segunda-feira, 13 de março de 2017

420 - TRÊS DE AREIA E DOIS DE CAL .....................


Hoje fui surpreendido, bem não fui surpreendido, surpreenderam-me, e considero não só agradável essa surpresa, como terei que a considerar uma inaudita surpresa, daquelas que de todo não esperamos e que, embora nos deixem de cara à banda, nos deixam feliz o coração. Tanta felicidade porque hoje trouxe para casa um almoço que era uma trampa. Vamos por partes, primeiro a sopa, depois o segundo e por fim a sobremesa.

Quando eu e a Luisinha andamos mais atarefados, assoberbados ou incapacitados, por falta de tempo, de paciência seja o que for, socorremo-nos duma cantina e refeitório de funcionários públicos aqui próxima de casa. Hoje, umas lulas mal feitas como a merda e a saberem mal como o caraças acabaram por gerar uma conversa interessante entre nós, e coisa incrível, entre essas lulas intragáveis e um leite creme flutuando em canela houve tempo para a gente, ela ter-me-ia repreendido aqui e obrigado a usar o nós, ela, a Luisinha, mas ia eu dizendo que entre as duas coisas ainda houve tempo para nós nos descobrirmos, ou eu descobrir coisas novas e surpreendentes sobre ela depois de quarenta anos de casados.

- Pois é Bertinho, esta coisa da cozinha, de cozinhar, não é um dom que Deus tenha concedido a algumas, ou alguns, evidentemente há quem tenha mais jeito para a coisa, mais habilidade, mas isso acontece com electricistas, médicos, médicas, canalizadores, enfermeiras, etc., o problema é que muita gente esquece que cozinhar envolve compreender as ciências físico químicas que, pelo menos num aspecto básico todas estudámos na escola.

- Sim, eu também as estudei mas nunca as liguei à cozinha Luisinha.

- Pois é mas tu tinhas a Mocidade Portuguesa, e o dia do Lusito, e a Bufa, e eu tinha Lavoures e uma coisa que salvo erro se chamava Economia Doméstica a que muita gente nem ligava, não apreciava, calhei estar desperta, não tanto por a minha avó Joaquina ser uma excelsa cozinheira, como sabes, ou até a minha mãe que Deus tem, mas sobretudo por ter tido como mestra, naquele caso dizia-se mestra e não professora, uma mulher genial, ainda há-de aparecer perante mim um homem tão genial como essa mestra Dominica sabes ?

- E eu pá ?? E eu ? EU ????? Olha que tu também…

A mestra Dominica não ensinava, só falava, contava histórias, mas aquela mulher tinha o dom de ensinar, constava até não ser lá muito boa cozinheira, a verdade é que jamais a esqueci, a ela e às suas soluções, solutos, solventes, concentrados, reacções e reagentes, proporções, ocorrências, saturação, densidade, tempo e temperatura, física pura Bertinho, física e química filho, era termodinâmica, ou seja é física, é o estudo das causas e efeitos das mudanças que a temperatura potencia, ou antes propicia Bertinho, quer quanto à temperatura em si quer quanto à pressão e ao volume, por isso em cozinha nos socorremos de panelas de pressão, e se não tivermos cuidado com elas a pressão faz aumentar as coisas e sai tudo pelo fuinho de segurança, por esta válvulazinha, já me tens ajudado a limpar a porcaria dos azulejos da cozinha… Calor é energia querido, energia dinâmica, movimento, a termodinâmica essa energia não só coze, cozinha os alimentos, os transforma, como cria movimento, cozinha mas também fez andar as primeiras máquinas a vapor, aquela dona ou mestra Dominica era um must, eu ficava duas horas de boca aberta ouvindo-a, babando-me, e para ser justa só uns anos mais tarde a apreciei bem e fui capaz de reconhecer quanto de excepcional aquela mulher era.

- Essa não sabia eu Luisinha, nem fazia a mínima ideia, sabia que tinhas tido essas disciplinas claro, todas vocês tinham, mas que te tivessem impressionado tanto nunca teria acreditado. Mas essa do tempo e da temperatura alterarem sabor e textura ta boa, alteram a química, ta bem visto sim senhora, e o segredo no saber dosear a coisa, e mais um cadinho disto e daquilo, ter mão no acafrão...

- Não é uma questão de impressionar, foi antes uma questão de saber ensinar, a tal ponto que quando tive ciências já estava familiarizada e conhecia os termos, foi-me portanto mais fácil aprender ciências, ao mesmo tempo facilitou-me a compreensão da matéria de Economia Doméstica e do acto de cozinhar, acto velho como o homem, que só depois da descoberta do fogo e de começar a cozinhar ainda que toscamente os alimentos viu as calorias durarem mais tempo, o estômago despender menos esforço a moer tudo, moer e desfazer, e lá está a química a funcionar, os sucos solventes, os ácidos reagentes, a enterogastrona, a gastrina o suco pancreático, a bílis injectando química naquilo, a solução transformando-se em quimo, depois em quilo, o cérebro crescendo, a raça evoluindo, não sei já bem a ordem das coisas e alguns nomes me hão-de falhar aqui mas no essencial era isto, era e é isto que se passa, no estômago, nos intestinos, mas muito antes numa panela, numa caçarola, num tacho, numa frigideira, é alquimia, cozinhar é ciência e alquimia, claro que também um pouco de bom senso e intuição q.b. a própria expressão q.b. deriva de deitar ou acrescentar a quantidade e o reagente certos, ou a coisa dá porcaria… 

- Tenho que confessar que me surpreendes, caraças Luisinha, quarenta anos depois e quando pensava não seres novidade nenhuma para mim sais-me com uma aula de ciências físico químicas que me deixa de cara à banda, esta trampa já arrefeceu, antes assim, está intragável não está Luisinha ?

