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sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

407 - MARCELINO - PRESENÇAS E NOVIDADES

     
Tomei um banho e perfumei-me, até porque o velhote é segurança num hipermercado e já fica feliz com o meu cumprimento e sorriso, com um cheiro a lavado e um toque de perfume até vai ao céu. Arrumei a casa para estar limpa quando as meninas chegarem. Depois já sei que vai andar toda fodida. Gosto de arrumações e de asseio. Agora arranjar-me toda, bem produzida e perfumada e sair para um bar ver divorciados isso não... Foi coisa que não fiz, que nunca fiz, nem me mexeria para ir ver divorciados”. Isto ouvi eu na mesa atrás de mim enquanto de pé tomava a bica ao balcão. Queria apressar-me e ter tempo e vagar de admirar e ver uma expo que há muito me suscitava a curiosidade e que o dia de sol, convidativo, compelira a tirar a mota da garagem e a fim de fazer caretas ao estacionamento. 

Há cerca de quinze dias, mais precisamente no dia 15 de Dezembro, visitei na Biblioteca Pública de Évora e disso dei conta, uma desejada exposição do pintor Marcelino Bravo, artista e pessoa que em casa apreciamos e admiramos, sobretudo a sua particular visão do Alentejo e temáticas afins, cousa que este eborense magistralmente reproduz com traços e cores peculiares e inconfundíveis. *

Mas deparei com um Marcelino Bravo fora dos carris** quero dizer descarrilando dos temas a que eu estava habituado e esperava ir encontrar, quer dizer, eu vou explicar. Digamos que metade da instalação era ocupada por temas normais, habituais nele, Alentejo & Cª, o busílis é que a metade restante apresentava telas inovadoras, diferentes, sem título nem tema, aleatórias, de uma corrente anormal ou inusual nele o que me confundiu.

Nem sei se ele conhece os novos caminhos que está a trilhar, pensando bem, retiro o que disse, claro que conhecerá e saberá o que está a fazer, eu é que o não sei, nem lhe conheço os planos, nem tão pouco estou por dentro da sua mente e digo mente porque os novos quadros apresentados são uma coisa da psico, um abstraccionismo psicadélico que esteve em moda há umas boas décadas e geralmente fruto de mentes provocadas, excitadas, estados mentais alterados, coisa que não me pareça ser o caso do nosso amigo Marcelino Bravo. Ele lá saberá das suas razões, e eu confio num eborense que toda a vida conheci ponderado e circunspecto, todavia só agora me pronuncio por ter primeiro querido averiguar a fundo essa coisa dos abstraccionismos, em especial o psicadélico, e que para ser franco eu tinha muito enterrado ou esquecido na memória. 

É que a arte abstracta por sua vez e para complicar ainda se divide em três tendências, o vulgar abstraccionismo, há quem o designe por corrente lírica, expressiva ou informal (Fig 1) e do qual para melhor vos situardes darei os exemplos de Kandinsky, Matisse, Francis Bacon (o artista), Paul Klee, Antón Lamazares, Requena Nozal, Pablo Picasso, Almada Negreiros, Júlio Pomar, Amadeo Souza Cardoso, José da Fonseca, Sandra Bravo e alguns outros mais. Mas deveremos invocar igualmente a corrente mais facilmente identificável do abstraccionismo, a geométrica, (Fig 2) cujo nome diz tudo, corrente de que poderíamos apresentar como representantes, Mondrian, Victor Vasarely, Julio Pomar, Maria Keil, Manuel Gargaleiro, José da Fonseca e Sandra Bravo. Para finalmente chegarmos ao tão, não diria contestado mas inusitado abstraccionismo psicadélico (Fig 3) retratado nas novas telas de Marcelino Bravo e cujos embaixadores chamo aqui, Alex Grey, Pouyan Khosravi, Keerych Luminokaya, Cameron Gray, Michael Garfield, Randal Roberts, Larry Carlson, Android Jones, Jonathan Solter, Matei Apostolescu, José da Fonseca e Sandra Bravo.****

Não esqueçamos jamais que o objectivo desta última corrente, a psicadélica, é caracterizado pela nossa percepção nela de aspectos desconhecidos, inusitados e duma criatividade que poderíamos considerar sem regras ou limites. Estudiosos têm demonstrado que o uso de drogas psicotrópicas expande os limites da mente, limites cujas expressões nos são dadas por essas experiências (alguns chamam-lhes alucinações), que provocarão mudanças de percepção, sinestesia (sentir várias sensações em simultâneo) experiências cujos estados nos darão a pintura psicadélica. Decididamente e a menos que Marcelino Bravo ande a abusar das pastilhas para a tensão arterial não me consta, nem acredito que seja o uso ou abuso de drogas a origem do seu desvio ou desvario (sem sentido pejorativo).

