram-se, uma no lugar do morto, outra a meu lado, atrás. O senhor Honrado olhou duas vezes por cima do ombro direito, três sobre o esquerdo e não vendo ninguém meteu-se ao volante e arrancámos a toda a velocidade, contudo os pneus nem chiaram. Ninguém viu nada cochicharam elas, e eu, igualmente cochichando :

- Tia tenho vontade de fazer xixi.

- Valha-me Deus Alberto ! Não tiveste tanto tempo p’ra te lembrares ? Santa paciência, não me digas nada agora que ainda tenho os nervos à flor da pele !

A tia Sofia era diferente, era a tiazinha boa, acariciou-me os cabelos e segredou-me, aguenta um bocadinho filho que daqui a pouco já paramos e tu fazes. O que a tia Teodora tinha a menos em paciência sobrava a dobrar na Sofia, talvez por não ter nada a esconder, mas a Teodora exagerava nos cuidados, e eu interrogava-me sobre as razões pelas quais ela e o senhor Honrado partilhavam e teimavam tantos receios e segredos.

Célere, o carro galgava a estrada, eu olhava a lua contabilizando os marcos quilométricos sobressaindo do luar sob a luz amarela do Simca. A lua cheia sorria-me, nela via nitidamente estampado no disco platinado um velho carregando um feixe de lenha. Pendurado no retrovisor pendia dançando um terço com a medalha de S. Cristóvão, e no tablier um imã segurava uma placa prateada com a esposa do senhor Honrado ao meio, e uma das gémeas de cada lado dela, na base uma nuvenzinha plástica branca, encimando tudo o sorriso da santissíma Virgem Maria.

À medida que avançávamos tudo era descrito e comentado doutoralmente pelo senhor Honrado, lembro-me que era calmo, que tinha as unhas bem tratadas e envernizadas. Eu esquecera o aperto da bexiga, o mal agora era a sede, mas claro temia admitir tal, a tia Teodora atirar-me-ia logo com um :

- Meu Deus Alberto ! Haja santa paciência, quando não é uma coisa é outra, por que não te lembraste em casa antes da viagem ?

Pelo que me calei, voltei à lua, ao terço com o S. Cristóvão, à placa com a esposa e as filhas do senhor Honrado, quando ele :

- Atravessamos Montemor, a porta iluminada por cima é o Hospital S. João de Deus, há quatro anos fui ali operado à próstata. E prosseguiu conduzindo devagar até deixarmos a cidade. Não me recordo se depois se calou ou continuou doutoralmente, descrevendo e enumerando tudo minuciosamente como era seu hábito, ou se se calou, não lembro mesmo. Nem sequer se a tia Teodora para ele, como habitualmente :

- Conheces tudo meu querido, sabes tanta coisa meu xuxuzinho.

Mas a verdade é que não me lembro mesmo. Só me alembra que quando eu estava de testa colada ao vidro mirando os canhões o senhor Honrado, criteriosa e pausadamente :

- Atravessamos Vendas Novas, à direita o Regimento de Artilharia, aqui é que o meu irmão Bernardo que Deus tenha se finou coitado, na véspera de ser promovido. Foi uma hora de azar, todos temos uma, ainda decorre o inquérito.

- Sesimbra ? Perguntas quanto falta Alberto ? Ainda estamos um bocadinho longe, vamos aí a um terço do caminho.

E eu imaginava como seria Sesimbra, como seria o mar, os barcos e a praia, encontraria enterrados e perdidos na areia pauzinhos premiados dos gelados como achara em Sines ? Nisto aproveitei p’ra fazer xixi, o senhor Honrado tinha parado o carro num parque na berma da estrada, para arrefecer disse, enquanto de mãos firmes no tejadilho flectia as costas para lhe passar o quebranto, dizia ele desculpando-se.

