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sexta-feira, 11 de novembro de 2016

396 - LEBAM KU BO - O CANTO DA ESPERANÇA


O dia despontava, um rebordo alaranjado acompanhava a linha do horizonte e nem meia hora levaria até vermos esboçadas as primeiras sombras, nas quais nos abrigaríamos, pois por essa altura o sol já castigaria. Todos estavam exaustos, tinham sido oito horas de marcha sem outras paragens que não as estritamente necessárias para fixar o Cruzeiro do Sul e a partir dele calcularmos a nossa posição. Os homens arrastavam os pés ansiando por estender-se, elas não davam parte fraca, mas repetiam exasperadas o gesto de levar os cantis aos lábios secos denunciando um desespero abafado. Uma sombra e, mal a encontrassem, por aquele dia, melhor seria dizer por aquela noite, a marcha estaria terminada e os corpos jogados ao descanso.

Não faltariam muitos quilómetros para a fronteira, a zona de perigo fora ficando perdida na retaguarda, a campanha correra-nos mal, perdêramos dois homens, todas as viaturas e muito material, mas salváramos o coiro. Uma batalha não faz uma guerra e nem tudo estava ainda perdido. Cansados e abatidos homens e mulheres espojavam-se na areia fresca da sombra. Apesar do revés o ânimo não se perdera. Eu observava-os na improvisação de instrumentos que lhe marcassem o ritmo e a velha canção de esperança, Lebam Ku Bo, ia surgindo aos poucos da boca de cada um e cada uma com pedras, armas, ossadas, galhos ou cascalhos marcando o ritmo que lhes corria nas veias. Notável se considerarmos tratar-se de perto de 30 elementos, exaustos e oriundos de meia dúzia de nacionalidades.  

Eri Zuma não me saía debaixo de olho, a sua costumeira tagarelice, ora abafada, não prenunciava nada de bom, uma das baixas do recontro dumas horas antes fora o seu prometido noivo e, não ter chorado nem bradado aos céus preocupava-me, estava acumulando azedume, enchendo a alma de revolta, as mulheres ovambo eram ensinadas a calar a dor mas quando a bolha rebentasse ninguém esperasse coisa boa. Era um grupo excepcional, gente superiormente preparada, corajosa, tenaz, perseverante, resiliente, mas até o aço mais duro em determinadas circunstâncias quebra…     
              

Abrigámo-nos sob a sombra de uma pequena ravina, a partir daquela hora o sol seria inclemente e o Calaári mataria os descuidados. Dois homens, os mesmos que haviam caçado um babuíno* e lhe tinham dado comida salgada, soltaram-no e seguiram-no na busca desenfreada da fonte da preciosa água de que precisavam, água a fonte da vida e onde o macaco os levou directamente apesar de bem escondida entre fragas. Poderiam passar-lhe ao lado que jamais adivinhariam haver ali água em tal quantidade. Os que ficaram limparam e lubrificaram as armas antes de adormecerem resguardados pela sombra da ravina. Naquela zona os helicópteros sul-africanos não se atreveriam a procurar-nos, temiam os cubanos e os velozes Mig para quem eram presas fáceis. Durante a noite, durante a caminhada e no espaço de poucas horas esbarráramos com dois meio enterrados na areia, um deles abatido recentemente, as cores e os estofos ainda não comidos pelo sol, procuráramos água mas tinham levado os cantis juntamente com os mortos, via-se sangue seco, muito sangue.

               

Ainda nos não encontrávamos a salvo, nem suficientemente afastados para não temer os helicópteros e demasiado longe para sermos procurados pelos nossos camaradas de armas, estávamos por nossa conta, felizmente um combate frontal estava fora de hipótese, quase não tínhamos munições e fôramos obrigados a abandonar o armamento pesado se quisemos salvar a pele. O equipamento de comunicações fora também atingido e estávamos nas mãos da divina providência.

Deus e a providência eram ali muito requisitados, por nós e por eles, o inimigo, umas vezes cada um com o seu outras disputando os favores e a graça d’Ele. Não fazia grande diferença, nem faria, na hora da morte só desejávamos que fosse breve, e que não nos complicasse a vida, muito menos a dos outros. Nunca abandonáramos um moribundo, mas felizmente também nunca tivéramos que carregar com nenhum. Certa vez um deles para não nos atrasar a marcha em dias e dias metera o cano na boca e solucionara o problema, resolvera a questão, há homens assim, práticos, pragmáticos, uma padiola é do pior que pode haver para qualquer ferido grave, é uma forca, uma sentença de morte, um mau feitiço atirado para cima de um homem. Viver é fácil, difícil é morrer, exige-nos toda a coragem.

Todos dormem, de duas em duas horas a vigília roda, a noite fora extremamente cansativa, caminhara-se para fugir do inferno e p’ra aquecer, no Calaári as noites são de gelo, entre os menos zero e os quarenta e muitos só os insectos se aguentam. O pico a seguir ao almoço é mortal. Os homens retornaram com vários alforges de água fresca e limpa. Não dará para tomar banho mas todos vão poder dessedentar-se e beber que nem camelos, sobrará para encher os cantis. A sede será doravante o nosso pior inimigo, era importante partir abastecido. Para cúmulo as rações de combate provocam demasiada sede e os homens, esfomeados, adivinhando a fronteira no máximo a um dia de nós, vingam-se da fome e empanturram-se. 

