quinta-feira, 31 de março de 2016

329 - A DIARRÉIA QUE ME ATRAPALHOU .............

    

Eu andava com os nervos à flor da pele, ou em franja como comummente soa dizer-se, lembro-me perfeitamente desses dias. Nem as pastilhas nem os pensos me atenuavam os tremores nem os temores, e a verdade é que na dezena e meia de vezes em que fui tentado e motivado a abandonar os cigarros não atingi nem os mínimos satisfatórios quanto mais os necessários.

O que melhor recordo foi um desses dias em que tanta droga antitabágica me descontrolou os intestinos e tive que pedir-lhe, não sem alguma vergonha ou constrangimento, que me deixasse utilizar a casa de banho, até por necessitar também de mudar o penso da nicotina.

Assim foi e assim fiz, contudo o penso velho oferecia alguma resistência a descolar-se, repuxava-me a pele e os cabelos do peito aleijando-me a valer, lembrei-me então de com um algodão ou um bocadinho de papel higiénico embebido em acetona retirá-lo com facilidade e sem dor, não há mulher que não use acetona, por isso passei os olhos pelo conjunto espelho/aparador/armário da casa de banho tentando encontrá-la, à acetona não à Margarida.

Não me recordo depois de todos estes anos o que me levara a casa dela, recordo sim que por pouco me ia cagando, das dores provocadas pelo adesivo nem tanto, o que lembro bem é de mim, um estranho naquela casa de banho, devassando-lhe a privacidade com o olhar, que tudo mirava licenciosamente.

Encontrei pensos rápidos, mercurocromo, cera depilatória, verniz vermelho escuro, uma caixa de OB, portanto apesar dos quase cinquenta a minha amiga ainda era menstruada, o que em parte explicaria o seu bom humor, e atrás dessa caixa uma caixinha de gel, uma marca desconhecida para mim, Pharmatex, o que me aguçou a curiosidade e num impulso irreflectido me levou a estender o braço e a pegar no dito gel, que mirei atenciosamente. Gel contraceptivo… portanto a minha amiga não usava a pilula, o que em parte explicaria a sua pele limpa e lustrosa, isenta das manchas comuns que o uso prolongado da pilula provoca, sobretudo nas peles mais sensíveis e que como sabeis também seca, ou greta.    

Só não encontrava a acetona e senti-me um intruso na casa dela quando ao colocar o gel no lugar derrubei um frasquinho de Oliprox, um verniz medicinal para as unhas e usado por quem sofra de onicomicose, logo pensei que sendo ela pessoa com quem eu fosse para a cama o melhor seria desviar bem os pés dos dela, não fosse aquilo pegar-se, todavia não era o caso, nada de excêntrico, anormal ou abstruso se passava entre nós, quem sabe se o ex-marido ou alguma paixão de ocasião lhe pegara o fungo a ela…

Satisfeito com o que a minha curiosidade me desvendava, e confesso que com alguma maldade ou sadismo, não me contentei com o que à vista me era oferecido. Aliás o que via era normal numa mulher, cremes para a pele, para a cara, cremes para tirar outros cremes, quero dizer para retirar a maquilhagem ou simplesmente limpar a pele, o Nívea universal, o rouge, o pó de arroz, o conjunto de rímel, um alicate de pestanas e uma pinça de arrancar as sobrancelhas, digo depilar, lacas várias, shampoos e corantes para o cabelo, um deles anticaspa, num cestinho todo amaricado e coisa mesmo de mulheres uma colecção de escovas de cabelo e rolos, umas molas que nem imaginei para que seriam, uma Gillette com a espuma mais que seca e onde ainda se viam os pelos rapados, um alicate de unhas, de unhacas a julgar pelo tamanho do alicate, mais acima boiões com tudo e mais alguma coisa, até flores verdadeiras, mais precisamente cactos, no parapeito da pequena janelinha, mais em baixo e numa gaveta um saco de bolas de algodão, dois rolos de adesivo, várias limas coloridas super-fraquinhas que mais pareciam de cartão, um limatão para algum unhão, uma embalagem de Betadine, noutra gaveta uma colecção de batons desde um para o cieiro até à cor mais estrambólica, e outros cujas embalagens transparentes deixavam ver misturas exóticas de confettis ou purpurinas nos batons mais líquidos que duros, dando ideia de serem aplicados a pincel embora não tivesse visto os pincéis, e, arrumadinhos como soldadinhos de chumbo em fileiras umas duas dezenas de frascos de verniz, gostei de encontrar um frasco fúxia a minha cor preferida, porém acetona népia, ora se não estava ali naquela gavetinha dos vernizes onde raio teria ela a porcaria da acetona ?

Esgaravatei a ultima gaveta mas não encontrei mais que ligaduras, gaze, duas tesouras uma delas de unhas, uma maquineta para desgastar ou desbastar ou calos ou calosidades dos pés, meias de desporto elásticas vivamente coloridas e em varias cores, daquelas que costumamos ver nos ginásios e que as mulheres usam até meio da barriga da perna, portanto a minha amiga frequentará algum ginásio, folgo que se preocupe com a saúde e a linha, corpo são em mente sã, o que em parte explica aquele corpinho roliço de formas esculturais, talvez se veja obrigada a suar um bocado mas afinal e ao contrário do que eu pensava Deus não a bafejou em tudo, pelo menos as medidas que apresenta exigiram-lhe muito trabalhinho, e dieta ? Fará ? Sofrerá também com isso ? Passará fome por gosto ?

Estava eu meditando nisto quando os intestinos me deram uma volta e ronronaram, só tive tempo para atirar uma joelhada à gaveta fechando-a, de baixar as calças novamente e sentar-me na sanita, respirando fundo sustive o ar e quando o expeli fi-lo com alguma satisfação e, embora o espelho estivesse alto, aposto que tinha um sorriso estampado na cara.  Talvez por me ter levantado mais aliviado e com outro humor mal me pus em pé os olhos deram de caras com a acetona entre o relógio e uma caixa de pensos para os joanetes, nem podia estar mais à vista a merda do frasco que já olhara uma dúzia de vezes e confundira com os que o rodeavam, digo com o do álcool, da água oxigenada, de soro fisiológico, e quando finalmente retirei o penso velho sem que os cabelos do peito viessem agarrados a ele fiquei tao aliviado, tão duplamente aliviado diga-se que me apeteceu fumar um cigarrinho, felizmente não os tinha já comigo, nem o faria numa casa que nem era a minha.