É que isto da arte tem muito que se lhe diga, Van Gogh não cortou uma orelha? Outros não fizeram melhores ou piores figuras ?  Talvez tenham reparado ter eu ali atrás alguns nomes repetidos, não foi erro nem engano, é que raramente um pintor, ainda que exímio numa tendência, não tentou por desfastio, motivos económicos ou capricho meter uma perninha numa outra qualquer corrente ou tendência… há milhares de casos desses, daí que Marcelino Bravo tenha todo o direito de fazer uma incursão fora do seu habitat natural.*** Na realidade eu fui lá há quinze dias e, chocado como fiquei, decididamente não estava preparado, reneguei as novas telas, a que nem dei atenção e nem sequer fotografei, tendo preferido deliciar-me com as restantes. Contudo a consciência levou-me a reconsiderar e anteontem, dia 28, voltei lá para as olhar com atenção a essas novas telas e temas, nova corrente e tendência, e devo dizer que felizmente essas mesmas telas denunciam desde logo o autor, pois continua a observar-se o mesmo cuidado exímio na pintura, mantem-se inegavelmente o mesmo traço, é inequivocamente o mesmo ambiente e decididamente M.B. socorreu-se das mesmas cores a que nos habituara sem fugir um milímetro da sua matriz habitual. Contudo, a haver heresia, e quanto a mim houve, circunscreveu-a à temática de cada tela e aí confesso a minha inabilidade, incapacidade e sobretudo falta de autoridade para sobre essas manifestações altamente subjectivas me pronunciar.

Para mim nada como o velhinho dois e dois são quatro e a arte abstracta ou abstraccionismo é entendida como um modo que não representa objectos próprios da realidade concreta, como uma flor, um pássaro ou uma paisagem, mas ao invés disso compõe com traços e cores uma realidade que faz surgir a partir das experiências estéticas vividas. Também há quem a designe por arte moderna em oposição aos movimentos anteriormente vividos na pintura, dou o exemplo de oposição ao impressionismo inicial ou primitivo e às amorfas naturezas mortas. No inicio do século XX, escolas como o cubismo e o futurismo mais não foram que perseguições duma abstracção absoluta e buscaram sintetizar os elementos da realidade natural, transmutando-a em obras que estilizavam e projectavam a ideia e o conceito do mundo concreto fugindo à mera imitação desse mesmo "concreto observado".

Porém quanto ao psicadélico por onde M.B. enveredou dizem os entendidos serem os aspectos artísticos projecções de mentes (afectadas ou não) e na bibliografia especializada expressões como arte psicadélica ou lisérgica (oriunda de alucinações, como por exemplo ver ou criar na mente algo irreal, como um elefante cor de rosa com pintinhas) referem-se em concreto ao movimento hippie de contracultura dos anos sessenta e ao recurso a drogas psicotrópicas (entre as quais o LSD estava então muito em voga) capazes de alterar os estados de consciência. Ou isso ou uma psicose ou transe originado por êxtase religioso, ora simplesmente não acredito em nada disso, nem tão pouco que M.B. ande a sonhar ou abusando das pastilhas Rennie. Entrou numa de experimentalismo foi o que foi, com todo o direito de o fazer e quem não gostar que meta na borda do prato.  E já agora Bom Ano Novo a todos nós. 













