segunda-feira, 12 de junho de 2017

438 - AS ECLÉTICAS ESTATUETAS DE AZEKEL

                  

Ao visitar junto ao Cunene a aldeia dos hereros, povo da etnia bantu com povoado perto de Calueque, nunca deixei de cumprimentar o velho e sábio Azekel (o que reza ao Senhor) um velho tucokwe, sempre de faca afiada manuseando o marfim pachorrentamente, com solene paciência e excelsa destreza. Hoje, ao lembrá-lo pela segunda vez por ter passado frente à nossa mesa na esplanada uma linda negra, veio-me à ideia um outro velho, o velho Li, que em Macau e com paciência chinesa esculpia diligente e pacientemente em pequeníssimos bagos de arroz, casais de namorados beijando-se, como provavelmente se beijaram Camões e Tin-Nam-Men, a nativa que, diz a lenda, estaria perdidamente apaixonada por ele, já que o velho Li montara a banca quase na gruta de Patane, que segundo a história Camões ocupou, e onde terá escrito os Lusíadas.


Acreditem, o velho Li prestava muito maior atenção aos pormenores que o velho Azekel alguma vez prestou, embora cada um de nós tivesse que socorrer-se de uma lupa se desejasse observar o fruto da sua arte, daí a fila ser grande, a pressa muita, a impaciência maior ainda, a lente sujíssima atrasando-nos, e o guia lembrando-nos o tempo todo do pouco tempo que nos restava para chegarmos ao aeroporto a horas do check in.  Não me recordo do velho Li ter vendido uma única das suas admiráveis estatuetas nos vinte a trinta minutos em que dezenas, centenas ou milhares de nós por ali desfilámos, não sei de que viveria aquele velho seco, alimentar-se-ia de arroz ? Aguentar-se-ia à base de ópio ? O assunto despoletara um sururu só abafado p’la alegria de nos voltarmos a sentar no avião de regresso a Lisboa.


O velho Azekel não comia o marfim mas governava-se bem dele, se governar-se é o termo adequado, guardava numa lata ferrugenta todas as moedas e notas que a tropa lhe desse em troca da sua arte e das duas uma, ou teria umas dezenas ou centenas de latas cheias enterradas ninguém saberia onde e estaria rico, ou era um mistério o destino que o pilim levava, o velho nunca saíra nem saía da aldeia, e se havia coisa de que ele não precisava nem sabia que fazer-lhe seria ao dinheiro. A sua arte, o reconhecimento geral e a consideração que lhe votavam bastava-lhe, era feliz e isso saltava à vista de todos. Feliz como as suas esculturas que a todos que as possuíssem tornavam felizes, estariam enfeitiçadas diziam alguns, dizia-se, naturalmente ninguém acreditava minimamente em tal, compravam-lhas por não haver quem esculpisse mulheres como o velho Azekel, mulheres lindas, mulheres e mamas, seios, peitos, e depois de Deus acredito que ninguém daria à luz mulheres mais lindas que esse velho, a quem a mulher africana deveria estar grata, fosse em marfim fosse em pau-preto ou pau-ferro, melhor que ele só Deus tinha o condão de criar.

 Embora o dinheiro não fosse o móbil o velho vendia as mesmas estatuetas por vezes duas ou três vezes, ou mais, desculpai-me a redundância, todos as queriam ter, como se fossem amuleto da sorte, todos as queriam comprar mas infelizmente nem todos regressavam para as levantar, a vida tem destas coisas, por isso o velho nem olhava a cara nem os olhos dos que lhe pagavam, tinha tempo de os ver se voltassem, sabedoria de velho ou intuição dos tempos que corriam por aquela época. Seja como for guardo eu todas estas recordações e a cara de todos, dos que foram e regressaram, idem para os que não voltaram, e naturalmente da beleza negra da mulher africana, esculpida num dente de elefante do mais branco que há e por motivos pessoais guardara na garagem, numa caixa de papelão cheia de pó e por trás de toda a tralha que ontem desencantei até achar o suporte da mota a fim de o montar na dita, fora-me oferecido pelos amigos Aires / Paixão quando da compra da mota, há três ou quatro anos, e até agora tivera preguiça de o montar, esquecera até onde o guardara, e na busca dei com a caixa desse dente de elefante.


Tinha-o desde 73, mas em 98 por motivos pessoais embalara-o e chutara-o para a garagem. Tudo por saber, desde essa ocasião em especial quão importantes são para as mulheres os seios, à minha companheira surgira um problema num deles, fora obrigada a removê-lo. Meia dúzia de anos mais tarde e mercê da reconstrução fora eu chamado pela Dr.ª Maria A. a pronunciar-me:

- Querido, veja neste catálogo e dentro desse conjunto de três qual deles lhe agrada mais e diga de sua justiça. Não se perca nos outros cinquenta e tal…

e eu disse, escolhi o par empinado, pequeno e empinado, e assim foi feito, reconstruido um e retocado o outro, para que ficassem mui idênticos. Um calvário, só quem passa e vive essas coisas ou as presencia por dentro saberá quanto custam, em sofrimento, em dor, um peito, o outro, depois o mamilo, tira dum mete no outro, segue-se o tatuar da auréola, acertar a cor e o tamanho, tudo custa, tudo tem custos e faz rombos especialmente na auto-estima da paciente, inda que compreensivelmente sempre tivesse feito notar que me bastaria um, afinal aquele onde eu costumava agarrar-me ficara, ela era a mesma pessoa, a mesma companheira, não tinha para mim menos valor por isso e bla bla bla…


Conversa da treta digo eu hoje com acerto, por pouco ou nada ter conseguido quanto a consolação, a Dr.ª Maria A. e o silicone falaram mais alto e fizeram mais por ela que todo o meu paleio, e a verdade é que escolhera para reconstrução um par igual ao dela mas também igualzinho ao do dente de marfim. Por isso o guardei, além de que tudo que lembrasse seios não devia andar por ali à vista dela, que tanto chorara pelos seus. Passei a valorá-los mais, aos seios, a ter mais cuidado com eles, a dedicar-lhes mais atenção, hoje sei haver gostos para tudo e para todos os gostos, não devem por isso as mulheres lamentar tê-los pequenos ou grandes, ou vice-versa, a beleza não está no tamanho, e como diria o velho Azekel, está no momento, está em tê-los, em chaamar-lhes seus, por isso as suas estatuetas se vendiam tão bem, fosse qual fosse o tamanho e o comprimento dos seios que apresentassem.

Há gostos para tudo e havia-as para todos os gostos, o milagre está na nossa mente, na nossa psico, na nossa sensibilidade, no nosso tacto, na nossa mão, o milagre está no amor, no beijo, na boca, nos lábios, na sensualidade, no escuro do quarto, no pensamento, na ocasião, no desejo, na satisfação, todo este mistério não é afinal mais misterioso que a pancada, a tara ou a mania com as almofadas da cama, uns gostam delas altas e bem cheias, outros baixas e quase vazias, há até quem durma sem almofada nenhuma.

Gostos não se discutem.