Arrumei e limpei tudo o melhor que pude, não sem me baixar para abrir a gaveta de baixo, afinal só faltava aquela e a minha pérfida curiosidade não me permitia deixá-la por abrir. Novinhas e ainda em caixinhas uma colecção de calcinhas que por pudor não toquei, tão cândida e inocente imagem emocionou-me, comoveu-me, enternecendo-me, e logo me pareceu que tocar-lhes seria conspurcá-las. Retirei com brusquidão a mão do puxador e bati com o cotovelo no convector dando de imediato um salto, parecia que tinha levado um choque eléctrico, sem querer derribei de cima dele umas calcinhas que talvez ou decerto estariam a enxugar e nessas fui obrigado a pegar, para as recolocar no lugar, não sem que as tenha esticado entre os polegares, pequeninas, bonitinhas, bonitinha a minha amiga, uma medida engraçada, uma coisa a que eu nunca prestara grande atenção, inadvertidamente veio-me à ideia uma velha canção*, “Viola, Violina, Violão”, e de imediato recordei os anúncios dos corpinhos Danone e Fitness. 

A vida tem cada coisa, nem me lembrei de tudo isto por acaso, é que estou sentado na sanita pela terceira vez esta manhã. Ou os cogumelos eram venenosos ou a carne de porco tinha pimentão a mais, o que é certo é que quem se lixou fui eu.  Para a próxima só comerei peixe, pxito, bacalhau, adoro o cheiro a bacalhau… 
   

* http://mentcapto.blogspot.pt/2014/10/205-viola-violinha-violao.html

quarta-feira, 30 de março de 2016

328 - O TURISMO, O PAÍS, O ALENTEJO, OS DÓLARES REDONDOS E A GRANDE ILUSÃO ...


              Foi há tantos anos que se me esvaiu a memória. Contudo recordo o cenário embora quanto aos pormenores, chapéu. O meu primo Zé Baião bufando, como era hábito nele sempre que a conversa o apaixonava, inflando-se-lhe o peito e a verve, nem cabendo dentro da farda quando assim era. Não era a farda o móbil da conversa, era a filha, era dela quem, a propósito de tudo e de nada ele, baboso e envaidecido, fazia motivo e, desta dito e feito, lá vinha a lenga-lenga habitual enquanto ele inchava e a boca sorrindo se lhe retorcia para o lado;

- Aquilo é que está ali uma moça fisicamente bem constituída !

E pronto ! Já me lembro ! Às vezes basta um pequeno empurrão para que a memória retome o seu carreiro, os neurónios e as conexões têm destas coisas. Em redor do poço o meu pai descascava uma tangerina, esse meu primo punha e tirava as mãos dos bolsos do colete, era um domingo ou feriado certamente pois ele não envergava a habitual farda rosa velho, ouvia lá longe a minha mãe pita pita pita chamando as galinhas, alguidar de couves e urtigas migadas à anca, segurando-o com um braço enquanto com o outro fazia como os homens nas sementeiras, espalhando a mistura enfarelada que punha sempre em alvoroço o galinheiro. Do meu irmão mais novo népia, não me recordo, mas o mais velho segurava um envelope grande e volumoso que a embaixada da Rodésia, actual Zimbaué, lhe enviara com vasta, completa e belíssima informação sobre o Parque Nacional de Matobo*, que ele dissera querer visitar, ludibriando a embaixada, essa e muitas outras, que caindo no logro o enchiam, para deleite do meu pai, de belas fotos de países e lugares onde a imaginação os levava. Não havia net é certo, mas havia muita fantasia e originalidade nos modos de contornar os limites que a pobreza material ditava.

Mas desvio-me do essencial, falavam das belezas naturais de cada país e continente, do pincho do tigre e do leão, e aqui o meu pai cavava no chão, rodando o calcanhar e abrindo uma covinha onde pudesse fixar umaa lança com que suster o ataque das feras inimigas que se abateriam sobre essa lança e na qual se cravariam. A velocidade de antílopes, gazelas, gnus e chitas era também assunto, embora para mim menos interessante. Eu ia chapinhando com a mão no tanque enquanto eles viviam todas aquelas aventuras, até que ao falarem da formusura das mulheres Zulus, Xonas, Fulas, Bantas e tantas outras que me é impossível lembrar eu acordava da minha preguiça e afinava os ouvidos, interrogando-me como saberiam eles tanto acerca daquelas mulheres negras cuja beleza era alvo de disputas e diatribes, mas que não lembrava quando nem como as teriam eles visto ou visitado.

As brochuras, lá está, viam-nas nas brochuras que todas aquelas embaixadas remetiam lá para casa e nas quais também eu me deliciava olhando demoradamente as fotos coloridas, admirando não propriamente as belas mulheres, fisicamente bem constituídas como diria o meu primo da sua filha adolescente, mas a maravilhosa bicharada que preenchia páginas e páginas de sonhos e aspirações, senão a mim, a meu pai e ao mano mais velho, o artista do ludibrio e da arte de fazer parecer, aparecer e desaparecer o que quer que fossem vestígios da tabanca ou do palácio onde vivíamos.

Foi também assim, vendo o mundo que o carteiro trazia em grossos pesados e volumosos envelopes, que se me acicatou o gosto pela leitura e a minha mente começou primeiro devagar, depois ainda mais devagarinho, a saltar os muros do quintal, doravante suficientemente baixos para que os pudesse galgar. Por isso me foi fácil dedicar-me à leitura dos muitos e muitos exemplares da revista Selecções do Reader's Digest, que nem sei como havia tantas e muito menos me lembra agora como apareciam lá em casa. A verdade é que foram um tesourinho que explorei durante bastante tempo e com desmedido prazer. Foi numa dessas antiquíssimas revistas que li o artigo com que em parte titulei o texto que hoje vos ofereço, portanto uma leitura com mais de cinquenta anos mas que o reboliço a que hoje assisto à volta do boom turístico no Alentejo me obrigou a recordar e sobretudo a que me debruçasse sobre essas memórias dos meus quinze ou dezasseis anos, pois não teria mais por essa época.

Pois foi precisamente uma fotografia inserida numa dessas revistas que me chamou a atenção, um grupo de banhistas, qual delas a mais bronzeada, algumas negras esculturais, não sei se zulus, fulas ou bantas, e a legenda respectiva, a que na altura nem dei a devida importância mas que muitos anos mais tarde e lembrando a fisicamente bem constituída filha do meu primo, me deixou fazendo contas de cabeça e somando dois mais dois.