   

Fig 1 Abstracionismo informal, Henri Matisse , fim de dança
Fig 2 Abstraccionismo geométrico, Piet Mondrian, rectângulos
Fig 3 Abstraccionismo psicadélico, Alex Grey, cabeça luminosa












Para que melhor me possais entender deixo-vos algumas telas de M.B. e testemunho do seu peculiar estilo, em cima telas estilo antigo e em simultâneo e em baixo exemplares da nova tendência, a fim de que possais avaliar e comparar a diferença a que aludi e me chocou.
**** Por três vezes aludi aos artistas Sandra Bravo e José da Fonseca, eu explico, em primeiro lugar não existir parentesco algum entre eles e M.B. em segundo lugar tratar-se de jovens artistas eborenses a quem a dimensão do meio em que orbitam e do universo de apreciadores que os rodeiam  jamais lhes possibilitar atingir a dimensão que as suas potencialidades deixam antever, o que lamento. Recomendar-lhes-ia uma mudança temporária para um dos bairros de Paris a fim de ganharem o prestigio que jamais alcançarão cá dentro (santos da casa não fazem milagres como todos sabemos), poderiam optar entre Montmartre, Ile de France, Marais, ou Saint-Germain-des-Prés, nem precisariam de muito tempo, duas ou três décadas seriam mais que suficientes.  






quarta-feira, 23 de novembro de 2016

399 - BRAVO, JERÓNIMO ! * por Maria Luisa Baião

          
           Atravessava um destes dias o nosso burgo, quando ao descer precisamente a Rua de Burgos me lembrei que não deveria deixar passar em claro a tão comentada exposição de Marcelino Bravo, ali à Delegação Regional de Cultura do Alentejo. Em boa hora o fiz, porque não me arrependi, antes pelo contrário.

            A primeira impressão que colhi foi precisamente aquela que as páginas deste diário tinham já anunciado, cores fortes, quentes e emotivas. A segunda impressão foi-me transmitida pelo dinamismo das curvas do seu traço, lembrando o estilo “arte nova” do início do século XX, em que o real era, e contínua a ser pelo que vi, traduzido num estilo livre mas fortemente evocativo, um traço indelével de automatismo nas formas que caracterizou a pintura dessa época.

           Como então, a arte de Marcelino Bravo exige uma particular atitude para ser olhada, pois deixa transparecer uma mestria, uma dextria própria, não incompatível com a grande disciplina das formas e imagens.

            Nelas encontramos originalidade conceptual e um forte sentido de estrutura. É também perceptível uma suave distorção da realidade, o que só acentua a força de expressão das suas emoções interiores e de onde resulta certamente o jogo quente das cores que o individualizam e libertam da realidade natural.

            A policromia, as cores vivas, fazem lembrar as paletas dos impressionistas e neo-impressionistas, e revelam um mundo muito particular de relações cromáticas, (expressionismo?), decididamente liberto de inibições quanto ao uso da cor e de convenções quanto às formas.

     Alguns traços geométricos revelam vagamente o “realismo cubista, ou preciosismo”, no entanto Marcelino Bravo não abandona as formas, às quais dá como assinalei, notável relevo pictórico, de realçar o vermelho puro, incendiado, na tela com Monsaraz ao fundo.

            São sobretudo as suaves distorções das formas e as cores que acusam na sua obra um traço expressionista, linhas e cores dissonantes, apontando para a natureza certamente hipersensível do artista, expressionismo bem patente na forma como é expressa (perdoem-me a redundância) a sua ligação e amor a Évora e ao Alentejo. As formas geométricas de composições como “Évora Património” apontam na direcção do expressionismo abstracto que Marcelino Bravo não concretiza, quanto a mim felizmente, para que se não perca a fácil identificação da sua forte raiz alentejana e eborense. Gostei, muito.
            E mal saí do nº 5, não me contive, e entrei no nº 6 da mesma rua, na “Galeria Jerónimo”, uma entre tantas lojas de artesanato, que contudo esconde mistérios insondáveis.

            É o refúgio conhecido de Jerónimo Amaral ** artista ignorado que todavia leva no rol vasto número de exposições de esculturas em ferro. Diferentes composições, mas todas elas figurativamente características e possuidoras de uma intensidade selvagem.