- Bertinho, até quando eu deito bicarbonato de sódio na panela para ajudar a cozer os grãos nada mais estou fazendo que antecipando trabalho que caberia salvo erro ao intestino, por isso quando tu comes os grãos irás ter menos trabalho a digeri-los, d’outro modo o bicarbonato de sódio só entraria em acção quando o “bolo” o quimo chegasse ao intestino, e assim quando fores à casa de banho graças a este meu truque de magia alquímica até fazes mais molinho amorinho eheheheh !  

- Para quem comeu um almoço de caca estás muito bem-disposta, bem, tu na verdade nem comeste, insiste na fruta querida, não podes passar em branco, logo lanchamos mais cedo querida.  

- Estou sim, bem-disposta e grata àquela mulher que já não recordava há muitos anos, estávamos em 73, em 73 ou 74 mas lembro bem que foi antes do 25 de Abril, o que não recordo bem foi se ainda na Escola de Santa Clara ou já na Preparatória da Rua Mendo Estevens, frente ao jardim do Bacalhau, e lembro que foi antes do 25 de Abril porque com o 25 de Abril ela desapareceu, desapareceu de Évora, levou sumiço, quero dizer levou o ano até ao fim, até Julho, depois nunca mais ninguém a viu por cá, a mim deixou-me saudades, saudades e uma dívida da qual somente passados anos tomei conhecimento, talvez porque se vivia no velho regime ela ao dar uma receita jamais chamava os bois pelos nomes, nunca nos deu uma receita de frango em tomate, as receitas dela eram sempre Frango à Anne Frank, Espargos à Catarina Eugénia, Cação à maneira de Carolina Beatriz Ângelo, Pezinhos à moda de Ana Castro Osório, Peixinhos da horta como os de D. Teresa Horta, Rolo de Carne de Emmeline Pankhurst, Polvo à Maud Watts, Os Mil Bolinhos de Millicent Fawcett ou Ensopado à maneira de Emily Wilding Davison, curiosamente nunca mas nunca deu a mais pequena explicação quanto a quem eram todas aquelas mulheres que tomámos naturalmente por excelsas cozinheiras de fama mundial.

- E afinal não eram ? Se não eram cozinheiras o que eram então ?

- Não imaginas Bertinho o choque que tive quando pelos meus quinze ou dezasseis anos ouvi ou li pela primeira vez o nome de Anne Frank, claro que quis logo saber tudo sobre a tal cozinheira da receita de frango, imaginas o meu espanto quando vi quem era Anne Frank, o espanto virou curiosidade, corri a saber quem eram as outras cozinheiras e nessa tarde chorei baba e ranho agarrada a uma enciclopédia nova que chegara à biblioteca, tantos anos depois D. Dominica acabara de me dar a sua última lição de culinária e nesse momento amei-a tanto quanto à minha mãe e à minha avó Joaquina.

Confesso que também eu fiquei impressionado com esta mulher, esta D. Dominica, professora Dominica de quem a Luisinha nem o apelido recorda, é bom, é reconfortante saber que mesmo nos tempos mais fumegantes do velho regime, fumegantes pois de cozinha e cozinhados tratamos, houve gente que não se rendeu, que não temeu, que foi exemplo quando ser exemplo era raro e exemplar, era sobretudo perigoso e exigia coragem inaudita, ao invés de agora que se calam, que comem e calam, que engolem e calam, que podiam gritar e se calam, todos, ou quase todos, no mínimo muitos, demasiados…  

Três de areia e dois de cal, não me ocorreu dar outro título a esta história em que o almoço servido parece ter sido confeccionado tal qual a massa dos mestres, dos trolhas, a balde, devem ter atirado para o caldeirão as lulas, cebolas e pimentão, uma mão cheia de sal, um saquinho de cravinho, um frasco de noz moscada, uma mão cheia de salsa e outra de coisa nenhuma, tudo ao molhe e fé em Deus, ignorando as reacções destes reagentes perigosíssimos, piores que nitroglicerina e a usar com parcimónia. Por isto, por cozinhar ser perigoso me lembrei de escrever e vos deixar de sobreaviso após esta conversa c’a Luisinha, e continuo a reiterar ter em boa verdade ficado estupefacto, 40 anos depois ainda aprendo coisas sobre ela, coisas que, juro-vos, não sabia nem imaginava, e olhem que até com a canela é preciso muito cuidado e cautela. Esta vida …