sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

412 - O TANGLOMANGLO QUE ME DEU * .............


Descobri hoje uma melhoria em mim mesmo. Tirara a roupa da máquina para ir levá-la lá abaixo à arrecadação, na garagem, e metê-la no secador, o que fiz. Mas no regresso e ao subir as escadas, desde o acidente que subia escadas uma a uma como o caranguejo e não andando, ou seja não pé esquerdo pé direito, esquerdo, direito, e por aí adiante, era só direito, direito, direito. Hoje pela primeira vez desde há 6 anos e involuntariamente a perna esquerda, digo o pé direito, avançou ! Alto, emenda, perdão, digo a perna esquerda e o pé esquerdo, avançaram e subi as escadas a andar ! Perceberam ? A coisa ainda ta torta mas já ta a funcionar ! Também as desço já do mesmo modo. 

Mas tenho que parar por aqui esta estória que o guarda-nocturno ta á minha espera p’ra irmos tomar a bica. Matias Sebastião o guarda-nocturno e eu somos velhos conhecidos e velhos amigos, daí que feita a sua obrigação e sempre que podemos, antes dele se ir à deita troque dois dedos de conversa e beba uma bica cá com o rapaz, é que ele tem um fraquinho por mim, além de me atribuir as culpas pelo seu rebate de consciência, mas essa é outra história e já vamos a ela.

Foi há meia dúzia de anos. Eu ouvia-os, não sei se chegaram lestos se demoraram uma eternidade, ouvia-os a eles e ao reboliço à minha volta, ver não via por o muito sangue espalhado e coagulado me ter empapado os cabelos e a vista, tendo contribuído para que me tivessem considerado despachado, quer dizer, para o Matias e para o colega eu já estaria como todos havemos de ir um dia.

- Tá lá ? Comando ? Escuto. – É o Matias, já chegámos, não, não é urgente, não precisam mandar o helicóptero, é só um e já tá como há-de ir. Escuto – Mandem um reboque buscar a viatura acidentada, cheira a gasolina que tresanda, um descuido e pega fogo à serra toda. Escuto. – OK, daqui comando, certo, vai seguir brigada de desencarceramento e o reboque. Escuto.

Eu já estaria portanto como há-de ir um qualquer de nós, com os pés para a frente, pelo que não vi mas senti terem atirado comigo despreocupadamente para uma maca que, por sua vez foi displicentemente atirada para dentro suponho que de uma ambulância.

- E agora Matias ? Évora, Beja, ou Évora ? 

- É pá Beja está mais perto mas o tipo é de Évora, depois teriam que o transladar de Beja para Évora, deslocações, esperas, papéis, chatices, mais despesas, neste caso temos que nos lembrar da família, Évora com ele que como está mais vinte ou trinta minutos não irão fazer-lhe diferença nenhuma e a família ficar-nos-á agradecida.

– Boa, é mesmo assim Matias, é a gente pensar e agir SIMPLEX.

Atado à maca lá segui, sentindo os balanços e os encontrões que o terreno provocava na viatura até ser alcançada estrada firme. Agora que arrefecera as dores começavam a assaltar-me, a cabeça parecia querer estourar e sentia o cérebro chocalhar dentro da caixa craniana, sacolejado de um lado para o outro dentro dela. Nada que os preocupasse, para eles eu já estava como havia de ir um dia, com os pés para a frente, pelo que percebi o Osório desabafando para o Matias:

- Não sei como gostas dessa merda e não te cansas de rockalhada pá, um dia inteiro, muda isso para a Rádio Nostalgia pá, ao menos essa tem música decente meu Rockabilly do caraças. 

- Não dá, enquanto não passarmos o Mendro não dá, empurra a cassete. Eu seguia "morto" e mal instalado mas tinha direito a música. 

Eles entretidos fazendo saltar as frequências do rádio e eu sentindo pela inclinação a subida do Mendro, parte do percurso da Vidigueira a Portel, sendo o Mendro** o local mais alto da serra com esse nome e onde em tempos havia, ignoro se ainda existe, uma estação e antena retransmissora da RDP e RTP. Nunca essa subida me parecera tão íngreme, talvez por ter a cabeça a um nível mais baixo que os pés e a subida estivesse a durar uma eternidade por onde a ambulância parecia arrastar-se a passo de caracol.

