domingo, 7 de agosto de 2016

374 - PATRIMÓNIO ......................................................


Havia muitos anos não tirava férias, e para férias em bolandas como aquelas, provavelmente teria sido preferível nem ter nenhumas. Primeiro interrompera-as por causa do desvio do malfadado avião, uma segunda interrupção ficara a dever-se ao assalto do navio, uma terceira, e que o irritara solenemente e em simultâneo o fizera rir devia-a ao muro, erguido de um dia para o outro em nome da liberdade, diziam.

A continuar assim acabaria as férias no ano seguinte, ou no outro, pelo que sua senhoria acabara mesmo por se arrepender de, contra seu hábito, ter tirado férias. O telegrama vincava a urgência, e o mais que ele poderia fazer eram suposições olhando os títulos dos jornais e tentando ver além deles. Sem Telex estava de mãos atadas. A que se deveria tamanha urgência? O problema da Baía dos Porcos estava suficientemente afastado para que a exigisse, porém o recuo e deslocamento das tropas espanholas em Marrocos e a sua concentração em Ceuta e Melilla não estavam nada longe e eram um caso diferente, diferente mas suficientemente próximo para gerar alguma inquietação, não estavam longe os dias em que Afonso XIII aflorara o nunca esquecido desejo espanhol de nos anexar.

Era em tudo isto que o senhor embaixador pensava enquanto estugava o passo dando corpo à urgência com que fora instado, ainda lhe ocorrera uma qualquer relação com os movimentos terroristas que eclodiram nas províncias ultramarinas mas varreu a ideia do pensamento, o seu ministério não era o da guerra. E quanto mais a curiosidade o acicatava mais ele apertava contra si a pasta que sobraçava, acelerando o passo corredores adiante.

Esperava-o no cimo da escadaria o chefe da casa civil, que o cumprimentou com desvelo e consideração, apontando-lhe um inusual gabinete e solicitando-lhe dois ou três minutos de espera, sua excelência viria logo que possível pois já perguntara por sua senhoria uma vez ou duas.

Entrou, não se sentando logo e preferindo ficar em pé, lançando o canto do olho para o jornal desdobrado em cima da secretária e tentando pela última vez adivinhar o motivo da urgência, olhou, torceu o pescoço até conseguir ler a legenda da foto em primeiro plano franzindo o nariz inacreditavelmente surpreendido, que poderia ele ter a ver com Cagarin ? E repentinamente, esbaforido e agitado sua excelência entra, vindo de uma porta dissimulada, lateral, pela qual nem dera, estendendo-lhe pressurosa e afavelmente a mão.

- Sente-se senhor ministro, senhor embaixador, sente-se meu caro amigo, queira desculpar a urgência mas nestas coisas mais vale prevenir que remediar, vossa senhoria compreenderá e dar-me-á razão.

O senhor embaixador sentou-se, sorrindo, dando a entender claramente a sua excelência estar na disposição de o ouvir. Que os tempos iam difíceis, que aquele estava sendo um ano terrível para nós, não bastaria termos acorrido rapidamente e em força a Angola, nem eram as outras províncias o cerne do problema, era o mundo, era a ONU e eram sobretudo os portugueses, Portugal.

- O senhor embaixador articulará estratégias com o seu colega o senhor ministro do interior. Lá fora ou cá dentro pretendo que sejam sobejamente conhecidas as razões históricas e morais para aguentarmos firmemente as nossas possessões no ultramar. Caber-vos-á a vossas senhorias planearem e porem em acção os mecanismos necessários, diria essenciais a que esta batalha psicológica e propagandística seja ganha. Morreram na Flandres milhares de homens para garantir a posse dessas nossas províncias ultramarinas, esses homens, esses patriotas, esses heróis foram sacrificados em nome da Pátria, não serei eu a carregar para a história o opróbrio de abrir mãos desses territórios cujo custo está escrito e consagrado a sangue no tratado de Versalhes, territórios onde aliás temos uma missão evangelizadora e civilizadora a cumprir. Todos nós sabemos não se encontrarem os indígenas das várias tribos em condições de assumirem a sua própria autonomia, seria um desastre, veja-se o que acontece aqui ao lado na Argélia, milhares e milhares de mortos, centenas de milhares. *

Depois, trocando as pernas e pausando para ganhar folego continuou:

- Ao aceitar este cargo jurei a mim mesmo não entregar ao meu sucessor nem um país mais pobre nem um país mais pequeno, quero honrar a passagem de testemunho, quero honrar o meu juramento, quero respeitar e honrar a confiança dos portugueses em mim, quero honrar este cargo, quero não ter que me envergonhar de mim mesmo. Não entregarei aos vindouros uma Pátria diminuída em relação à que me foi confiada.

- Certamente Senhor Presidente ! Com certeza Excelência ! O Senhor Presidente do Conselho saberá melhor que ninguém o que fazer ante tão grave situação. 

- Bem sei que por esse mundo fora todos descolonizaram e veja-se com que desastrosas consequências para ambas as partes foi feita essa descolonização. Hoje mesmo na ONU seremos alvo de ataques soezes mas, tal qual os nossos heróis caíram na Flandres para honrar a República e garantir a sua unicidade e inviolabilidade, também nós saberemos estar à altura daqueles que, pela perfídia das palavras tentam destruir os valores em que acreditamos e a unidade territorial que há quase quinhentos anos mantemos. Estamos sozinhos na ONU, mas estaremos firmes e orgulhosamente sós sempre que tal seja preferível a que estejamos mal acompanhados. Um dia a Nação, os portugueses, dar-me-ão razão. Obrigado senhor embaixador, ide em paz, ide com Deus, que o Senhor lhe conceda fazer bom uso da autoridade que a Nação lhe concedeu. E a família como está ? Adeus, ide, ide vossa senhoria, iremos falando.
  


·          https://pt.wikipedia.org/wiki/Opera%C3%A7%C3%A3o_Vag%C3%B4

·          https://www.publico.pt/temas/jornal/o-outro-lado--da-historia-do-assalto--ao-santa-maria-20226967

·          https://pt.wikipedia.org/wiki/Muro_de_Berlim

·          https://pt.wikipedia.org/wiki/Invas%C3%A3o_da_Ba%C3%ADa_dos_Porcos

·          https://pt.wikipedia.org/wiki/Corpo_Expedicion%C3%A1rio_Portugu%C3%AAs

·          https://pt.wikipedia.org/wiki/Afonso_XIII_de_Espanha

·          https://pt.wikipedia.org/wiki/Iuri_Gagarin

·          https://pt.wikipedia.org/wiki/Tratado_de_Versalhes_(1919)

·          * http://www.dw.com/pt/1954-in%C3%ADcio-da-guerra-de-independ%C3%AAncia-da-arg%C3%A9lia/a-314126

http://ultramar.terraweb.biz/06livros_JoseBrandao.htm

* Mais de 250.000 mortos em sete anos, contra os 8.831 falecidos nas 3 frentes coloniais que mantivémos durante 13 anos.

NOTA: Este texto foi concebido e ficcionado com base na pesquisa efectuada para uma tese de doutoramento, que desenvolvo há algum tempo, e como tal beneficiou da pesquisa bibliográfica a que uma qualquer tese séria necessáriamente se obriga.