terça-feira, 25 de abril de 2017

429 - ALCÁCER-QUIBIR, DISSE O ASTRÓLOGO

  
Observo neste domingo ensolarado pela montra de vidro, antigo, biselado, o movimento na rua e, destacando-se entre os intervalos do ferro forjado, na orla do quadrado que a montra qual moldura desenha na parede deste vetusto prédio, os traços argênteos duma loura parecendo carregar sobre os ombros pesada melancolia, delineando-lhe a irregularidade dos passos num rumo apontando à solidão e em cuja projecção se atravessa uma florida mimosa atapetando de amarelo o chão por ela pisado mas que não pisa, pois chuta p’ra diante as flores, p’ra diante e para longe ficando eu pensando no meu recanto se aquela mulher loura carregando tanta tristeza, retirada, recolhida em si mesma, supondo eu ao ver-lhe vagamente no dedo uma aliança, se o fará por entretanto ter criado aversão ao casamento, não tendo eu contudo a certeza de ser ela casada ou não e a ser, se terá falhado esse vínculo cuja existência uma visível mágoa parece denunciar.

Mágoa espelhada numa carinha de anjo de rara beleza, uma beleza rara, daquelas capazes de conduzir à loucura o mais listo, uma loucura translúcida, das que se podem carregar sem que os demais dela dêem conta, dela loucura, não dela beleza, porque a beleza essa é elegíaca, insensata e extravagante de manifesta duplicidade, tanto nos fazendo meter para dentro como sair de nós mesmos, cada um de nós a seu modo inda que raramente imbuídos ou impelidos por um raio de luz que, professara um astrólogo, desde Alcácer-Quibir seria por alguém cavalgado numa manhã fantasmagórica de nevoeiro.

Porém quem nos surgiu e surge não passa nunca de cornaca, bufarinheiro, ou marinheiro, como com o último anacoreta aconteceu, o mesmo que se apresentou totalmente tatuado, roda de marear nas costas da mão direita e, na esquerda, compasso traçando firme um azimute certamente arrancado duma bússola, essa palavra esdrúxula, rumo que sob a luz trémula da incerteza torna duvidoso o caminho apontado a uma miragem e, quando já perto da margem, da orla, dissipado o nevoeiro o comandante avistou terra, algumas aves raras e uma estranha e florida ilha, acorreram a vê-la, interessados, em júbilo e em horda incessante toda a marinhagem, toda a canalha arrebanhada para as artes da nau em véspera anterior à partida por tavernas, albergues e bordéis e, entre todos eles nem um probo, antes e na generalidade cobaias, heróis uns mártires os outros, todavia a todos o mar, os ciclones, tornados, furacões e o escorbuto dava conta, levando-os a lento agonizar e profunda depressão.

Fundearam num extenso vale entre montanhas albergando o planalto aí existente uma vasta planície por onde deitaram correndo na sua sede de terra, tremendo, de pernas bambas, dolentes, inseguros e induzidos ainda pela dança dos balanços no mar, tendo reparado então que de terra todos quantos para eles acorriam dando as boas vindas estavam loucos, esfarrapados e esfomeados. Foi só nessa ocasião que a tripulação, em delírio e dando conta da sua própria demência reparou em toda aquela faixa de terra estéril, num lindo e florido jardim à beira mar plantado pelos andrajosos indígenas, entretidos há quarenta e três anos lançando ao mar nas noites de lua cheia e do alto das falésias os mortos purulentos de olhos cavados e línguas inchadas, a fim de poderem ver o mar levá-los como foice prateada nas mãos de ceifeira desastrada.

Alguém trouxera do navio uma ampulheta e duas clepsidras, ajeitando-as equilibradas na praia, sobre o cadáver dum cachalote em decomposição ao qual já tinham comido uma barbatana, assim calcularam o tempo, a hora, o dia, e, com o luar no auge estimaram estar a viver esse prodigioso momento numa terça feira, p’las zero horas do dia 25 de Abril daquela terra onde a diferença entre natureza e sociedade não chegara ainda, nem chegaria nunca, mas quem o sabia ?