A legenda da foto dizia nem mais nem menos que isto;

“ Mulher boa e melancia grande ninguém come sozinho” …  

a propósito do surto turístico que as paradisíacas praias, lugares, cidades e países experimentavam, e de como esse boom ao invés de os enriquecer os arruinava. De tudo me lembro como se fosse hoje, até das bundinhas. Hoje custa-me a crer como foi possível tal revista apresentar tal artigo, “Dólares Redondos”, tão tendenciosa e facciosa ela era e é, como certamente ninguém desconhecerá.

Mas apresentou, e eu jamais o esqueci, nem esqueci o facto de que nem tudo que parece é. Grosso modo o vanguardista artigo mostrava e demonstrava como o dinheiro do turismo só aparentemente existiria nos países onde esse turismo agitasse a economia, tais como o México, o Chile, Costa Rica, Panamá, Jamaica, Rep. Dominicana e por todo o mundo, (Cuba não era citada embora antes da revolução fosse considerada o bordel das Caraíbas e local de férias por excelência). Quanto à riqueza supostamente criada pelo desenvolvimento turístico não só nem aparecia como desaparecia tal qual um boomerang volta à mão que o lançou ou uma moeda que caia no chão rola e rebola descrevendo um círculo até tombar no sítio onde começara a rolar. O mecanismo, ou o fenómeno como era descrito na revista funcionava assim;

1 – Milhares, centenas de milhares ou milhões de turistas adquiriam nos seus países de origem (no caso os EUA) os respectivos pacotes de férias cujo pagamento efectuavam.

2 – Nas estâncias, cidades ou países de férias, ou de destino, deixariam no máximo uns trocos numas bicas, nuns gelados, numas coca-colas ou pinas coladas pois o pacote na maioria das vezes até a diversão nocturna e os aperitivos e cocktails incluia. Gastarão somente algum dinheiro de bolso, nos postais ilustrados, nuns rolos para as máquinas fotográficas, nuns maços de cigarrets, num isqueiro com uma bela imagem do lugar, numa qualquer recordação não muito cara do handcraft local para levar à mamã à amiga ou ao amigo, umas chinelas maded handcork, uma miniatura do Templo de Diana, um chapeuzinho preto com uma foice e um ramo de espigas, um grupinho em barro representando os cantadores de cante alentejano, e pronto, estão as férias feitas.

3 - Claro que os hotéis que os albergam sempre têm despesas, com luz, com água, com o aprovisionamento da cozinha, do bar, mas raras unidades hoteleiras pertencem a gentes da terra, normalmente são pertença de cadeias internacionais cujo dono se desconhece e estará algures na Arábia, nos USA, na Rússia ou na África do Sul ou noutro sítio qualquer. Agora digam-me lá se o Costa teve ou não teve razão ao taxar cada dormida em Lisboa com um euro ? Quem sabe se não será o único beneficio que terá de quem lhe gasta as calçadas cuja reposição lhe caberá a ele pagar, como caberá pagar e abrir estradas e ruas e ruelas e acessos e viadutos e colmatar os estragos que os turistas façam na cidade. Para já em Lisboa estão a facturar os italianos que se fartaram de vender-nos tuck-tucks …

4 – Ora ficando o dinheiro dos pacotes logo na origem, se por mero acaso o hotel dessa cadeia, por exemplo no Brasil ou na Cochinchina, apesar de tudo tiver lucros, logo é chamado a contribuir e suportar os custos de investimento da casa mãe dessa cadeia hoteleira no seu país de origem, forma sagaz e encapotada de para lá transferir os lucros, apresentando posteriormente prejuízos e muito licitamente escapando-se a ser taxado local e fiscalmente.  

5 – Os dólares ou poucos dólares do pé-de-meia, redondos que são acabam rebolando sempre no sentido da partida, poucos ou nenhuns atingem o ponto de chegada, é raro que esses hotéis reinvistam nos locais que exploram até à medula e a que se agarram como lapas.

Por cá o dinheirinho da luz vai para os chinocas, o da água para os amigos do Mário Lino que deu a volta ao Zé do Cano, ou deu a volta ou deu comissões, isto sou eu feito má-língua, claro que não passa de uma aleivosia minha, de uma suposição de mau gosto, pois toda a gente sabe não haver o mínimo de provas em que se fundamente esta afirmação. No fundo a questão do boom turístico no Alentejo é saber-se quem ganha com ele. Por enquanto sopeiras, recepcionistas, ajudantes de copa e cozinha, empregados de mesa, seguranças e barmans têm o futuro assegurado, pedreiros, serventes, canalizadores e electricistas também têm feito uns biscates, porém são essas as profissões que por agora o futuro nos oferece, mais que isso o tempo o dirá…

Festeje-se então, pelo menos enquanto houver quem saiba como usufruir dos fundos europeus, não podemos criticar quem tem olho, afinal os da terra também podem concorrer a eles e se o não fazem será porque não querem, ainda há pouco uma amiga me perguntava o que seria a democracia num mundo dominado por imbecis… Um mero problema de consciências ou de olhos que se não abrem  ? Pensem nisso. 


terça-feira, 29 de março de 2016

327 - HUGO ERNANO E OS PORTUGUESES ...........

         (Milo Manara - Storia dell'Umanità  Historia de la Humanidad)
                    

Não tivesse sido o choque e eu nem me teria dado ao incómodo. Mas esbarrar em quem pensamos ter um mínimo de informação e bom senso deixou-me os miolos a abanar e os neurónios em polvorosa.

A Convenção de Genebra, que de 1864 a 1949 ditou as regras das matanças entre a humanidade civilizada e que teve continuidade nas preocupações da ONU, de que são exemplo maior a limitação do uso de armas convencionais, as nucleares têm um dossier à parte, deve a sua razão de ser à matança, ou antes chacina que a batalha de Solferino, em 1859, entre franceses /italianos contra o império austríaco envolvendo mais de duzentos mil soldadinhos de chumbo provocou em gente fina, gente que certamente terá tido náuseas e sentido escrúpulos…

A matança, a carnificina ou o morticínio foi de tal ordem que gente sensata temendo que o crescendo da raiva e da tecnologia pudessem simplesmente fazer colapsar a raça humana, a ética, a moral e os princípios já andavam há muito tempo pisados e pela lama, resolveu cavalheirescamente dar razão a Descartes e encetar um movimento de consciência que pusesse termo a tal irracionalismo, movimento que cem anos mais tarde viria a culminar no que ficou conhecido na história como o século das luzes ou Iluminismo.

