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quarta-feira, 26 de outubro de 2016

391 - CONVERSÃO, CONVERSAÇÃO, CONFUSÃO


A verdade é que nunca gostara de padres, nem de padres nem da sua conversa mole e, desde os seus tempos de catequese lembrara sempre essa conversa monocórdica como um monólogo de uma moleza dura, incompreensível, um discurso arengado e intransponível para a sua mente jovem. Mais tarde, quando capaz de algum discernimento, alguma sageza, de alguma observação, ou análise, esbarrou com o mesmo discurso intangível, hermético cuja música raramente lhe soava agradável aos ouvidos, criando nele interrogações ao invés de certezas, ao apresentar-lhe como certas as piores dúvidas.

Devido a tudo isso se é hoje baptizado tal deve-se somente à tenra idade em que o foi, por nem ter capacidade de recusa nem argumentação para se opor, nem tinha sequer outra opção, como aconteceu ao recusar a primeira comunhão e se afirmar, ou recusar anos mais tarde um casamento religioso e encenado na igreja como a mãezinha tanto queria.

Sendo verdade que as certezas tremiam não era menos verdade que esse mal não era novo, nem novo nem de agora. Há muitos anos, mais precisamente no fatídico semestre em que namorara a Cândida, a fúria do seu amor, a ânsia, a fome de amor que com ela quisera repartir ou nela saciar fora cegamente travada pelos problemas existenciais que a habitavam;

- Será pecado o beijo ?

interrogação e obstáculo que ela demorou demasiado a ultrapassar e o fizeram perder a fé, a devoção, e minou todos os discursos anteriormente ouvidos sobre esse Deus bondoso, misericordioso, amoroso, e todos os discursos sobre o amor, a dádiva, a entrega, o sacrifício, a abnegação, a penitência e o perdão.

Entre os doze treze anos e os quinze dezasseis, ainda oscilou nas opções, agradavam-lhe as parábolas que incluíssem animais, sobretudo as que terminassem num claro exemplo moral, especialmente aquelas que comportassem um divino e exemplar castigo, com o desaparecimento ou a morte dos prevaricadores, dos pecadores. 

Deus é amor.

Agradavam-lhe os castigos pesados, um Deus tirano, que castigasse impiedosamente a maldade, a Lei de Salomão, o olho por olho na própria Bíblia, a estátua de sal da mulher de Ló, o êxodo dos filhos de Israel conduzidos por Moisés, a travessia do Mar Vermelho que se fecha e trucida os exércitos do faraó, os discursos berrados às ovelhas do alto do púlpito pelo padre Bravo, um bravo que o rebanho entendia e que uma vez ou duas explicou à chapada a um crente menos crente a sapiência e a infalibilidade do Senhor. 

Deus nunca se engana.

Porém, não sendo ele o padre bispo na zona, Deus correu com o transparente padre Bravo e, pela mão ou pela boca do padre Macário voltaram os discursos herméticos cuja pedagogia não era percebida, quanto mais assumida por um rebanho hesitante no rumo e que se foi paulatinamente dispersando da igreja, da paróquia e na vida, tanto mais que o padre Macário nunca foi homem para lhes fazer uns desenhos ou os meter no caminho certo, nem à estalada.

Quanto a ele, digo a mim e à Cândida, o apelo da selva era mais forte, a animalidade exigia urgência na satisfação dos ímpetos temendo que, caso contrário, como ao homem tornado fera, ao bater das doze badaladas, possuído e possesso, me transmutasse em lobisomem. Por isso também eu exigia no momento em que a fé me acossava e a devoção me atormentava e tornava um incubo, que ela por mais cândida que fosse, se submetesse à minha vocação, à minha vontade, ao destino, à sina, ao fado.

Volta não volta a cena voltava a repetir-se, Amália intransigente, ele dominador e inconsequente como sempre, o divórcio mais que uma certeza no horizonte, ambos irredutíveis, irreconciliáveis, ela mantendo-se fiel a Santo Antão, ele derivando para a igreja da Sé, onde por certo não esbarraria nela. Contudo e apesar de tolinha Cândida nunca se submetera à sua vontade, sua dele, pelo que cedo acabaram, cada um retornando à sua paróquia, esquecendo os sonhos e os caminhos que haviam jurado palmilhar juntos, juntinhos. A mesma fé que os unira os separara, um padecendo de dúvidas outro com demasiadas certezas.

Ora é precisamente neste entreacto que aparece o padre Madureira da Silva e o seu discurso da conversão* discurso que eu chamaria antes de tradução pois que o dito padre quase, quase nos faz desenhos para explicar na perfeição como devia ser aberto, claro e sucinto o linguajar da igreja, casa onde mais parece falar-se chinês para um público maltês, cada vez menos disposto a ouvir quem quer que seja, ou a perder tempo com o que não seja imediatismo, futilidade, materialismo e desvario.