E, enquanto na abóboda celeste a lua caminhava lentamente, em terra os loucos e os dementes festejavam sem saber o quê, lançando uns os foguetes e correndo os outros a apanhar as canas, das quais uma loura ensimesmada e receosa se ia desviando desde que se conhecera a si mesma, temente dum medo que agora não lograva evitar, esquecida da medicação, esquecida das consultas, recordando somente que a primeira cana a assustara mais do que ferira já lá iam quarenta e três anos, quarenta e três anos em que fugia a uma festa que não compreendia mas que perniciosa insensatez ano a ano replicava automática e irreflectidamente reproduzindo-a sem refutação,  agora sem graça por não haver quem saiba biselar um vidro ou construir uma janela em ferro forjado a cuja montra possamos sentar-nos observando através dum vidro antigo, trabalhado, biselado, o movimento da rua num qualquer domingo ensolarado.  


sexta-feira, 14 de abril de 2017

428 - POESIA OU PROSA, GOSTOS NÃO SE DISCUTEM ...


Gosto de poesia, contudo deixo desde já bem claro não ser ela a minha praia. Gosto de ler poesia, e se consigo entendê-la, não estou ainda à altura de a depurar, quanto mais de a elaborar duma forma perfeita, elegante, como a prosa que vou tentando e conseguindo umas vezes, outras nem tanto. A prosa sim, é a minha praia e a minha onda, adoro cavalgá-la e, sempre que posso, ou estou lendo ou escrevendo, entre uma e outra coisa venha o diabo e escolha.

Desde cedo a literatura me seduziu e acerca dela poderia dizer o que Sócrates nos disse falando para si mesmo, conhece-te a ti próprio, e eu, quanto mais sei de literatura mais concluo só saber que nada sei. Nunca tive ouvido para a música ou mãos para tocar viola, mas fico feliz com um livro à minha escolha ou com quatro folhas de papel e uma boa esferográfica, deslizando bem, correndo bem sobre o papel e me permita acompanhar as ideias sem que as perca. Falo da prosa claro, porque a poesia demora, tem uma maiêutica dificílima, a formatação demorada, é como uma gestação, é parida a custo, e aqui os cuidados serão antes não esquecer meter a tampa na caneta para que a tinta nunca seque no aparo.

Uma seca a poesia ? Eu não diria, alguma talvez, não a maioria, mas com a poesia chia mais fino, e o que menos conta será a rima. A poesia é do âmbito do transcendente, é uma subjectiva objectividade múltipla, como quem espreita um caleidoscópio ou se delicia com uma mandala. A poesia intima-nos, exige de nós muito mais que uma qualquer prosa, por vezes intimida-nos e tanto nos pode assustar como deslumbrar, comover ou convocar a raiva, a solidariedade, tanto quão a repulsa ou a rejeição.

E não faz isso a prosa ? Claro que faz, é evidente que faz, mas não o faz num verso, num soneto, num poema, numa estrofe, é esse o ponto fulcral da poesia, a prosa lida com descrições, explicações, narrativas, parágrafos, pontos finais e reticências até nos dar uma imagem, até que percebamos onde quer chegar, a poesia dá-nos imagens, atira-nos com imagens, convoca-nos ante uma imagem baseada em três palavras ou três linhas, confronta-nos com metáforas, toma, pensa, medita, desvenda, traduz, desenrasca-te, bastando uma palavra para nos exigir que saibamos ou tacitamente reconhecer que conhecemos todo um texto, todo um livro, toda uma história, trabalha num patamar diferente a poesia, num degrau mais elevado, não como o arame farpado e rasteiro que evita as vacas no lameiro, trabalha no arame, no limite, brinca connosco, faz malabarismos, ri-se de nós umas vezes elogiando-nos noutras e, nalgumas raras ocasiões condecora-nos.