Instituiu-se portanto, paulatina e cavalheirescamente que doravante matar sim mas com fair play, curiosamente a indústria de perfumaria francesa, a que no mundo em volume e qualidade ofusca todas as outras, teve a sua génese e desenvolvimento de modo quase paralelo, mas isso não passa de uma coincidência curiosa que para aqui puxei somente porque o apodrecer dos largos milhares de corpos, mortos ou morrendo após uma batalha, era coisa de sensibilizar e fazer torcer o nariz mais requintado. Sim porque o pior nem eram os que morriam logo, mas antes os que trespassados por baionetas ou atingidos pela metralha dos primeiros e incipientes canhões ficavam por terra, gravemente feridos, sem rescues minimamente organizados, nem ao menos equipas de socorro ou resgate, sem medicamentos nem cirurgias, sem penicilinas nem aspirinas, nem tão pouco antibióticos. Azar de quem caía pois já sabia ficar condenado a morrer ali, com a ajuda de Deus logo, sem a ajuda d’Ele chegavam a durar oito dias, até a mazela, a fome e a sede acabarem com eles no meio de um sofrimento atroz que a poucos incomodaria, todavia, contudo mas porém largando um cheiro fétido que ninguém suportaria. 

           Até a mim que fui altamente treinado para matar e ser eficiente e auto-suficiente nesse meu mister, nem após longuíssimos meses de treino não me foi dada de imediato a boina negra de fuzileiro, não o foi sem que antes tenha papagueado de olhos fechados, de trás para a frente e da frente para trás, o regulamento de disciplina militar, em especial o regime jurídico das armas e suas munições, cuja propriedade, uso e porte no que concerne aos militares dos quadros das Forças Armadas e aos membros das forças e serviços de segurança são regulados por lei própria. Foi para mim sempre óbvio que não poderia simplesmente fazer uso de qualquer arma sem ordem, ou sem a isso ser autorizado ou até obrigado pela legislação inerente. Assim fiz e nunca deixei de ser um militar brioso, cumpridor e condecorado por actos e bravura em combate. Não fora a cena leviana (e respectiva delação) das cabeças embalsamadas nas cubatas do Mihinjo*, onde fôramos chamados para que se cumprisse a lei mas onde as coisas acabaram por dar para o torto, e eu nunca teria sido expulso de Luanda, ou sequer de Angola. É certo que a malta esqueceu por momentos a Convenção de Genebra e cortámos umas cabeças aos turras, ter jogado com elas à bola e tê-las espetado num pau acabou por ser agravante da situação, valeu-nos o facto de todos estarem embriagados com o bombástico e artesanal Marufo, o que serviu de atenuante evitando males maiores, mas tal desiderato foi culpa exclusiva do pelotão de comandos e caçadores nativos que eram os nossos pisteiros e a nossa vanguarda.


Concomitantemente não há acção sem reacção, nem violências sem consequências, interessa sobretudo não ultrapassar o legislado, sob pena de sermos enxovalhados, castigados, expulsos, sacrificados e crucificados. Matar um tipo é uma coisa, é crime, matar um milhar é totalmente diferente e dá direito a medalha de honra. Um homem é um homem, não é um bicho e portanto deve evitar portar-se ou comportar-se como tal. 

Desconhece muito boa gente que durante a guerra do Vietname os comunistas do norte se queixaram na ONU de que os EUA não respeitavam a lei da proporcionalidade, e os USA foram obrigados a emendar o seu mais recente e moderno caça, o Phantom F4, que doravante e sobre território do Vietname ficou impedido de usar quer o radar quer os mísseis que o equipavam. O moderno caça, que vinha equipado com o mais sofisticado armamento, dispunha unicamente de mísseis e rockets, cujos radares lhe permitiam reconhecer e abater o inimigo a 50 km de distância, os comunas nem sabiam quando nem do que morriam, o que era tremendamente injusto…  A ONU obrigou a combates à vista, só podiam abater-se mutuamente à vista um dos outros, o que dada as desiguais velocidades a que as aeronaves contundentes se moviam relegou os F4 para plano secundário pois necessitavam de um ângulo de manobra muito maior para curvarem devido à sua excelente e excessiva velocidade, enquanto os Mig inimigos, mais lentos, viravam como quem vira uma esquina. Ainda por cima sem radar o F4 era incapaz de fixar os alvos dos mísseis, obrigando os americanos a adaptarem nele metralhadoras e canhões. Ora desde o pós II GG que essa lei da proporcionalidade tornara mais justas e menos desiguais precisamente as “justas” (justas neste caso= as lutas).

É aqui que retornamos à vaca fria, pois foi por não ter percebido isso, ou ter estado distraído nas aulas de formação de “condicionalismos ao uso e porte de arma” que o cabo Hugo Ernano se fodeu e agora tosse… Tenho a certeza de que quando jurou bandeira ninguém lhe deu uma estrela de xerife ou o autorizou a avançar por aí como se isto fosse o faroeste. Ao contrário do que muita gente pensa o cabo não é nenhuma autoridade, nem ele nem policia nenhum, são quando muito uma extensão, um complemento, a autoridade está na AR e no sistema judicial, nos juízes, que não podendo estar em toda a parte delegam em filiais, em agentes, autorização para que ajam em nome deles, ajam, e eles agem, tornam-se seus agentes, o seu braço direito, mas terão que o fazer dentro das normas, ou lixar-se-ão, tão simples quanto isso.

O bom do cabo Hugo Ernano antes de disparar devia ter-se lembrado de um juiz, ter imaginado ser juiz e estar a uma secretária consultando os códices, e antes de disparar ter colocado a si mesmo as perguntas a que a lei o obriga, perguntas a cuja resposta somente os factos observados e comprovados podem responder;

- Estava ele ante uma situação clara de flagrante delito ? Observou o cenário as circunstâncias e a dimensão da ameaça com que se poderia deparar ? 
- Encontrava-se ameaçado na sua integridade física ? O ofensor estava armado e constituía ameaça ?
- A arma do ofensor foi apreendida e constitui prova material ? O ofensor disparou a arma sobre o cabo ? A perícia a essa arma confirma ter a mesma sido disparada ?
- O primeiro disparo do cabo foi efectuado para o ar como medida de aviso e coacção sobre o ofensor ?  Quantos disparos efectuou ? Ripostou o cabo em legitima defesa ?
- Como explica o cabo que um tiro dado para o ar tenha atingido mortalmente uma criança que tem pouco mais de um metro de altura ?