Aproveitei a ida das tias atrás de um monte de gravilha e de uns bidões de alcatrão e sôfrego bebi toda a água de uma garrafa esquecida no porta-luvas. Depois, enquanto atrás mirava o vermelho vivo dos farolins acesos, chutei-a para debaixo do carro e por momentos tive receio que uma roda pisasse a garrafa e os vidros furassem o pneu, mas nem tive tempo, porque o senhor Honrado, brincando e batendo palmas :

- Andando ! Não podemos atrasar que depois de voltar ainda quero dormitar um cadito antes de abrir a loja.

O urbano, civilizado, polido e envernizado senhor Honrado tinha uma loja no centro da cidade. Eu não sabia de quê, mas sei que ia muitas vezes aos correios pois o ouvia queixar-se sempre das bichas, corrijo, das filas, teria-me repreendido se me ouvisse, pois naquela altura eu também teria dito além de teria-me, escrevido, ou há-dem.

Não lembro onde, mas ceámos num grande restaurante, “Bocage”, reparei que na avenida Luísa Todi porque na curva os faróis do carro bateram numa placa e mal tive tempo de a ler. Aqui nesta passagem seria corrigido pelo senhor Honrado :

- Bateram não Alberto, incidiram.

E descendo as curvas da serra acrescentou faltar já bem pouco para Sesimbra. Era noite e pareceu-me uma serra, os travões do carro chiavam, o senhor Honrado esticando o pescoço com a língua de fora passou todo esse caminho máximos médios máximos médios.

- Detesto conduzir à noite !

Bradou irritado, e foi das poucas vezes que a tia Teodora ficou calada. Virou-se para trás, encolheu os ombros esbugalhando os olhos mas não disse nada. A Tia Sofia limitou-se a sorrir. Finalmente o Simca brecou junto ao muro da praia, não via mas ouvia a rebentação, a casa alugada ficava a uns passos, ninguém me ordenou que carregasse as malas e fiquei ali ao luar, ouvindo o marulhar.

De uma abertura no sótão pendia uma escada, por ali subia para a minha cama, as tias ficavam em baixo, e por uma fresta ficava vendo-as despindo-se antes de dormir. De manhã acordava com os sussurros e os cochichos delas, abraçadas na cama, aos beijinhos, iluminadas pela claridade do sol matinal coado pelos buraquinhos do estore, luminosas mas suadas as tias, cansadas mas amigas. Nunca contei nada a ninguém.

Adorei Sesimbra, dois ou três dias depois chegou a tia Heliodora e o tio Mateus, em férias de Angola onde ela era professora e ele engenheiro, o Armandinho ainda nem nascera e os tios vieram de Itália num Fiat 600 Múltipla, que parecia um autocarro e nem havia cá. Foram dias lindos esses, deslumbrantes. Durante toda a quinzena a tia Teodora nem se lembrou do senhor Honrado, a tia Sofia nunca se esqueceu de mim, um dia compraram-me uma bola enorme, igual à que estava no meio da praia mas mais pequena. Compraram a bola e saiu-lhes uma lata de creme com que se barraram e me besuntavam todo, todos os dias. Ainda tenho essa bola, o azul um pouco desmaiado, mas as letras brancas ainda se leiem bem. O senhor Honrado corrigindo-me, lêem Alberto, lêem.

Somente passados uns dez anos voltei a Sesimbra. Sem estar, estava na mesma, como a lesma, teria dito a tia Sofia.


                                                                                                                                                                                     

terça-feira, 17 de junho de 2014

194 - SUBMISSION OR BONDAGE ? ...




- Não vamos zangar-nos por causa disto. Não sabíamos como ia ser, foi isso. Não repetiremos pronto. Zangarmo-nos não vale a pena.

- Nem acho que a culpa tenha sido minha, ou sequer tua, a existir foi dos dois. Esta coisa de tudo querer e tudo dar não é assim tão simples.

- Hoje aprendi, aprendemos, teremos que saber impor-nos limites. Não pode valer tudo pronto. Compreendo que estejas magoada, não foi de propósito, não tive essa intenção.