            Apresentando um grande contraste entre as diferentes obras, a sua criatividade tem um sentido de mistério que tanto nos inspira harmonia e paz como revolta, protesto, ou algo de grotesco. Jerónimo Amaral espanta-nos com a sua criatividade e técnica, virtuosa e radical ao mesmo tempo, e parece não conseguir esgotar as virtuosidades e possibilidades de cada tema a que deita mãos. Estranhas, desconjuntadas e distorcidas nas suas formas anatómicas, os seus temas emergem como criações “surrealistas”, em que o compromisso com a violência serve por vezes de mensagem e suporte à defesa do ambiente, mas que não quebram totalmente com o racional, ainda que procurem uma beleza chocante que porém fica tenuemente presa à racionalidade e á lógica. Mais que acusando traços das “Construções em relevo” do movimento “construtivista”, Jerónimo Amaral faz a sua própria escultura de materiais que vai reciclando, desperdícios metálicos, lixo, e criando figuras e formas de impacto impressionante, muito engenhosas e não raras vezes animalistas. Simplicidade e simbolismo são características de todas as suas esculturas em ferro, misto de uma visão de “outsider” e de “técnicas de colagem” na escultura.

            Se algumas das suas obras parecem revelar “histeria nascida em estúdio”, o artista, o homem, o outsider, é contudo uma paz de alma e fonte de simpatia. Jerónimo Amaral gostaria talvez de ser anti-social, não o consegue, trai-se a cada sorriso e involuntariamente deixa transparecer um calor humano que gera de imediato forte empatia. Essa sua faceta trai a concepção “dadaísta” que desejariam atribuir à sua obra, obra em que não existe uma recusa da procura do belo pelo insólito.  

             Muitos anos de vida para o Jerónimo Amaral. **

             Vão ver com os vossos olhos. 
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Nota minha: Não faltem à "PRESENÇAS" de Marcelino Bravo na Biblioteca Pública de Évora !!
O "home" só expõe de quinze em quinze anos !! Aproveitem !! 


* Publicado in DIÁRIO DO SUL –  “Kota de Mulher” - 01-02-2001 by Maria Luísa Baião

** O saudoso  amigo Jerónimo Amaral já não se encontra infelizmente entre nós.

Perfil de Marcelino Bravo no Facebook:  https://www.facebook.com/marcelino.bravo.56/photos?lst=100000792991962%3A100004495483657%3A1481581098&source_ref=pb_friends_tl



domingo, 9 de fevereiro de 2014

176 - PAPA AGULHAS O TIO BUFARINHEIRO … *



Se deitado, ficava tempo sem fim olhando os caniços do tecto, lá fora o sol abrasando as telhas infiltrava-se soezmente por entre elas dando ao quarto e à minha sesta uma aura fantasmagórica. Somente as osgas trepando as paredes do rústico quarto me desassossegavam, ficava magicando, olhando a sua transparência luminosa até adormecer vencido pelo cansaço, envolvido na frescura em que essa semi obscuridade me embalava.

Entre as duas e as quatro ou cinco da tarde o verão era impossível e nas ruas crestadas do vilarejo nem uma mosca bulia no chão por empedrar, vermelho e barrento, onde o calor imprimia rotinas que se perpetuavam, eternas. A tia Aia ficara a única solteira das treze irmãs de minha mãe e, sem filhos, recebia à vez e a cada quinze dias daqueles longos verões os sobrinhos e sobrinhas que se dispusessem a partilhar-lhe a melancolia de metade da alma, porque a outra a havia juramentado e entregue a um bufarinheiro sem eira nem beira que arrastava a existência pelos lugarejos da margem direita da Guadiana.

Linhas, agulhas, colchetes, dedais e tesouras, botões, elásticos, nastros, pentes, travessas, cuecas, sutiãs, peúgas, peças de chita, bombazina e saragoça, ardósias, lápis de cor e cadernos, brinquedos de madeira e lata, bonés e chapéus de palha, louça de esmalte e em barro, fruta da época, e movia-se de terra em terra mercadejando, mil bugigangas. Tudo esse bufarinheiro feito meu tio, de alcunha o “papa agulhas” como era por aquelas bandas chamado, apregoava e vendia. Lembro-o bem. Alto, magro e espadaúdo, um bigodão farfalhudo, umas mãos enormes, sorriso ingénuo e sincero, olhos inocentes de menino, e uns joelhos altíssimos que balançavam como chata na corrente da ribeira e onde eu mal podia me escarranchava.