A poesia não ensina, exige que saibamos, que conheçamos, mas depois, maravilha das maravilhas, torna-se cúmplice, de sentimentos, sensações, e confronta-nos com o que sabemos com o que julgamos saber, sobretudo com aquilo que ignoramos saber. Diria que a poesia nos convoca, nos convida e desafia a entrar e a desvendar o seu mundo imagético cuja diegese a partir desse momento reparte cumplicemente connosco, bandeirantes da sua geografia, aprendizes de feitiçaria, duendes numa floresta de gnomos e gigantes de um mundo nem liliputiano nem dos ciclopes onde se nos torna acelerada a pulsação, precisamente quando reclino a cabeça, fecho os olhos deixando-me transportar, viajar no espaço e no tempo, ou num abraço ternurento, outras vezes sobrevoando uns lábios sequiosos mergulho num corpo quente, abrasando, sendo então que em sobressalto acordo e corro a tomar um duche frio pois a sensibilidade da poesia afoga-me os sentidos num caldeirão em turbilhão, em lume quente, ebulição, fazendo que me sinta João Ratão rodeado de canibais famintos, dançando em transe em redor duma fogueira ameaçando cozer-me em lume brando mas, soltando um urro animal deselegante furto-me ao fantástico e fantasista erotismo sensual do amor poético cuja fantasia, enrolando-me, enleando-me, ameaça quebrar-me submisso ao fogo que ela mesma aviva com ervas de cheiro, rabos de lagartixa e folhas de ulmeiro, cujas fragrâncias me enovelam quixotescamente dentro das palavras que eu próprio murmuro.

E agora ? Agora, outro duche naturalmente …




quarta-feira, 12 de abril de 2017

427 - UMA CASA MILAGROSA * ..............................


Frei Baltazar estava satisfeito, vira-se livre da velha abadia que remontava ao tempo dos romanos, conseguira aproveitar todos os materiais ajudando-se a poupar para o muito ainda a gastar, a satisfação notava-se-lhe nas bochechas avermelhadas que as noviças adoravam repenicar, mas só quando tinham oportunidade e sempre que a irmã Blimunda, a madre superiora, não as estivesse observando.

Frei Bento, dando passinhos mais parecidos com saltinhos percorria o perímetro das obras, mãos cruzadas sobre a pança, impando de contentamento como só um abade sabe impar. Depois de quarenta longos anos conseguiram erguê-la, pô-la de pé, não sem que tenha tido que arrancar grandes exigências aos mesteirais, aos mestres e operários cujas vidas eram passadas ali, mas finalmente ali estava ela, solenemente erguida apontando aos céus numa prece ao divino Senhor.

De modo elegante tinham solucionado o problema das altas paredes, altas e estreitas, altas e finas, atreitas a tombar, mas em simultâneo a solução encontrada evitaria que caísse sobre elas o peso do tecto da cobertura, da abóboda à cúpula, da abside e deambulatório e do baptistério claro não o esqueçamos nem à sua importância.

Durante alguns dias houve festa na vila, arlequins, bobos, aedos, caçadores de faisão no braço, archeiros e cavaleiros, tocadores, todos e cada um no seu mister contribuíram com canções, músicas, habilidades e jogos para as festas daqueles dias de alegria, mas uma preocupação dominava alguns deles, depois de assentarem o tecto que seria da luminosa claridade que deveria preencher a casa de Deus ?

Naquelas finas, graciosas extensas e elegantes paredes teriam que ser rasgadas janelas, teria que ser aberto caminho à luz, mas como evitar que por elas entrasse também a inclemência do clima ?

Ainda a obra não estava completa e já Frei Bruno para ela conduzia as criancinhas na hora da catequese, o seu jeito para contar histórias era um tributo à tradição e à oralidade, tendo sido ele mesmo quem sugeriu ao mesteiral-mor aproveitar aquelas paredes e nelas pintar cenas da vida de cristo, do nascimento à morte, parábolas dos evangelhos, pinturas em cores vivas que o ajudassem na divulgação do exemplo de vida e da palavra de Deus. O mesteiral-mor anuiu num movimento do queixo e desandou, pois tinha que vigiar o trabalho dos canteiros vindos de Carrara e a quem fora entregue uma valiosa quantia para a feitura de uma dúzia de estátuas marmóreas.