E, pela primeira vez em muitos anos não estavam de acordo, pois não se podia dizer que a experiencia tivesse corrido bem.

Verdade que, tanto um como o outro a tinham desejado, e analisadas as coisas à lupa, tinham-na mesmo provocado. Jamais haviam pensado ou sequer suposto que pudesse ter acabado assim, teoricamente ambos tinham esperado o contrário, mas todos sabemos como na prática as teorias são outras.

Outra coisa, e agora urgia esquecer e seguir em frente.

Seria o melhor.

- Não se chora sobre o molhado, em frente que atrás vem gente.

- Longe vá o agoiro, safa !

- Lagarto, lagarto, lagarto !

 O episódio tivera raízes na passagem das décadas de setenta oitenta, portanto há mais de trinta anos, e, quando há uns meses se reencontraram renovando os passaportes, acabaram rindo da casualidade e da fita que os juntara da ultima vez que se tinham visto, “ O Ultimo Tango Em Paris “ , com Marlon Brando, e que correra no Cine-Paraíso.

Pouco depois dessa fita uma paixão pressentida mas nunca consumada tivera um fim abrupto. Uma disrupção como agora se diz. Ela para Bringhton-on-Sea, na Great Britain e ele para New Bedford, nos States.

Durante mais de trinta anos não se viram, sem Net nem redes sociais acomodaram-se e esqueceram-se, o casual reencontro no Governo Civil foi-lhes motivo, os passaportes móbil.

Seguiram-se os encontros para um cafezinho cada vez menos espaçados, cada vez mais demorados, cada vez mais arrojados. Até um compromisso, primeiramente comedido, de seguida revivalista, acabando por ser loucamente vivido.

Já não estavam sozinhos nem lembravam quotidianamente os respectivos divórcios, nem o resto, nem nada, nem tudo, o mesmo tudo nada que agora os opunha, há que traçar limites, não podiam zangar-se por isto.

Não sabiam como ia ser, muito menos como iria acabar, foi isso.

Não repetiriam concordaram, não se repetiria, acordaram.

- Para quê insistir nisso se há outras coisas tão boas ?

Choramingou ela.

- Tens razão, não há necessidade, não voltarei a forçar.

Caíram de novo nos braços um do outro. Não, não havia dúvidas, não tinha sido de propósito, nem tinha havido essa intenção, a experiencia, com a qual desde a primeira hora em que a tinham pensado tanto os arrebatara, não acabara bem.

- Não pode valer tudo.

Tem que haver limites, contudo, quando há um mês atrás a tinham abordado, primeiro a rir, a brincar, e depois de modo sério, jamais teriam acreditado tanta subtileza existir nesse episódio e, voltando à lupa, uma coisa era o cinema, outra a realidade.

Não tinha havido intenção de magoar, isso não, ele só vira na coisa uma oportunidade de ligar o bom ao agradável, de exercer a sua posse, de dizer :

- Agora sim és toda minha, já não poderás dizer que não meu amor, porque finalmente foste, finalmente és.

E estavam nisto, neste pé, ela contrapondo que ele se excedera. Não era uma questão de emoção mas sim de excesso, além dela não ser uma coisa, um objecto, e muito menos dele, fora isso que sentira, era isso que lhe doía mais que a dor que a magoara, a submissão sofrida, pressentida primeiro e sentida depois.

- Nem penses repetir, isto foi muito para além do tudo querer e tudo dar, e não, não  e não, não fiquei com vontade nenhuma de repetir, nem sei se, para o final, não terias mesmo ultrapassado as nossas intenções, foste bruto pronto, com intenção ou não foste bruto, sentiste estar a magoar-me e não paraste.

- És um animal, besta, és uma besta, não o esperava de ti.

Há três semanas que ela não lhe telefona, 3, nem deixa mensagem, lá para 2043, dois mil e quarenta e três, pensou ele, terá 68, sessenta e oito anos e a andropausa terá tomado conta dele.

