sexta-feira, 7 de outubro de 2016

388 - AMOR, ou N. Senhora de Fátima, é o mesmo…


Pois é, pois foi, foi assim mesmo que a coisa se passou, sucedeu, apesar do escuro que depois se fez média luz e finalmente luz. Inicialmente foi um leve olor, um odor insinuante, o perfume a rosas pela manhã, acabadinhas de regar, orvalhadas.

Só passado algum tempinho, e quando a luz ficou de ficar, média, veio a vista, o deslumbre, a visão, e lá voltou de novo e antes de tudo o insinuante perfume, para imediatamente depois a sensual aparição. Aí já deu para enternecer mais, ainda mais, derreter-me digamos. Nada mais restava ante tal milagre que perseguir aquele odor perfumado até às pétalas orvalhadas e, primeiro farejá-las, aspirar-lhes o perfume, a alma, deixarmo-nos envolver até flutuarmos pairando sobre o fruto da roseira, fruto é como quem diz, flor, flor milagreira e então, após envolvimento que me colocou boiando sobre mim mesmo, aliás mais acertado seria dizer flutuando sobre o roseiral, veio-me arrebatamento tal que senti chegando-me aveludado, porém nada subtil, camuflado sob a forma de um estremecimento ternurento, assim para um sentimento que nos colhe a vontade mas livremente nos leva lá, nos conduz lá.

Digo nós por não por ser caso único, como eu haverá milhares, milhões, a quem ante tal aparição acomete uma metamorfose e, com crente e respeitosa genuflexão, abdicam da vontade própria e deixam-se conduzir pelo arrebatamento do momento, pela emoção e estremecimentos do coração, por tudo que de admirável encerra e existe na paixão.

Não é este o tempo do livre arbítrio, estamos nos campos do desejo, da cegueira, da pulsão, diria que da ressurreição pois fico outro, todos ficamos um outro se a vontade de não sei quê nem sei de quem nos enovela, enleia, atrai e seduz quando pétalas banhadas de orvalho, abertas e perfumadas nos excitam o olfacto, os sentidos e a razão, razão e sentidos que embotam sem remissão conduzindo-nos ou atraindo-nos ao crucial, ou desaire, como um buraco negro suga o universo e toma as rédeas de quem o orbite, captando-o, cooptando-o para si, para seu exclusivo proveito ou antes repartido repasto, gozo, prazer, partilha, comunhão.

Dias inesquecíveis em que a Primavera pode acontecer no Verão, Outono, Inverno, enfim, quando um homem quiser ou se dispuser a debruçar-se com carinho e devoção sobre pétalas de rosa, orvalhadas ou não, perfumadas ou não, ciente ser ele a quem cabe regar em cada dia, cada ocasião o jardim do Éden, as árvores da vida e do conhecimento, o roseiral que lhe devolva em oferenda o madrigal de paixões cuja seiva lhe caberá colher e lhe permitirá dessedentar-se en dépit de la saveur acre e adocicado a maçãs verdes, le merveilleux fruto do paraíso dissimulado em cada roseiral, em cada rosa, em cada pétala, em cada madrigal.

Assim o tomei para mim e me tornei poeta, ou por ser poeta o colhi para mim descobrindo nele um vendaval de paixões irreprimíveis, como se em vez de tocado uma rosa ou beijado as suas pétalas tivesse aberto com ou sem cuidados a caixa de Pandora e agora, liberto de mim me pudesse entregar de corpo e alma tal qual tivesse sido tocado ou bafejado por sagrada epifania.

Sobre os lençóis alvos sorria um mar de pétalas, como se ventania ciclónica os tivesse atravessado um dia e, apesar do arrebatamento inquestionável pairando na luz que dilacerava o quarto numa miríade de questões, apreensões e interrogações, em cada pétala uma gota de orvalho persistia, mantendo o fulgor a frescura e a beleza de cada rosa desse roseiral encantado no seio de um escuro que depois se fez luz, média luz e luz, por fim luz perfumada em que, segundo os anjos, numa manhã, com arrebatamento e paixão num estremecimento desejado e consentido se regou o amor.