Alguns dias depois, vendeu o mesteiral-mor ao mestre artesão da obra e como sendo sua, a ideia de pintarem nas paredes grandes painéis aludindo à vida, obra e exemplo do Senhor, pinturas alusivas aos dez mandamentos por exemplo, ao que o dito artesão, cofiando a barbicha, respondeu: Não poderia ser assim, pois as paredes teriam que ser rasgadas, abertas, inda não sabia como mas teriam, a fim de deixar entrar a luz.

Numa anterior conversa soubera esse artesão, de nome Geraldo, através do comerciante Nacodemo, terem em Itália, em Murano, perto de Veneza, o clã Barovier, uma antiga família de vidreiros, inventado o vidro plano e sobretudo o modo de lhe dar cores, que adicionavam ao vidro e o tornavam ligeiramente opaco mas alegre e lindamente colorido, pelo que em sua mente começou a brotar a ideia de rasgarem as paredes sim, mas preenchendo o espaço com esses vidros, painéis grandes desses vidros às cores, e matutava nisso quando frei Benedito se aproximou com um cesto de ovos assentes em palhinhas.

- Ovos de grifos frei Benedito ?

- Saiba vossa mercê que só após comidos saberá se sim se não, pois que os trouxe para com prazer os ofertar a vossa senhoria.

Quebrado o gelo teve o artesão oportunidade de dar conta ao frade dos seus pensamentos, das paredes rasgadas, do vidro de Murano, da hipótese de painéis coloridos taparem o espaço aberto e protegerem da inclemência do tempo mas permitindo a entrada de luz, podiam mesmo animar a nave com painéis de vidros aos quadrados, ou faixas de diversas cores, um vidro colorido ligeiramente opaco e lindo, tal vidro prestava-se a isso, que achava o bom frade da ideia ?

- E porque não construírem painéis com figuras, aproveitando a diversidade de cores e a habilidade de mestre Nicolau ? Ninguém corta vidro como ele ! Já que não podem pintar as paredes, pois se terão que ser rasgadas, então que não pintem, ao invés de pinturas criem-se desenhos, porque não ? Que pensa vossa senhoria desta minha humilde ideia ?

- Não está mal pensado não padre, os caixilhos vão ser um problema mas tudo se há-de resolver ! Porém, com a ajuda de Deus, nada haverá que mestre Bonifácio não consiga.

Dez anos depois desta conversa era inaugurada a nova catedral, lindas colunas sustentavam por dentro o peso da nave, no exterior os contrafortes, agora desferindo graciosos arcos a que chamaram arcobotantes, escoravam as esbeltas paredes lindamente guarnecidas de painéis coloridos, cada um deles versando um episódio da vida de Cristo, e, beleza das belezas, à medida que os viajantes se aproximavam do templo todos reparavam num enorme círculo encimando a frontaria e que depois de entrarem a todos deslumbrava.

Esse círculo permitia que o sol da manhã irrompesse pela nave, mas também a inundava das várias cores com que o vidro que o preenchia imitava uma rosa, uma mandala, o fundo de um caleidoscópio, coisa mais linda ! exclamavam todos, enquanto as criancinhas se quedavam embevecidas ante as histórias coloridas que as paredes contavam.


Uma menina de dez anos, Leonor de seu nome, com um cãozinho no colo, não descansou enquanto não viu com os seus olhos uma catedral perto de si, adorou, ela que tanto gostava de cores e de desenhar. 