- Talvez ela tenha razão, talvez eu tenha sucumbido à fúria do devaneio, talvez a tenha magoado, talvez só mentalmente, mas que interessa agora ?

- Não vou ficar aqui, está tudo a sair, talvez regresse a New Bedford, talvez.

- Talvez a tenha mesmo perdido.
- Perdi, aposto.

- Há três semanas que ele não me telefona, 3, nem deixa mensagem, melhor assim. Só queria que estes pesadelos me largassem. Ainda bem que ele nem dá sinal, talvez seja melhor assim, é melhor assim.

- Preciso de ar, de ar e de distrair-me, e de distanciamento, não vou ficar aqui, está tudo a ir embora, talvez regresse a Bringhton-on-Sea, talvez, talvez o tenha mesmo perdido, será melhor que sim, é talvez melhor sim.

- Talvez o tenha mesmo perdido.

- Perdi, aposto.





http://youtu.be/86ZrusgWnqk

NOTA: Os vídeos, entretanto retirados da circulação pela MGM, eram do filme "O Último Tango Em Paris" com Marlon Brando e Maria Schneider.


quarta-feira, 11 de junho de 2014

193 - UMA FANTASIA VELHA ..............

  
Levou o dedo à boca e molhou-lhe a ponta com a língua. Estava nervoso, melhor dizendo, excitado. A novidade da situação, de todo inesperada, para isso contribuía. Era um sonho velho, melhor dizendo, era uma velha fantasia.

Lembrava-se vagamente do filme em que vira uma cena assim pela primeira vez. Tornou-se-lhe desde aí fixação. O nome do filme esquecera-o há muito, a voluptuosidade da cena nunca mais lembrara, melhor dizendo, quer dizer, até hoje.

Há coisas que crescem connosco, sonhos que se alimentam e dos quais por sua vez nos alimentamos, era o caso. Na idade em que o vi aquele filme marcou-me, posso adiantar que naquela época eu não sabia nem conhecia nada de nada por assim dizer. Melhor dizendo, eu não sabia mesmo nada.

Fui aprendendo com o que vi e ouvi, muitas vezes mal e porcamente pois por vezes nem entendia o que mesmo à minha frente acontecia. Não entendia nem perguntava a quem soubesse, e escondia atrás de alguma fanfarronice a minha nunca assumida ignorância.

Talvez fosse melhor dizer boçalidade, pelo menos em relação a alguns assuntos candentes, hoje reconheço-o, mas naquela altura não o seria nem mais nem menos que quaisquer outros dos que me rodeavam, melhor dizendo, era e éramos uma trupe de labregos xico-espertos, ainda hoje o seria não tivessem sido as minhas primas, especialmente as duas de Lisboa que eram mais ricas, posso mesmo dizer ter sido com elas que, admirado, me espantei com tanta coisa que nem sabia, melhor dizendo, tanta coisa com que nem sequer sonhava.

Há coisas que não se aprendem na escola, se há…
E tantas coisas, ó se há …

Fiz cinquenta anos o verão passado e posso garantir-vos que, metade delas, os meus velhos amigos inda as não sabem. Há coisas que não se ensinam a ninguém, se há … tantas coisas… ó se há …

Errei, admito, algumas vezes errei, admito-o, mas nunca mais cometi duas vezes o mesmo erro, melhor dizendo, os mesmos erros.

- E não digas que vais daqui !

Que é como quem diz come e cala, ou a papa se acaba, era mais ou menos assim que a Miquelina rematava cada lição que me dava, ou melhor dizendo, que me davam, porque parecia mesmo que estavam combinadas, a Miquelina e a Jacinta, mas não estavam, melhor dizendo, não sei se estavam, nem sei inda hoje se não estariam.

A mecânica da coisa foi-me explicada detalhadamente por uma delas, nem eu me lembro nem interessa qual, porque afinal ambas gostavam que o fizesse daquele modo, sem aquilo era tempo perdido, porque mais minuto menos minuto para conseguir um resultado minimamente satisfatório tinha que levar o dedo à boca e molhar-lhe a ponta com a língua.