É razoável e legítimo supor perante os factos comprovados, e só estes contam, ter o cabo actuado com leviandade, ter atirado contra um homem desarmado e assim tendo atingido involuntáriamente uma criança... O resto são circunstancialismos do contexto que naturalmente não convenceram os juízes, (nem mesmo os do supremo quando do recurso) ou são meras opiniões de malta ou gentinha ignorante.

Um blindado contra uma fisga… ou, imaginemos o ridículo, um judeu armado com uma bomba atómica, na intifada palestina e lutando contra quem lhe atira pedras… Isto de haver palermas que acreditam que tudo se resume ao pouco que as suas cabecinhas sabem tem que se lhe diga filhos… Olha, e por falar em filhos, o suposto bandido, ou presumível ladrão levava o filho com ele ? Fui consultar a legislação e em código nenhum detectei proibição de levar consigo os filhos fosse para onde fosse. Em dois casos unicamente e a saber, os pais são obrigados a condicionar as crianças que levem consigo, filhos ou não, devem transportá-los em cadeirinhas apropriadas e no banco traseiro enquanto pequenos, e num “ovo” homologado e no banco da frente enquanto bebés, não esquecendo em nenhum dos casos o uso de cinto de segurança.

O ridículo pode matar sim, nem todos terão a sorte que eu tive. Mau grado a cena das cabeças e a expulsão de que fui alvo a minha caderneta não ficou suja, pelo contrário a coisa funcionou como publicidade positiva, o que nem sempre acontece, portanto cuidado com as normas. Acabei como conselheiro e instrutor militar tendo corrido toda a África abaixo do Equador. Treinei os angolanos contra a UNITA e os sul africanos de quem ela era aliada, mais tarde os pretos da SWAPO contra o SAA, South African Army o MPLA e os cubanos, e acabei os meus dias de acção treinando tropas do SAA contra os guerrilheiros nativos angolanos e os mercenários cubanos, tendo mais tarde lutado novamente ao lado da SWAPO contra o SAA.** Sempre respeitando, ensinando e aconselhando a respeitar a Convenção de Genebra, excepto que me lembre, após a purga exercida por parte do MPLA contra os flechas que tinham lutado a meu lado e do nosso exército e duma outra vez em que pretos do MPLA degolaram e migaram num caldeirão três brancos sul-africanos em cujo repasto eu me recusei terminantemente a participar.

        Ofendido virei-lhes as costas e ainda hoje espero que essas comissões me sejam pagas. Só trabalhava à comissão, sinal depositado e comissões, trabalhei sempre com contratos a prazo portanto sei bem quanto sofrem os precários. Mas desde que as comissões fossem regularmente pagas o meu trabalho era garantido. Melhor que eu só trinta e tal anos mais tarde vim a defrontar-me com alguém mais eficiente. Deviam ter acertado com ele o valor das comissões e exigir-lhe responsabilidades e o cumprimento de um caderno de encargos. Terem-no encerrado em Évora, apesar das tais condições, não trouxe nem vantagens nem ganhos absolutamente nenhuns a ninguém, nem a ele nem ao país.    



segunda-feira, 28 de março de 2016

326 - O EGO E O SEU UNIVERSO ..............................

 Arte - Fernando Pessoa, por Afonso Pinhão Ferreira.


“ É preciso uma guerra para que apareçam seres humanos ” dizia-me o meu avô Bernardo. Só na guerra ele encontrara seres humanos,* é triste mas é assim, ele é um dos raros sobreviventes vivos da IGG. Também este é para mim um dia triste, Bruxelas, Paquistão, Iraque, nem sei onde mais uma multinacional anuncia milhares de despedimentos e nem há já dia em que noticias do género não cheguem até nós. Ou se começa depressa uma guerra que apague das estatísticas uns milhões, ou teremos que oferecer a muita gentinha o que foi oferecido apesar da sua manifesta contra vontade a Maria Antonieta em 1793.

O mundo está ficando pequeno para tanta gente. Usem as bombas, será um desperdício não lhes dar uso, foram caríssimas ! Todas elas !  Nem sei para que as quiseram tão grandes, nem às empresas, aos bancos, a todas essas entidades supranacionais, multinacionais, grandes demais para caírem. Amanhã serão robots e mais robots, cada vez mais robots, e mais drones, e mais refugiados e mais despedimentos, e mais miséria, e assim caminhamos alegremente para o cadafalso, como no filme dos Pink Floyd, marchando para o precipício, caminhando amorfos para o abismo, mudos e calados, cobardes, mas frequentando comícios e votando nos alarves que nos trouxeram aqui. Além de cobardes somos uns tristes, uns néscios, uns ignorantes, uns parvos.

Lembro a tropa, a minha guerra, relembro as guerras que vi, e as que vivi, vi homens, vi coragem, vi coerência e consequência. Se não prestam há que matá-los, com vigor, com força, com ímpeto, com vontade, com desejo, exemplarmente, fazer como eles, melhor que eles, quem não é por mim é contra mim, reconquistar o nosso espaço, a nossa dignidade, a nossa honra, não há outra solução, não nos deixam outra solução, outra saída. Quanto mais tarde pior. Já nos vigiam a todos, a todo o momento, com câmaras de vídeo nas cidades e para nossa segurança dizem-nos, ou com drones nos ares. A nossa segurança vai matar-nos a todos, nem teremos tempo de soltar um pio. Temos que lhes declarar guerra aberta, ou aberta ou fechada, ser mais manhosos que eles, ser cuidadosos com os nossos, o mundo está cheio de parvos, e traidores, e colaboradores, e de ignorantes, de delinquentes, de delatores e informadores, de oportunistas, e falsos, e arrivistas, e videirinhos, e de estupidez, e de cartões de crédito a mais, e bancos a mais, e hipermercados a mais, quando o que mais precisamos é de matadouros, de fábricas, de líderes, de ditadores, de guerrilheiros, de carrascos, de assassinos, de espingardas e tiroteios.