*
https://www.google.pt/search?q=Catedral+medieval+de+Bruges&espv=2&tbm=isch&tbo=u&source=univ&sa=X&ved=0ahUKEwiyz82_55_TAhVMkRQKHRKyAaQQsAQIIQ&biw=1024&bih=548#imgrc=mEdxPZ8znefqrM:

 Altar da Igreja dos Salesianos - Évora, onde o vitral tem um efeito meramente decorativo e de aproveitamento da luminosidade natural. 
  Igreja dos Salesianos - Évora, vitral, tem um efeito meramente decorativo e de aproveitamento da luminosidade natural. 
  Igreja dos Salesianos - Évora, vitrais, têm um efeito meramente decorativo e de aproveitamento da luminosidade natural. 
  Igreja dos Salesianos - Évora, vitral, tem um efeito meramente decorativo e de aproveitamento da luminosidade natural. 
 Baptistério da Igreja dos Salesianos - Évora, onde o vitral tem um efeito meramente decorativo e de aproveitamento da luminosidade natural. 

terça-feira, 11 de abril de 2017

000426 - UMA VOTAÇÃO VINGATIVA......................


Ao chegar trazia Júlia a bagagem recheada de conhecimentos, uma autoconfiança difícil de igualar e coisa rara em Portugal, onde a maioria é de um paroquialismo de pasmar e ao qual Júlia contrapunha um cosmopolitismo vivido, e, para além deste, uma boa ligação profissional, enfim um bom partido para qualquer interesseiro, não que Júlia procurasse homem, não procurava, era mais do género de escolher um bonitão à mão e dar-lhe ordens, ciente e convencida que estava de que os homens fugiam dela, tinha perfil a mais para eles dizia ela.

Eu só comento ou transmito não sou de me meter na vida alheia, o problema era ela ter tido quantos queria mas não conseguir o que desejaria, Júlia tinha voz grossa, calçava botas, gostava de gritar ordens e adorava ficar por cima, demasiadas particularidades, digamos antes que demasiados predicados para qualquer garanhão luso, ou macho latino, incapaz de suportar as esporas nos quadris ou levar para casa uma fêmea sem o freio nos dentes.

Mas já que esmiuçamos aqui o perfil ou a vida de Júlia, e quando digo esmiuçamos, nós esmiuçamos, é bom que esclareça quem seja este nós, esta entidade plural e na mesma linha e para não ficar anónimo o narrador sou eu mesmo, digamos para simplificar que HB, ou mais singelamente H, pois não estou aqui para desbobinar a minha história mas a história de Júlia e de outros personagens e agora sim chegámos ao nós, nós em redor de uma mesa de café vendo a vida passar e cuscando neste e naquele, que é como quem diz nesta e naquela, desta vez calhou a sorte a Júlia, a sorte ou o azar, não iremos perder muito tempo com ela, a fila é grande, enorme, e os personagens vão passando à nossa frente em passinhos cadenciados, a maioria soma e segue, de quando em vez detemo-nos mais tempo que o habitual neste ou naquela, ou porque tenha uma vida que colida ou impulsione, ou interaja, agora diz-se interaja, portanto seja interaja mais com os demais, ou porque tenha dado uma qualquer palmada, ou arranjado um qualquer lugar à amante, à mulher ou à família, ou até, valha-nos Deus mas temos que dizê-lo em nome da verdade que reclamamos, ou porque alguma que passe diante de nós sobressaia da fila, é uma fila e não uma bicha, na bicha é pressuposto alguém estar à espera de algo o que não acontece aqui, aqui ninguém espera nada de ninguém pelo menos desde a idade média, cada um amanha-se como pode, a vida está difícil, é impossível a cada um governar-se levando-a direita pelo que há que arranjar sempre um esquemazinho, um complementozinho, ninguém leva a mal, compreende-se, mau mau é a coisa rondar uns milhões, muito acima das necessidades portanto criticável, mas debrucemo-nos sobre a bicha, perdão fila, uma bicha traz conotações duvidosas de género e número e não queremos aqui nada disso portanto fila, observamos a fila da mesa do café como se duma alta janela de sacada o fizéssemos, e este por isto, aquele por aquilo, quem diz este diz esta, até por simplesmente umas mamas de valorar, umas pernas de encantar, um cuzinho de apreciar com mais acrimónia, é beleza, trata-se de beleza, de arte, as nossas apreciações são sempre na esfera do artístico, do louvável, do que sobressaia dentro dos cânones estabelecidos desde a antiguidade clássica, passando pelo rejuvenescimento do renascimento até nos determos no rococó ou nos pormenores do barroco, e Júlia, posso garantir-vos quase tinha arrancado a unanimidade a esta mesa não tivesse sido o revanchismo do Lopes.