Embora a situação já não fosse inesperada continuava a excitar-me, só a ideia por si só já me excitava, para melhor dizer adianto que nem era por a coisa ter sido fantasia ou fixação que perdia o encanto, bem pelo contrário, no que me toca posso afirmar que o potenciava, melhor dizendo, quero dizer que ampliava, aumentava, porque a língua portuguesa é muito traiçoeira e potenciava, se bem que seja uma expressão potente, melhor dizendo, forte, atira-nos para o universo das possibilidades, potencialmente possíveis, eu diria que, em potencia em possibilidade está ali, pode acontecer ou não acontecer, tem essa capacidade, essa possibilidade, se faz ou não uso dela é outra conversa, quero dizer é outra questão.

Isto é como tudo, quero dizer cada um terá a sua perspectiva, e de acordo com a sua própria experiencia pessoal, nem todos temos iguais ideias acerca do perfeccionismo por exemplo, ou da higiene, pelo que cada um terá o seu modo próprio de o fazer não será ?

Fiquei-me por perfeccionismo e higiene para não me alongar, quer-se dizer-se para não vos maçar com conversas de treta, melhor dizendo com conversas de merda, mas certamente já intuíram que poderíamos não nos limitarmos a essas duas premissas e invocar com o mesmo direito a eficiência por exemplo, a invocar ou a convocar, é como quem diz, chamar, trazer, não subtrair à colação se me faço entender, e com base no mesmo espírito de apreciação, ou observação, como queiram, é-me indiferente, há modos diversos de dizer o mesmo, as palavras são como as cerejas ou como as conversas, já nem sei o que digo, perdi-me um pouco, melhor fazer uma pausa, quero dizer um momento de reflexão.

Voltemos pé ante pé atrás, sei que recordava a Júlia a Jacinta e a Miquelina, nem sei por que não me  saem hoje do pensamento, quer dizer eu lembrava-as, mas lembrava-as a propósito de quê ?

Rememorando, lembranças do cinema, quero dizer daquele filme que se me tornou obsessão, melhor dizendo, fixação, ora quero dizer que eu lembrava uma minha fantasia, e não temam porque não me vou pôr aqui a arengar ou a desbobiná-las todas porque o fio à meada já eu perdi, e vamos lá a ver é se mesmo assim consigo desenrolar o novelo, melhor dizendo retomar os pensamentos onde os perdi, e por falar em perder já me ocorreu, acabei de me lembrar, melhor dizendo, relembrar.

Levei o dedo à boca e molhei a ponta com a língua. Fiquei nervoso, melhor dizendo, excitado. A novidade da situação, de todo inesperada para mim contribuiu para isso.

Era um velho sonho, melhor dizendo, uma velha fantasia.

E depois de ter aberto as malas, no filme eram duas malas cheias de dinheiro, uma vermelha e uma preta, abraçaram os maços de notas em cada uma, à vez, tendo começado a contar cada nota de cada molhe, quero dizer maço, mais por voluptuosidade que outra coisa pois que contá-las todas lhes levariam duas vidas e esse tempo era coisa que decididamente já não tinham.

Mas para ser franco já nem recordo bem todos os pormenores, diria que como aquele da Miquelina, dela e das outras,

- E não digas que vais daqui ! 

- Come e cala, ou a papa acaba-se-te, rematavam...

Melhor dizendo, gritavam ou segredavam, ou sussurravam para não dizerem que falto à exactidão das coisas, e nisso parecia mesmo que estavam combinadas, mas acho que nem estavam, para melhor dizer não sei se estariam, só sei que qualquer delas invocava dois motivos muito importantes para me exigir que me calasse, quer dizer era uma coisa que faziam especialmente por duas ordens de razões, por tudo e por nada.

