domingo, 4 de dezembro de 2016

402 - A ESPERA ... por Maria Luísa Baião * ................


Foi ansiosamente aguardada. Todo o meu mundo durante muito tempo girou em volta dessa espera. É verdade que quem espera sempre alcança, mas o tempo, que não passava, e a situação, que nem atava nem desatava. Nunca imaginei que a espera pudesse ser desesperante, ou quase.

Os meus estados de alma alternavam entre o júbilo, a alegria pelo momento aguardado e a tristeza pelo lento evoluir do tempo, esse tempo que quanto mais desejado mais intolerado se tornava. Eu andava já stressada, eléctrica umas vezes e cansada outras, de tanta energia colocada nas coisas, em tudo. E o tempo, e a demora demolindo as minhas resistências.

Sou ágil a pensar e a agir, mas nessa situação, impossível de controlar, tornei-me mesmo agressiva, insuportável, quando não precipitada. Nem as primeiras chuvas, nem o cheiro grosso a terra molhada, realidades que normalmente depositam no meu espírito, como rios extravasando os leitos, um aluvião de paz, me cercearam a emoção vivida. Uma emoção profunda e velha de tanto usada e abusada.


Momentos houve dando por mim intolerante para com o cheiro das flores, os ornamentos, os livros e os discos, e então, nessas poucas e raras vezes, tombei combalida, soturna e infeliz por não chegar esse momento tão ansiosamente aguardado. Na sala todos os móveis me pareciam taciturnos e austeros, escuros. E eu a distanciar-me de mim mesma, numa tentativa de me alhear de toda a situação, absorta na espera e no desespero. E o tempo sem se apressar, parecendo desejar irritar-me, passando em passinhos pequeninos, eu procurando não chorar, aferindo vezes sem conta relógios e calendários, cujas horas e folhas iam caindo de maneira compassada, regular, demasiado tarde para a minha pressa, para a minha ânsia, para a minha circunspecção.


Eu procurando dominar-me e às circunstâncias, eu a inflar-me de calma e cerimónia, enchendo-me de salamaleques para com as amigas e vizinhas, numa sofreguidão de empatar o tempo e esconder a mágoa difusa e inequívoca que não esquecia um momento sequer. Os físicos embirrando comigo, que tudo estava bem, sob controlo, no tempo próprio. E mostravam-me provas e exames, eu alheia a tudo aquilo mirando constantemente o calendário do relógio e fazendo contas de cabeça, enquanto por civismo e deferência debitava frases óbvias, fórmulas de ocasião, odiando-os por terem razão, olhando-os de soslaio e atirando-lhes críticas pensadas por não me enganarem, por não me iludirem, por não me mentirem.

Era errado pensar assim, mas animava-me, trazia-me um conforto sem alívio, e eu, num débito de reconhecimento e consideração sorria-lhes e agradecia-lhes, concordando.

Um dia houve que após a chuva, manhã alta, ergueu-se uma bruma colada à terra, imersa nessa névoa, enterrei nela a minha solidão e tristeza. Coisa pouca, o ritual de cerimónias instalou-se de novo mal saíram os primeiros sinais de um sol quente, afastando as nuvens. Voltei ao formalismo de um funcionário do ministério dos estrangeiros, diplomacia a quanto obrigas, corri as cortinas mas a bruma não voltou, a névoa não voltou, nem me cegou nem fez esquecer. O coração voltando ao ritmo acelerado que se tornara norma, descompassadamente, indiferente à devastação que ele e a espera talhavam em mim.  


A espera, essa terrível evidência de que nenhum recurso me podia livrar e que tive, uma vez mais, de admitir sem contestar, sem protestar, prostrada já ante uma natureza imutável que nunca lograria alterar. Aceitei os factos, foi como se me deixasse conduzir por mão amiga, impregnei-me de uma solicitude afectuosa e, de quando em quando, passava por baixo das narinas um lenço embebido em água-de-colónia.

Lembro-me de, por vezes sentir frio em pleno verão, um frio enorme dentro de mim como se fora de gelo, o estômago sempre contraído, eu apertando as mãos junto ao peito. Colocava então um casaco sobre os ombros, acendia um pauzinho de incenso e esperava. Esperava que o tempo que não passava passasse, que fosse já amanhã, a semana, o mês seguinte, sentava-me no sofá, a minha gatinha no colo, e adormecia com essa esperança que nos desespera.
  

Finalmente chegou o momento ! Todas e todos corremos acossados para ver o milagre ! Fizemos de magos, telefones e telemóveis tiniram e surgiu ouro, incenso, mirra. À nossa frente o milagre, buscando a mama na avidez da vida, muito cheiinha e muito bonitinha, cabelo escuro, comprido, como as mãos e os dedos, olhos pequeninos perscrutando a existência, a novidade, a beleza de ser.

Os pais chamaram-lhe Leonor, e eu tornei de novo a ser quem era. 
  
                        
* Escrita numa quinta-feira, mais precisamente a 19 de Outubro de 2006, às 15:48:13 e publicada por esses dias por Luísa Baião na coluna Kota de Mulher, Diário do Sul – Évora