É bom tipo acrescento eu, custou um nadinha a adaptar-se à reforma mas foi ao lugar, claro que ficam sempre recordações, dos colegas, mais das colegas, dos dias de trabalho, do envolvimento, do stress, sim esse, o da Lusa sim, esse mesmo, o irmão do bancário, exactamente ele era o mais novo, tal e qual, acertaste em cheio, linda, sim, essa mesmo, casou com ela ou não sabias? Um mulherão, uma mulher lindíssima, que eu saiba sempre foram muito felizes, exactamente dantes era a ANOP, só mudou depois do 25 de Abril, se brinca com modelos, acho que sim, desde gaiato que ele adorava e coleccionava modelos, tinha centenas, bem agora deve ter milhares, modelos à escala, automóveis, carros de bombeiros, da policia, eu sei lá, bom tipo o Lopes mas a merda é que veio estragar o perfil da Júlia, todos a votar sim e vem ele com uma abstenção, ao menos tivesse-se afirmado, ou sim ou sopas, ou sim ou não, e afinal a história tem uns trinta anos, ou à volta disso, nada que justificasse o voto fora do baralho do Lopes, passados trinta anos ainda não engoliu aquilo, mais valia ter ficado em Olhão em vez de ter regressado, ou então ter lá deixado essas lembranças negativas, mas não, continua o mesmo machista de sempre, sempre negou mas a verdade aí está a ditar-lhe esta pequena vingança, razão tinha ela em não querer por nada ser colega deste malacueco, enfim, coisas que já lá vão, esqueçamos, o que interessa reter é o facto de Júlia ter arrancado sempre, repito e reforço sempre, a unanimidade positiva desta mesa até há pouco tempo e já ela vai com quarenta e muitos ou cinquenta, e agora que o Lopes apareceu como quem vem das catacumbas é que votações tão limpinhas são colocadas em causa e o assunto gera dissensões nesta mesa.

Sempre houve ou haverá gente que se recuse a engolir ou a vomitar a verdade, digamos que a admiti-la, ou a aceitá-la, o Lopes era um desses. Fora colega de Júlia escasso tempo, escassos momentos, mas a personalidade dela deixara-o marcado para sempre, ele não tinha pedalada para ela, e só reparou nisso tarde demais. Júlia fora-lhe recomendada:

 - Ó Lopes, vai-te aparecer aí um mulherão, uma nova colega das reportagens, alta, boa como o milho, é francesa, faz o que puderes por ela, colaboração máxima, e põe-te a pau, evita merdas, a gaja é agora a coqueluche da redacção e o Peres não é capaz de lhe negar nada, aproveita e apoia-a, faz o melhor que puderes, abraço.

Resumidamente fora assim que a nova colega lhe fora apresentada, ou recomendada, Júlia era nessa época efectivamente do melhor que a ANOP tinha mas pouco tempo foram formalmente colegas pois Júlia acabaria detestando-o, enfim, uma história com dezenas de anos...

Sucede que acerca daquele tão bem guardado episódio da vida do Lopes como se de um secreto segredo se tratasse se poderia dizer com alguma certeza só a Mariazinha o conhecer, foi ela quem nos contou tão caricato episódio, com o devido cuidado e cortesia, a fim de que o Lopes não se apercebesse da manobra não fosse ele começar a escoicear pois não há nada mais perigoso que um macho latino se lhe trilham os tintins.