Sentia-o sair de casa ainda o sol nem despontava pois ouvia o chiar da carroça e as ferraduras da mula no cimento do quintal enquanto a aparelhava. Uma ou outra vez acenei-lhes à partida, os raios de sol tocando-me o rosto rompiam luzindo no horizonte e arrastavam os laivos da noite que se escoavam em cada matina agarrando a manhã. A tia Aia já se não deitava, cirandava por ali nas lides da casa, ligava a galena porque às seis em ponto havia que sintonizar as ondas castelhanas e viver o drama da vida de “Pedro Páramo” que a Rádio Nacional de Espanha difundia para lá da Guadiana e fazia furor cativando ouvintes dos dois lados da fronteira.

Quando me levantava já o café borbulhava na cafeteira de barro cujo cheiro se misturava com o dos madeiros respingando pelos nós dos toros, sacrificados ao lume de chão que os pingos das linguiças e morcelas penduradas na lareira avivavam. Lareira mesa galena, a tia Aia triangulava flutuando sem ruído pela casa que acordava muito antes do alvorecer dando tempo ao bufarinheiro de se pôr a milhas sem que o sol da manhã o escaldasse.

Um chapéu preto de abas largas emoldurava-lhe um rosto tisnado, a lentidão de movimentos e uma expressão calma acentuavam ainda mais essas particularidades tão suas e que eu admirava sobretudo quando, pelas sete da tarde me deixava pegar nas arreatas da mula e conduzi-la, a pé, ao bebedouro onde ela, qual camelo, se precavia até ao dia seguinte enquanto ele lhe assobiava a mesma e eterna ladainha que inda hoje lembro tão bem e cujas notas ele repetia incansavelmente terminando-a somente quando “Linda” erguesse o pescoço e sacudisse o rabo e as moscas. Na volta esperava-a um petisco de forragem favas e alfarrobas cuja mistura depressa eu aprendi a dosear. Era entre a Linda e os mimos do tio “papa agulhas” e da tia Aia que a minha vida decorria, eu, o “meu menino” como ela me chamava, lembro-a de olhos vivos sorrindo para mim e carregando na expressão como se no receio de que eu não entendesse ser o “seu menino”.

Dele jamais esquecerei a calma contagiosa e o sorriso meigo que nunca mais vi igual num adulto, nem as mãos calosas que pegavam em mim e de um balanço só me punham no dorso da Linda, ou sobre os seus joelhos vogando nas ondas dos mares encapelados por onde na brincadeira me fazia singrar quando não era cavalgando um garanhão andaluz e fazendo-me passar as passinhas do “Al garbe” comigo desfeito em sonoras gargalhadas.

Ambos tiveram cota parte importante nas recordações felizes que guardo da minha infância, até de quando regavam com amor de pais a terra vermelha em que me dispunha a brincar para que pudesse abrir estradinhas na volúvel poeira barrenta que grassa naquelas bandas e onde, à sombra dos altos muros de terra batida tantas tardes me entretive brincando. Foram desvelos que deixaram marca, acredito que muita da calma que anima o meu carácter e do amor que me enforma a personalidade lhes são devidos e a verdade é que jamais encontrei vida fora a tranquilidade desse lugar nem a bondade desinteressada com que por eles fui brindado. É certo que a infância, como a mocidade ou a Primavera, vão uma vez e não voltam mais e, só muitos anos mais tarde a companheira de uma vida me marcou como esses tios hoje ternamente lembrados.

Lembro especialmente uma tarde de catequese meses depois dessas férias em que, confrontado com os ensinamentos de Deus, me punha a imaginá-lo no céu, sentado no trono, rodeado pelo Filho e pelo Espírito Santo, e acreditem, ainda hoje estou convencido que a existir Deus terá um olhar inocente de menino o sorriso ingénuo e sincero e as mãos grandes e calosas como esse meu tio bufarinheiro, o meu tio “papa agulhas”.

Deus lhe tenha a alma em conta.

           

* O lugarejo a que aludo nesta história é a aldeia de Outeiro, a 15 km da cidade de Reguengos de Monsaraz e a 6 ou 7 da vila de Monsaraz. Pintura, Monsaraz por Marcelino Bravo - Évora.