A repentina sequência de curvas e contra-curvas deu-me a indicação de que abandonáramos a estrada principal correndo paralela a Portel e conduzindo a Évora e nos embrenháramos na vila. Iriam meter gasóleo, andariam estes tipos na estrada com o depósito na reserva ? Mas não, não se tratava de nenhuma imprevidência dessas como erradamente eu julgara. Ouvi-os parar, puxar o travão de mão, abrir as portas e um deles para o outro:

- Já agora aproveito e compro tabaco.

Aproveitem e mijem também cabrões de merda !  Não me façam é perder mais tempo, pensei eu a quem o maxilar, que devia estar partido, doía p’ra caneco e o inchaço estava a sufocar e a dificultar a respiração, provocando-me aflição e por certo causa de dores lancinantes das quais nem me conseguia queixar. Era sobretudo na anca que se concentravam as dores cuja imobilidade me provocava um formigueiro na perna e estando a tornar-se insuportável. Ocorreu-me que poderia ter a anca deslocada ou a bacia partida, no entretanto estes merdosos em vez de correrem de sirenes abertas paravam para tomar uma bica e comprar tabaco. Afinal de contas eu já estava despachado, que diferença me poderiam fazer mais vinte ou trinta minutos ?

Lembrei-me da minha amiga Zéza, que de vez em quando ficava hirta do pescoço como quem ao apertar-lhe os gasganetes lhe tivesse provocado um torcicolo, chegando a andar assim semanas a fio e com um formigueiro apanhando-lhe a cabeça e lhe provocava uma dor imensa. Queixava-se ela dessa forte dor e digo eu que só não lhe apanharia a língua porque calar-se era coisa que nunca a vira fazer, sã ou doente cantava como uma grafonola e, tal como as gralhas, nunca se calava. Dava gosto ouvi-la.


Finalmente chegados a Évora fui largado nas urgências. A lei obriga ou para efeitos burocráticos é aconselhável largar os corpos nas urgências, por serem mais rápidas uma série de formalidades, certidões de óbito e outras que, quanto a mim felizmente não foram necessárias nem cumpridas pois acabaram por reparar estar eu mais vivo que morto. O resto da história é banal, lavagem, medicação, internamento, serviço de observação, reparação, raios X, raios Gama, raios Beta. Está lá, escuto, afinal não era nada de cuidado, num ano reaprendi a falar, reaprendi a comer, reaprendi a andar, reaprendi a equilibrar-me numa bicicleta, reaprendi a dominar de novo a mota, recuperei o gosto pela leitura, recuperei o gosto pela escrita, estou pronto para outra, obrigado Luisinha, obrigado Dr.ª Cármen Corzo, obrigado enfermeiro Agostinho Monteiro, estou aqui para o que der e vier e até para um dia estar como hei-de ir, como havemos de ir todos, com os pés para a frente … 





O TANGO-LO-MANGO * 

Eram nove irmãs numa casa,
Uma foi fazer biscoito;
Deu o tango-lo-mango nela,
Não ficaram senão oito.

Destas oito que ficaram
Uma foi amolar canivete;
Deu o tango-lo-mango nela,
Não ficaram senão sete.

Destas sete que ficaram
Uma foi falar francês;
Deu o tango-lo-mango nela,
Não ficaram senão seis.

Destas seis que ficaram
Uma foi pelar um pinto;
Deu o tango-lo-mango nela,
Não ficaram senão cinco.

Destas cinco que ficaram
Uma foi para o teatro;
Deu o tango-lo-mango nela,
Não ficaram senão quatro.

Destas quatro que ficaram
Uma casou c'um português;
Deu o tango-lo-mango nela,
Não ficaram senão três.

Destas trêsque ficaram
Uma foi passear nas ruas;
Deu o tango-lo-mango nela,
Não ficaram senão duas.

Destas duas que ficaram
Uma não fez cousa alguma;
Deu o tango-lo-mango nela,
Não ficaram senão uma.

Essa uma que ficou
Meteu-se a comer feijão;
Deu o tango-lo-mango nela,
Acabou-se a geração.

* (Versão POPULAR recolhida por Sílvio Romero)