Lembro sim que uma delas adorava entalar-me a mão nas coxas quentes, era uma coisa que ela apreciava fazer, isso lembro, e depois ria-se às gargalhadas com o inusitado da suspensão, claro que não passávamos a tarde nisto, mas era um bloqueio que concitava ao avanço, ambos o sabíamos, o que eu já não sei mesmo é qual delas tinha essa mania, quero dizer esse tique, melhor dizendo não me recordo a qual delas atribuir esse capricho, mas diria que apesar de tudo me faço entender ou melhor dizendo me faço perceber.

E vocês que acham ? 




sábado, 7 de junho de 2014

192 - MAGDALENA ...................................................


Carregava sobre os ombros frágeis trinta e três anos de constrangimentos. Nem sonhar lhe era permitido, nem olhar com atenção, ou demoradamente, nem devaneios, que se percebidos seriam severamente castigados.

Restava-lhe, como a tantas outras, dedicar-se à família, ou ao marido se o tivesse, senão esperar que Deus Pai lhe concedesse a graça de a entregar a um, e a felicidade de ser bem aceite, bem tratada e considerada, capitulo em que já nem se atrevia a pedir mais que a conta esperada. Até lá ia-se entregando com espírito de missão a uma vida recatada, apagada, dedicada aos afazeres domésticos, à prática do culto, às sementeiras, à fiação e ao tão honrado quão odiado mister da submissão.

Da primeira vez que o viu amassava figulino para acrescento da casa patriarcal, e enquanto os pés lhe dançavam no barro escorregadio ousou levantar a vista numa curiosidade disfarçada, mirando de alto a baixo aquele carpinteiro de sandálias e tez morena que, de modos calmos, discutia com seu pai a altura das aduelas e a medida de uma janela.

O porte erecto jogou a favor dele, e uma túnica limpa caindo a direito testemunhava-lhe o ar saudável e acrescentava-lhe a altura. Uma barba aparada rematou a imagem que nas noites seguintes havia de atormentá-la em sonhos e pesadelos que nem diferenciava já, pois o peito lhe batia em ambos e em ambos era obrigada a abafar os suspiros que da alma se soltavam.

Tudo almejava ainda olvidar quando voltou a vê-lo. Desta vez conduzindo uma carroça e vários molhes de caniço-colmo que seu pai lhe encomendara para cobrir o telhado da nova habitação tendo notado, com um estremeção que a pregou ao chão quando mais dali queria fugir, que também ele reparara nela, e ousou até pensar se a demorada conversa entre tão simpático carpinteiro e seu pai a envolveria, pois estava em idade de casar. Seu pai nada lhe dissera sobre o abordado com o dedicado carpinteiro e ela nada se atreveu a perguntar-lhe, confiando que estaria ciente da necessidade em casar uma filha que tardava em sair-lhe de casa. Seria ele ainda solteiro ?

Este pressuposto, que nunca lhe ocorrera, deixava-a agora prostrada roubando-lhe o sono das noites estreladas em cujo firmamento o julgava caminhando a seu lado, não à sua frente, e isso lhe bastava para que os sentidos, em alerta, avivassem um instinto maternal que julgara abafado, enquanto se sentia convocada pela natureza para um festim e os seios, arfando aflitos, lhe aumentavam de volume e lhe subiam no peito, queimando-a e afrontando-a, num martírio a que não sabia pôr fim.

De verdade nem queria dar fim a essa inquietação, custava-lhe, mas entregava-se-lhe em deliquescente meditação grande parte das noites, só parando quando, vencida pelo mesmo cansaço que lhe acentuava a urgência do corpo, ditando-lhe que devia há muitos anos ter sido esposa e mãe, e que a idade, avançando inexoravelmente sem que uma qualquer solução lhe cumprisse o destino, tornando-lho mais difícil quanto mais tardiamente consumado, ditava-lhe uma sensação de perdição que procurava abafar na oração, lugar e modo de buscar as respostas que a alma lhe negava. No próximo domingo iria ao templo, devota, fazer as suas costumeiras libações e orações.