O mundo está a ficar bipolar, de um lado eles do outro lado os outros, a grande massa de indigentes, desempregados, mal empregados, precários, excedentes, excedentários, sobreviventes, refugiados. Este mundo tem que mudar, a balança oscila, os pratos pendem para o lado beneficiado, alguém tem que dar um encontrão na balança, um empurrão, um palmadão, um safanão, um tiro de canhão. A guerra é a solução, a guerra é nobre, é preciso não a amar para a julgar mal, a guerra é a paz, é a justiça, é o equilíbrio, é a razão estendida a rolo compressor se preciso for. O meu avô Bernardo tinha razão, eu tenho razão, guerra é bravura, heroicidade, honra, heroísmo, tenacidade, superação, solução, finalidade, igualdade, e depois, quando tudo voltar à bipolaridade, outra guerra redentora, patriótica, pacificadora, purificadora, arrasadora, niveladora, catártica.

A panela de pressão enche, sem válvula, sem vazão, e só uma explosão, uma violentíssima explosão meterá na ordem o patrão, que, então, e só então, aceitará esta aquela ou qualquer outra solução pois não aprendera antes a lição. Tudo queria para ele o egoísta, o egotista, o fascista, o capitalista, onde está o humanista ? O meu avô tinha razão, só a guerra faz emergir o humanista, o ser humano, o altruísta, só na guerra se encontram seres humanos, a guerra é progresso, a guerra é bom senso, guerra é pacifismo, guerra é consenso, a guerra é a paz, faça-se a guerra, guerra é esta paz podre, guerra ao establishment, guerra ao status quo, guerra à imobilidade, faça-se a guerra e a mudança surgirá, proceda-se à matança pois só depois da tempestade vem a bonança. É de lei, é dos livros.  

Segundo as últimas noticias 62 indivíduos serão donos de metade da riqueza mundial, um quarto da outra metade dessa riqueza está nas mãos de fundos de investimento, e financeiros e industrias, portanto de entidades sem cara nem sequer tensão arterial que, não raramente, dispõem de orçamentos muito superiores ao de países pequenos (como Portugal, a quem aliás dão ordens), decidindo sobre a sorte ou a desdita de milhões sem qualquer compaixão ou visão que não o saldo da própria conta bancária. Ou movemos contra esta ausência de razão e estes mentecaptos uma guerra sem quartel ou qualquer dia serão os hooligans que hoje pululam em Bruxelas a despoletá-la por falta dela, dela razoabilidade. Sim, esses e os que esta tarde fogem à frente dos canhões de água da polícia durante o enterro dos 13 escravos e ignorantes portugueses que se mataram numa carrinha de seis lugares, onde se faziam transportar para lá longe irem servir os seus senhores.

Não há muito tempo fui contratado para desenvolver um trabalho para uma agência, não, não era a Agência Gallup era uma outra, paralela, que me solicitou a realização de um inquérito que por razões que descobrirão gostei de levar a cabo. Grosso modo, e não estando a desculpar-me estou porém a clarificar as coisas, as perguntas ou questões usadas na entrevista eram exactamente cinquenta, cuja metodologia e conteúdo vou mental e desordenadamente tentar reproduzir aqui, todavia sem a exactidão a que por força da norma, da lei e do bom senso os questionários ou inquéritos normalmente nos são apresentados no que concerne a estrutura e padronização. No inquérito/questionário era pedido que ao mesmo fosse respondido de forma clara, sucinta e rápida, as respostas às cinquenta questões deveriam ser completadas em cinco minutos, e o tempo também contava.

1.     Sabe o que é um inquérito ?
2.     Diga o que é para si uma sondagem.
3.     Explique o termo sonda espacial
4.     Diga agora o que é um satélite natural.
5.     E um satélite artificial ?
6.     Desenhe com o dedo uma órbita.
7.     Agora desenhe uma elipse.
8.     Como desenharia em segundos uma pequena revolução ?
9.     Situe os Dardanelos no mundo.
10.  Por que é o motor pulso jacto, ou pulsorreactor o engenho com mais peças móveis que se conhece ?
11.  Acha a rega por expressão compatível com as normas ambientais vigentes ?
12.  O universo de uma sondagem tem reverso ?
13.  Os versos de um poema têm anverso ?
14.  Numa tipografia os caracteres têm personalidade ?
15.  "Olho por olho dente por dente", é para si uma força de aspersão corrente ?
16.  Defina metro-padrão.
17.  Explique o padrão-ouro.
18.  Dê um sinónimo de nacionalização.
19.  O que é expropriação ?
20.  E fertilização ?
21.  No espaço o som caminha mais depressa ou devagar que na terra ?
22.  O que é para si uma lua ?
23.  E uma sociedade em comandita ?
24.  Que significa a expressão Ldª ?
25.  E a sigla S.A.R.L. ?
26.  Diga o que em seu entender origina a inflação.
27.  O que é para si a deflação ?
28.  Sociedades por ações são sociedades de gente boa ?
29.  Sabe o que é uma ação ?
30.  Porque valorizam as ações ?
31.  Como e quando desvalorizam e porquê ?
32.  O que pensa ser um misantropo ?
33.  E um misógino ?
34.  A ponte 25 de Abril é uma ponte tênsil ?
35.  Os candidatos a deputados são uma escolha sua ?

Se bem que tenha tentado, não me recordo de todas as cinquenta perguntas não consegui recordar-me senão de apenas trinta e cinco, porém o resultado final era fácil de avaliar e enquadrava-se nestes padrões:

A - 50 respostas certas, eram equivalentes a 100% do inquérito,
B - 25 respostas certas a 50%
C - 13 respostas correctas a 25%
D - naturalmente zero respostas correctas corresponderiam a 0%

Apuradas as percentagens quem se enquadrasse na alínea A era considerado culto, na B mediana ou insuficientemente culto, na C a necessitar seriamente de repetir o liceu, e finalmente a D que considerava quem nela se inscrevesse uma pessoa simplesmente ignorante e um caso perdido. Posto isto, avalie-se, ou considere-se. 

Chegado o leitor aqui já deve ter feito as contas de cabeça, estará a contar a quantas perguntas teria respondido certo, e em qual percentil se enquadrará, A,B,C ou D, ainda bem é mesmo aí que o desejo apanhar a fim de me responder com conhecimento a duas questões que me têm azucrinado a cabeça, será este povo capaz, ou alguém com ele, de algum dia construir aqui uma democracia, ou ainda, será ele capaz algum dia de viver em democracia, está ele preparado para isso ? 