A história, essa mesma história tem diversas versões umas mais alarves que outras, umas mais romanceadas, curtas ou compridas, hilariantes ou trágicas, mas no fundo andam todas à volta da mesma questão principal, questão essa que o Lopes nega veementemente e Júlia não confirma nem desmente. Por mim ficar-me-ei pelo essencial, pelo básico, cada um de vocês que tempere a coisa a desejo, que a pinte cómica ou a imagine trágica, já os gregos iam para o palco com três máscaras que o actor mudava consoante o guião da peça, por isso não me cabe a mim ajuizar da veracidade ou fidelidade da história que é contada há mais de trinta anos.

Estariam os dois a beber umas cervejas empoleirados naqueles bancos altos e ao balcão da “Choupana”, e, ou porque a sapateira demorasse a partir, ou os percebes a cozer, ou a arrefecer, o que se diz é que o Lopes andava quente há demasiado tempo, eu diria a escaldar como fazem às lagostas na dita “Choupana”, e terá avançado com algum dito menos feliz ou mais mal recebido, e é aqui que a história carece de base porque o que o Lopes terá dito, ou como ele diz, nunca disse, é coisa que só os deuses saberão, é pormenor que nos escapa e até o Manel da “Choupana” que os servia, não o ouviu, só a ouviu a ela e posteriormente contou, com todas as letras, vírgulas e pontos finais, e de exclamação, suponho, foi mais ou menos isto pois também eu, que lá não estava fujo de apostar aqui a minha reputação, vamos a isto;

- Ó amigo Lopes, guarda lá o tostão (ou tostãozinho, as versões divergem) e a tesão que eu detesto gajos querendo saltar-me para a cueca, até nem és dos mais feios e já me tinha ocorrido levar-te para a cama mas a tua precipitação e a falta de jeito deitaram-te a perder, eu gosto de ser fodida mas com romantismo, jamais por um qualquer galo convencido, vamos esquecer isto e ficar amigos como dantes?

Claro que nunca mais ficaram amigos como dantes, o amor-próprio do Lopes foi arrastado pelo chão, ele ficou vermelho que nem um pimentão, guardou a carteira (ia pagar quando largou o infeliz dito e ela retrucou de modo azedo) ao descer do banco de cavalete tropeçou e quase se estendeu ao comprido, desapareceu e por longos meses ninguém o viu na “Choupana”. Terá sido na sequência deste infeliz episódio que o Lopes se empenhou em mudar e só parou quando o conseguiu, foi para a Olhão, chefiar a recém inaugurada agência da ANOP ou da Lusa no Algarve tendo regressado ao nosso convívio somente decorridos mais de trinta anos de esquecimento em que ninguém esqueceu coisa nenhuma. Há acontecimentos que se nos colam à pele como uma chaga, como lepra como um estigma acompanham-nos vida fora, até ao caixão. E agora entretém-se fodendo-nos as votações…


segunda-feira, 10 de abril de 2017

425 - JULGUEI-TE JÁ NO MONTE DE S. GENS *



JULGUEI-TE JÁ NO MONTE DE S. GENS  * …

Quem sabe um dia não lhe poriam Bento ? 
Ou Sofia ?


Esvoaçam gulosas as abelhas,
p’los campos e p’los montes,
elegendo lírios e flores de giesta,
num hino à vida, tal qual dois amantes.

Amantes para quem são um sonho os montes,
ou um monte, amor e uma cabana,
o devir, os momentos, os instantes,
onde descansem de sonho ou fantasia insana.

Até mesmo na cozinha, o pote, o mel,
finalmente crestado, lambido, xupado,
as cortinas das janelas um dossel,
a pele de carneiro baldaquino improvisado.

De joelhos se saciam no virgo néctar,
se embebedam, se enleiam, quais fiéis devotos,
cada um erguendo ao outro um altar,
mármore, 
mar de papoilas onde pousam gafanhotos.

Voam saciadas as abelhas,
sulcando as terras,
p’los montes e p’los campos,
par a par, olhando-se, parelha
rasgando horizontes amplos.

E quem sabe, um dia, 
se desse enxerto nascerá rebento,
chamado Bento,
ou da enxertia uma menina, 
a quem poriam Sofia. 

* Humberto Baião - Évora, 7 de Abril de 2017