Acabara-as nesse domingo quando se deparou com o jovial carpinteiro, e as faces ruborizaram-se-lhe. Zangado, ele expulsava do templo com palavras rudes e gestos expressivos os vendilhões e sentiu-se exortado por grande parte das gentes que assistiam à cena, que o aplaudiram com uma veemência impossível de não ser percebida por ele. No rescaldo dos distúrbios ficou-lhe um convite, por ele dirigido à populaça para que o seguissem e lhe ouvissem a “palavra“ do Deus Pai e fossem seguidos os Seus ensinamentos. Ela aceitou, prometendo voltar, e essa semana de impaciência não se lhe aproveitou nem a deixou dormir sossegada.

Foi fácil segui-lo e mais fácil ainda divulgar-lhe a palavra. Sentiu-se nascida para aquilo e pela primeira vez julgou ter encontrado um sentido para a vida.

A admiração por aquele homem depressa passaria de empatia a arrebatamento, e deste a platónica paixão foi um passo bem curtinho.

Com ele difundiu a palavra e tomou a luta contra prepotências e desmandos, pelo direito à dignidade do homem, feito à semelhança e imagem de Deus e, como ele, foi perseguida e expulsa, muitas vezes difamada e apedrejada, tendo não raro que fugir para se manter viva.

Valia-lhe nessas ocasiões o conforto da atenção dele, o seu carinho desinteressado, até que, num dia mais amargo se pôde recolher no seu abraço e sentiu que também ele recuperava forças se acolhido entre os seus braços.

A palavra foi-lhes o móbil enquanto não se entenderam com um simples olhar, depois foi o olhar abrindo-lhes todos os caminhos e ditando todos os limites que, paulatinamente, se entretiveram ultrapassando.

Mais que a palavra movia-os agora a fé e o amor, e furiosamente expiaram na carne os pecados dos homens, para no fim de cada dia e na hora do balanço, sempre encontrarem motivo e tempo para se recomporem das injustiças do mundo e se reconfortarem das iniquidades sofridas, para se amarem perdidamente.

- “Amai-vos e multiplicai-vos” pregava a palavra do Pai.

E amaram-se 
apaixonada, desalmada, frenetica e compulsivamente, tendo a fé e a paixão como vício, nela encontraram linimento à incompreensão dos homens de alma impura, impenetrável, dura.

A vida, que antes tivera parada, acossava-a agora, e a palavra e a fuga tornaram-se duas faces de uma mesma moeda. A necessidade de dádiva tornara-se-lhes mais forte que a de entrega. 

Aprenderiam que o coração não era lugar onde se pudesse viver, e a precariedade da vida não lhes permitiu o “multiplicai-vos”.

Ele agoniou entre ladrões, traído, ela encetou uma fuga épica e migrou para Marselha onde expiou, até ao impossível, tanto amor vivido e que lhe foi negado.

Exemplo de dignidade impossível de esquecer, todas as preces no viático imploraram que a tornassem santa.

E assim se fez.


quarta-feira, 4 de junho de 2014

191 - FOI POR ELA , FOI POR ISSO ...…


Ela sorriu, com a cara entalada entre as mãos puxou-me o queixo para si, afivelando um sorriso deitou-me uma careta, mordeu-se torcendo a língua para o canto da boca e, espremendo entre os polegares a hedionda borbulha, fez que entre as unhas rebentasse primeiro e saísse depois o sinal e o pus cujo inchaço me desfeava a cara e me cobria de dores insuportáveis mal ali tocasse.

Debaixo da dor lancinante berrei e fugi com a cabeça, mas o mal já estava feito e eu livre do problema. Havia que desinfectar e aguardar até que tudo se recompusesse.

Ela sorria e mostrava-me os polegares infectos onde o pus se derramava festejando o sucesso da operação e dando fim ao episódio.

- Lindo ! Estás lindo outra vez !

E espetou-me um beijo na bochecha ainda doída.