* Svetlana Aleksievitch, “O Fim do Homem Soviético” pág. 352, Editora Bertrand, Lx.


quinta-feira, 24 de março de 2016

325 - FULANO, SICRANO, BELTRANO *…..........…


Lembrai-vos do tal fulano que não abria a página a ninguém mas que aqui há coisa de três meses a escancarou estrategicamente a toda a gente ? Lembram-se com certeza, eu falei nisso por duas ou três vezes.

Vi-o este fim de semana ! 

Perdão, quero dizer vi-o no fim de semana passado, de calças caqui escuras, um polo leve, dos caríssimos ! Ténis de marca, e contrastando fortemente com a roupita chique um boné rasca na cabeça, um desses bonés de propaganda dos partidos, o que me fez soltar uma sonora gargalhada por ser de um desses partidos que até se arrogam a defesa dos pobrezinhos.

Marchava integrado num grupo, cruzei-me com eles e mal os ouvi, captei algumas frases dispersas mas não me permitiram avaliar a totalidade do motivo que ali o juntava, ou os juntava;

- estender pontes
- mais unidos e mais capazes
- contrariar desinteresse politico
- dar nobreza à politica
- a vitória é nossa
- fazer história
- qualidade de vida dos cidadãos
- dar tudo por tudo
- conquistar a maioria

Não fiquei a perceber se iriam assistir à passagem da volta ao Alentejo em bicicleta, para isso era cedo demais, pelo que não enquadrei bem quer as exaltações quer o júbilo de que davam mostras, ou sequer os apelos à vitória, mas que o nosso amigo anda metido nalguma isso anda, atenção que eu disse em alguma, e não com alguma, aliás para isso já terá passado a idade ideal, todavia juro nunca o ter visto tão entusiasmado, ou entusiástico, e já conheço a figura há bem trinta anos ou mais, que o moverá, que o empolgará tanto ?

Só quem desconheça o esforço que durante anos este fulano colocou a pôr-se em bicos dos pés, só quem ignore tanto trabalho desenvolvido, tanto golpe de rins, tanto sapo engolido é que poderá estranhar esta cena, pelo que confesso ter-me a curiosidade levado a reduzir a velocidade e encostar o carro, pois já estava quase parado, e então quando a Gabriela me deu uma cotovelada é que parei mesmso por completo, e também para ouvi-la;

- Olha quem os espera ! Repara só, pára mais ali.

Encostei o carro para ver melhor e olhei com mais atenção e vi, gente do piorinho, do pior que a cidade tem. Anda bem acompanhado o nosso amigo, vai chamuscar-se, ou queimar-se. Este fulano, que eu sabia já há algum tempo padecer de males sezões e febres manhosas, coisa escondida pela família que a deixava transparecer somente ao conhecimento dos mais chegados, pois temia que o estigma da doença afastasse as pessoas de casa, não era contudo um doentinho, a menos que se considere doença a pancada para a todo o custo projectar o orgulho, a vaidade pessoal, coisas deveras íntimas mas para ele muito importantes, talvez mais importantes que tudo pois só uma atitude assim explicaria as amizades escolhidas, com gente que só pensa nela e que já por duas ou três vezes mandou isto tudo abaixo.

Chegado aqui não consegui conter o riso. Percebi então tudo, ao ver aquele magote de gente fez-se luz no meu espirito. Este fulano, aquele beltrano, aqueloutra sicrana. É uma questão de esperarmos, o nosso amigo irá prometer-nos tudo e mais alguma coisa, afinal precisamente o que todo o grupinho anda fazendo há muito tempo, aliás nunca fizeram outra coisa. Este fulano arranjou para ele mesmo este hobby, que inseriu no âmbito dos desafios individuais com que entretém a reforma e a vidinha, daí as fotos com os amigos, em especial com o arquitecto, e com o povo, em vários ângulos, poses e situações, a Gabriela também já o compreendeu, quer dizer já lhe topou o jogo, andar entre aquela gente em bicos dos pés parece ter passado de tempo perdido a coisa efectiva, nunca acreditei que aquele fulano seria escolhido mas pelos vistos parece que me enganei.

Está tudo explicado, é uma questão de esperar para ver, agora percebo porque andava sempre em bicos dos pés. Com gente desta estamos tramados, e condenados a trabalhar para lhes pagar as reformas douradas que nada justifica e que nem mereceram.



quarta-feira, 23 de março de 2016

324 - SOU ALENTEJANO, KEEP KALM ....................


Mau grado as comemorações diárias de sucesso no Alentejo, logo rematadas com uma sessão onde o cante alentejano* nunca falta, as Cassandras da realidade teimam de modo regular repetitivo e invariável brindar-nos com estudos a que depressa fechamos os olhos pois não aceitamos que venham beliscar-nos a condição de alentejanos, que como todos sabemos é sinónimo de perfeição. Até eu, não sou perfeito mas sou alentejano, o que é quase a mesma coisa.
  
Desta vez foi um tal Zaask em conúbio com a Universidade Católica, que nem alentejanos são, gabando-se terem produzido um estudo (links no fim do texto), estudo esse envolvendo todo o território nacional e que, uma vez mais e como sempre coloca o Alentejo no fim da tabela, como se não nos bastasse o Henrique Raposo e o seu rol de idiotices que ninguém levou a sério. Para com esta parceria Zaask/Católica, a nossa atitude bem poderá ser a mesmíssima, repúdio total.
  
Pois o estudo dessa tal Zaask / Católica avaliou a competitividade regional a nível nacional e como se tivesse descoberto a pólvora, colocou Évora na cauda dos distritos onde é mais difícil abrir um novo negócio, uma nova actividade económica, Évora e o Alentejo, todo ele, no fim da dita tabela territorial. Como se houvesse aí novidade ou nós próprios não sentíssemos ou não soubéssemos, há bué de décadas que assim é. Não veio portanto dar-nos novidade nenhuma, outros antes dela o tentaram e levaram igualmente com o nosso desprezo, alheamento e indiferença. A calma nasceu aqui, tem aqui pais e avós, tem aqui o seu lugar e o seu futuro e não será um artolas qualquer a ensinar-nos o que é a vida e o que é viver.
  