                        

Um dos homens mira-se num estilhaço de espelho apanhado no último héli pelo qual passáramos, ordeno-lhe que se desfaça dele e o enterre bem fundo na areia. Um descuido, um reflexo e a nossa posição pode ser denunciada a milhas e milhas de distância. Todo o cuidado é pouco. Aqueles dois preocupam-me, têm borregas nos pés e recomendo-lhes que os limpem bem e passem nelas gordura das latas de rações. Kristna está assada debaixo dos braços, tem o peito farto e pesado, a presilha do sutiã, o suor e o pó da areia constantemente roçando-lhe a pele feriram-na. Digo-lhe que largue e enterre o sutiã, que passe tintura nas zonas feridas, não sendo casos graves se tivermos cuidado não nos atrasarão. Reiniciamos a marcha ao som de “Lebam ku bo”, o canto da esperança reafirma ser a esperança que conta, a esperança tornou-se a fé destes homens e destas mulheres, esperança de conseguir sair com vida do deserto, de chegar à aldeia, à cidade, esperança de sobreviver à independência frustrada, de ter filhos, família, vida, alguns já andam nisto há quase vinte anos, ou mais, vieram das matas, só conhecem a guerra e as matas, e agora o deserto.

           

Néli fez de mim a sua esperança, faço-me distante, despercebido, duro, todos temos que estar prontos a perder tudo a qualquer momento, o segredo é ter pouco, ter tudo exige capacidade de renunciar a tudo, não quero iludi-la, não quero enganá-la, somente à noite nos procuramos. Há que ser superior a tudo, a todas as tentações, renunciar é sobreviver, o compromisso tolhe, coarcta, prende, compromete, obriga a ceder, tortura, fragiliza, pode matar. Desapego é sobrevivência, liberdade, vida. Tudo isto Néli sabe, quem não sabe cedo ou tarde intui. Ela sabe e só me procura quando todos dormem, ou quase todos, sem barulho anicha-se em mim, em conchinha. Nem o suor ou a areia nos incomodam, mas travam. É esguia e magrinha, bela, marchamos há uma semana sob condições péssimas e nem isso lhe retira a beleza, nem o ânimo, nem a doçura.

Há duas horas que notamos mudanças na vegetação, há mais verde e mais arbustos e árvores, provavelmente estaremos neste momento pisando a linha vermelha de fronteira e entrando em Angola, sobrevivemos a mais uma provação, a mais uma missão, e continuamos cá, para o que der e vier. A guerra será ganha ou não valerá a pena, ou não terá valido a pena.

Brigadeiro, e adido militar, o Chino deve andar agora perto dos setenta anos, mas não parece, os pretos enganam a gente, mesmo com essa idade alguns quase não fazem rugas. Hoje levei-o a almoçar à minha terra, o grande lago deslumbrou-o. Conto-lhe das minhas primeiras paixões no varandil, sobre a cisterna, diz-me constrangido que casara com Néli. Mostra-me uma fotografia de ambos tirada poucos meses antes dela falecer. Um grave problema de rins demasiado tarde associado a paludismo levara-a, um caso extremo e galopante. Ele também fora acometido pela malária mas safara-se devido a ser Major General e a saúde dos membros da forças armadas estar primeiro. De seguida emborcou instantânea e repetidamente dois copos de Reguengos reserva, o sorriso matreiro e os dentes brancos, impecáveis voltaram-lhe à cara numa caricatura simultaneamente inebriada e feliz.

- É a vida, a vida não pára m'ermão.

Alargando os colarinhos, o cinto e os sapatos balbuciou algo como nunca se ter habituado a mais nada que não a farda. Fora guerrilheiro toda a vida, não conhecia mais que a guerra e a mata, nem tempo tivera para aprender uma letra, bem vistas as coisas tem mais cicatrizes que medalhas. Brindámos, rimo-nos do secretismo de antigamente. Agora o Facebook conhecia-nos todos os segredos. Não nos descobrira e juntara passados tantos anos ?

- Brindemos à savana, às picadas, ao Calaári, aos computadores, facebooks, intermetes e MPLA ! … Propôs ele…

Ergui o copo mas recusando-me a brindar, ele sabia bem quais e desde quando vinham as minhas divergências e dissidências com o MPLA. *

- Se lá estivesses serias general ou brigadeiro m'ermão ! À tua !

Fingi nem o ter ouvido, olhei o lago e embrenhei-me no ensopado de cabrito, carne muito parecida à da pacaça observou ele, talvez sim, talvez não…


** Estava-se então no principio da década de oitenta e os problemas no sul de Angola, derivados de tácticas e estratégias profundamente erradas, ditariam os factores subjacentes à minha divergência e afastamento. Erros que ditariam um elevado custo em vidas humanas e somente ultrapassados em 1987 com a Batalha de Cuíto Cuanavale, o maior confronto militar da Guerra Civil Angolana, ocorrido entre 15 de Novembro de 1987 e 23 de Março de 1988. O local da batalha foi o sul de Angola na região do Cuíto Cuanavale na província de Cuando-Cubango, onde se confrontaram os exércitos de Angola FAPLA (Forças Armadas Populares de Libertação de Angola) e Cuba (FAR) contra a UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola) e o exército sul-africano. Foi considerada a batalha mais prolongada e mortal do continente africano desde a Segunda G. G. e terá provocado para cima de quinhentos mil mortos.