E foi assim.

E foi por isso que a tomei pela cintura, a puxei a mim e, com a cara ainda vertendo um fiozinho de sangue a beijei em sinal de gratidão e reconhecimento.

Lembro-me que ficámos juntinhos e abraçadinhos, não me recordo de mais pormenores nem do resto, e de resto, passaram muito mais de trinta anos e ainda vivo com ela, o que não querendo dizer tudo dirá certamente muito não acham ?

Há dias foi a vez dela, e eu a ver.

Sentada na cadeira da dentista, nem a boca totalmente aberta escondia o inchaço que lhe ia na face. O abcesso era dos grandes, e a médica daquele novo consultório, bem equipado, RX e tudo, de bata impecavelmente branca e cheia de pergaminhos, prometia segurança e dava-nos confiança.

O prédio tinha sido totalmente recuperado e renovado, dantes uma padaria e o respectivo forno de lenha, e nós agora precisamente onde há muito mais de trinta anos comprávamos pãezinhos com chouriço acabadinhos de fazer para acalmar-mos as ressacas.

Ali, onde agora a recepcionista, dantes o balcão, uma velha balança onde o pão nunca era pesado, e uma caixa de madeira vidrada  mostrando os bolos da padaria. Por detrás o quintal onde se amontoavam os molhos de lenha que alimentavam a fornalha.

Aqui, nesta sala, exactamente no lugar onde instalaram a moderna cadeira da dentista, dantes a casa do forno e onde se acumulavam os grandes tabuleiros em que arrefecia o pão com chouriço que tão bem cheirava.

Lembro-me bem, era inverno, quase três da tarde. O forno ainda quente da azáfama dessa manhã, ela atendera há minutos a última freguesa e procurou-me junto do quentinho onde eu reconfortava as mãos geladas.

Abraçou-me.
Abraçámo-nos e enrolou-se-me o sentimento.
Enrolámo-nos.

Precisamente nesse lugar, hoje, muito mais de trinta anos depois, ela voltava a ter medo e a tremer.

Queria muito, mas assustava-a o momento.

A médica soletrava-lhe palavras de calma e conforto enquanto brandia na mão a ferramenta com que havia de extrair-lhe o queixal.

Retoiçámos.

Sentiu-se acalmada, confiante, medrosa mas confiante, a mão no ombro transmitiu-lhe calma e paz suficientes para esboçar um sorriso amarelo.

Como que espantada, num instante abriu muito a boca e soltou um gritinho.

Já estava.

Eu afastei-me um pouco, e sim, era verdade o que diziam.
Doía um bocadinho mas depois era bom.
Já se sentia bem melhor.
Levantou-se e ajeitou a blusa e a saia.
E nem fizera assim tanto sangue.

Orgulhosa, a médica exibia um grande queixal na ponta do alicate cromado, sorria, e acalmou-a :

- Pronto, já está, afinal não custou nada pois não ?
  Era mais medo que outra coisa querida !

Lembro-me que depois daquilo ficámos juntinhos e abraçadinhos, não me recordo de mais pormenores nem do resto, e de resto, passaram muito mais de trinta anos e ainda vivo com ela, o que não querendo dizer tudo dirá certamente muito não acham ?

Alguém alvitrou serem quase três da manhã e dentro de pouco tempo podermos ia à padaria dos Canaviais comprar uns pãezinhos com chouriço, estávamos ali desde as cinco da tarde e já nem havia nada que se comesse nem pachorra p’ra continuar a ouvir as histórias da vida do Aurélio.

- Foi por ela, foi por isso que sempre estive apaixonado por ela, por tudo isso, desde o primeiro dia, ainda me lembro, ela tinha estreado umas botas de camurça que calçava com umas meias brancas e …

Levantámo-nos num repente, montámos as motas e num excessivo alarido rumámos todos aos Canaviais. Todos menos o Aurélio que, babando-se, chorava que nem um menino, revivendo a história que acabara de nos contar…