Naturalmente as coisas não vão bem mas a culpa não é nossa, e mais, duvido bastante de quem sistematicamente nos coloca no fim de estudos e tabelas, e da desconfiança passei ao creio firmemente existir uma animosidade lactente e fáctica contra o Alentejo e os alentejanos, uma ou muitas se considerarmos duas ou três décadas, ou quatro. Muitas conspirações se ergueram e erguem contra nós, o Alentejo, uma região que tem tudo para ser rica e não a deixam. O poder central, o capitalismo, o liberalismo, tudo e todos se têm unido para que ao poder local democrático não seja permitido realizar as aspirações e a felicidade deste povo, trabalhador, lutador, sofredor, genuíno, honesto, e crente nas enormes potencialidades do seu destino.
  
Esta conspiração contra o Alentejo e os alentejanos não é de hoje, nem de ontem, podemos mesmo situar o seu começo no dia em que a Reforma Veiga Simão foi posta de lado. É que nem se dignaram fazer com essa reforma o que fizeram com a ponte Salazar, que mantiveram a funcionar mas lhe mudaram o nome para Ponte 25 de Abril. No caso do ensino foi um verdadeiro regabofe, abriram-se universidades para todos, abertas, fechadas, particulares, estatais, boas, más, a carvão, a gás, com turbo, ou super turbo, e turbulentas, a maioria fechou, o número de estudantes com a crise minguou, e as antevistas potencialidades da produção de doutores, engenheiros, escritores, artistas e etc. para exportação ou para consumo interno voltaram a ser quimeras, tornaram a ser de novo potencialidades abertas, futuros em perspectiva, em aberto, perspectivas, potencialidades, essas coisas que, como toda a gente sabe os alentejanos ambicionam e em que o Alentejo é riquíssimo. Num ápice foi-se todo um mundo de potenciais oportunidades em perspectiva que há séculos se nos abrem e que assim continuarão pelos séculos dos séculos, ámen.
  
Tal como fizemos com Henrique Raposo, que abalou daqui com o rabinho entre as pernas depois de uma valente coça, para aprender a não se meter connosco, também os municípios alentejanos deviam de imediato contestar os resultados do tal estudo que a Zaask aponta, apresentando publicamente argumentos convincentes, credíveis, válidos e validados, que rebatessem as aleivosias que o tal estudo citado apresentou. Quem não se sente não é filho de boa gente…
  
Na impossibilidade de o fazerem, isto é de se demarcarem de tão vergonhosos resultados, então deveriam os municípios visados despoletar eles mesmos um estudo isento, imparcial, que identificasse as causas dos estrangulamentos e dos obstáculos a que a actividade económica, industrial e mercantil está negativa e efectivamente sujeita no respectivo concelho e tornassem esses resultados natural e igualmente públicos, já que a Zaask, ou antes o seu estudo, aponta como uma das causas o pequeno ou completamente inexistente apoio à actividade empresarial por parte das administrações centrais e locais.
O mencionado estudo, de que também o Diário do Sul fez capa (enganadora) no dia 21, alude a um alegado ou denominado pessimismo dos empresários e eu direi que a ser assim será feito à boca pequena, pois desde sempre aqui vivi e nunca os vi ou ouvi reclamar, recalcitrar, admoestar ou ameaçar quem quer que seja, o que me leva a crer que a economia local estará mal mas para os outros, não para eles, para os outros sim, para os que fazem fila ou já perderam a fé nos Centros de Emprego, como se coubesse a estes fazer mais que afixar nos seus placards os anúncios de emprego que com desvelo recortam das páginas desse mesmo Diário do Sul.

O empobrecimento que o estudo menciona é culpa nossa e só nossa, com CEE ou sem CEE, com euro ou sem euro, o país, a região, as regiões, nunca produziram ou produzirão o suficiente. Um fraco rei fará fracas as fortes gentes diz o refrão e com razão. É o nosso velho e eterno problema de chefias, de vanguardas, de patrões, de empresários, de elites, é um problema velho e que se tornará velhíssimo, um problema que sempre se agarrará a muletas para deitar acima dos outros as culpas da sua inabilidade, de que são exemplos os apelos de saída da CEE, ou da moeda única, como é o apelo à Regionalização. Nada resultará, o nosso problema é só um, é um problema de produção, produção, produção, o resto é areia deitada para os nossos olhos. Só a produção gera empregos e riqueza, e o aumento da produção nada tem que ver com CEE, com o euro ou com a Regionalização, tem a ver com atitudes, mentalidades e estruturas de produção.  

Claro que com o Alentejo a despovoar-se, os salários em queda livre, os municípios quase sem excepção atolados em dívidas ou pessoal, ou nas duas coisas, a verdade é que nem há gentes nem dinheiro que possam valer a qualquer economia, a menos que façamos como Malta e Chipre, vendamos isto aos russos ricos, aos chineses ou aos árabes, ou aos indianos ou paquistaneses. A não ser assim isto, o Alentejo, não terá solução. Teria tido se o caminho trilhado há vinte ou trinta anos tivesse sido outro, agora é tarde, nem com vistos gold lá iremos. Emigrem… 

          Há que reconhecer todavia alguma coisa positiva ter vindo a ser feita pelo Alentejo, aqui, ali, acolá, de vez em quando surgem ideias e obras, porém são acontecimentos pontuais e de tímido volume, e nada de dimensão que nos leve a pensar e a reconhecer tratar-se de um movimento de fundo, mobilizador da execução de um grande plano ou estratégia, infelizmente termos que os classificar como iniciativas meritórias, sem duvida, mas claramente insuficientes. Para qualquer lado que nos viremos falta-nos massa crítica, e disso se encarregou ao longo de décadas a autofagia política vigente, acabou com o que havia e impediu novas afirmações ou poersonalidades de encontrarem o seu lugar... 

Uma breve nota, apesar de ter tentado há pequenos grandes problemas que os links não mostram, caso do universo em que assenta a amostra ou amostragem do estudo, que publicamente a não apresenta, o que não significa que não exista, estará junto da documentação original. Observando as variáveis e condicionantes que nos são apresentadas e se atendermos ao facto de quer a Zaask quer a Universidade Católica deterem um historial de verdade nos seus estudos pelo qual poderemos balizar a nossa apreciação, fácil se torna concluir que se compararmos o que observamos com a realidade diariamente confrontada, depressa faremos um juízo sobre o que é dito e forçosamente concluiremos não andar o referido estudo longe da realidade, antes bem perto dela aliás, e infelizmente.