Não são a cultura moderna e o neoliberalismo os únicos culpados pela dispersão do rebanho e pelo afastamento da palavra de Deus, é sim o cepticismo que a igreja permitiu, cultivou e até acarinhou no seu mundo, pois neste outro mundo real em que vivemos, na senda do racionalismo e do iluminismo, o grosso do rebanho logrou libertar-se de anátemas ainda que não de dogmas, e fugiu do hermetismo religioso sem que o tenha, (ou a igreja o tenha) substituído por algo mais proveitoso. 

A igreja permitiu gradualmente que a palavra de Deus surgisse ilegível, intraduzível, incompreensível, manipulável, e por fim dispensável por desnecessária. No fundo tratar do homem enquanto ser humano sem perder o pé, como sabemos que se fez desde a antiguidade clássica com Sócrates, Agostinho de Hipona, até aos tempos mais recentes da corrente existencialista e de Simone de Beauvoir, Jean Paul-Sartre, Boris Vian, do nosso Vergílio Ferreira e a nossa Maria Judite de Carvalho, de Kafka, André Malraux, Albert Camus, etc etc etc numa tradição de liberdade e responsabilidade que entre nós nunca foi muito respeitada.

Culpas natural e igualmente também da escola e da igreja, culpas nossas também por não buscarmos um caminho alternativo e avançarmos às cegas. O padre Madureira da Silva vem agora dizer que a igreja há muito devia ter gritado que a conversão é a mudança, é mudança de mentalidade, é escolha, é opção, é um caminho mais claro, mais limpo e com menos escolhos que aquele que o neoliberalismo e outros ismos nos oferecem, convidam e incitam a percorrer. Converter-se não é trocar paganismo por cristianismo ou vice-versa, é trocar o materialismo mercantilista por algo mais concordante com o que quer que seja o humanismo ou a alma, é ser solidário, ser, ser, ser, mais que ter, é ser.

No fundo uma questão de dignidade, para nós e para os demais, uma questão de sanidade, pessoal, mental, moral, e social, uma caminhada para uma concepção social da vida em vez de individual e que substitua a fatalidade que aceitamos sem contestar, uma concepção que nos una, em vez do abandono a que votamos o outro. No fundo a questão da busca de um projecto de sociedade, dum projecto que despreze soluções pessoais ou individuais e procure soluções nacionais, colectivas, no fundo a libertação pela coesão, pela assumpção de responsabilidades universais, acima de egoísmos, acima de privilégios, pelo regresso da palavra de Deus, pelo regresso da igualdade, da paridade, da palavra bem explicada, bem traduzida, se necessário com um desenho, como o padre Madureira da Silva teórica e exemplarmente fez.

Amadeu recortou o texto do jornal, meteu-o num envelope cor-de-rosa com um coração bem vermelho e rebordado a branco, branco de pureza, e deixou-o displicentemente em lugar onde sabia de antemão ser encontrado por Amália. A partir daqui há pormenores da história que posso imaginar mas não conheço, terão jantado juntos como havia muito tempo não faziam, terão procurado o quarto e a cama com alguma apreensão e desconfiança, tê-la-ão abandonado horas depois curados, completos, animados, entusiasmados, decididos, convertidos.

O divórcio foi esquecido, a decisão pendera para um país europeu onde encontrassem democracia, justiça, solidariedade, igualdade, paz, futuro, trabalho, emprego, onde fosse possível sonhar, ter certezas, família, onde imperasse a verdade e a honestidade, a franqueza. Curiosa e casualmente escolheram o menos religioso de todos, é apenas um pouco frio. **
  
* Padre Madureira da Silva, Coluna de Opinião, Diário do Sul, 25 de Outubro de 2016, página 4. 
** Atenção, a leitura deste texto não dispensa a consulta do artigo original do Padre Madureira. 

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

309 - VERGÍLIO FERREIRA, EU E O MONSTRO…..


Em vida Vergílio Ferreira foi editado pela Bertrand, que além de editora era distribuidora, a Distribuidora Bertrand, de nível e âmbito nacional e trabalhando com todas as restantes editoras do país, sendo-nos contudo mais familiar como Livraria, pois possuía uma cadeia de livrarias, hoje conhecida como Bertrand Livreiros. 

Em Évora, onde marcou presença em 1993, a Bertrand lançou-me um desafio o qual, após limarmos arestas e acertarmos contas eu aceitei, para o que contaram a minha experiência e conhecimentos de literatura, aliados à rede de contactos no mundo escolar e académico, ou sociais como agora se diz, tornando-me com um contrato sedutor responsável pelo seu investimento nesta cidade, que aplaudi, Évora merecia uma extensão da Bertrand Livreiros, que mais tarde prontamente contestei ao saber a localização prevista para a livraria, o “Centro Comercial Feira Nova”, hoje Pingo Doce, à saída para Lisboa e local bem exterior ao perímetro urbano da cidade. O tempo viria a dar-me razão, as gentes iam ali para o arroz e o feijão, passando ao lado da livraria praticamente sem olharem as montras. Abandonei funções em 1995, embora a Bertrand tenha teimado e tentado subsistir naquele inadequado lugar mais um ano ou dois, não consigo precisar já.

Porém, apesar ou por tudo isso foi entendido propiciar-me formação especifica, mais ainda e mais precisa, pelo que passei algumas semanas por trimestre em Lisboa, nas instalações do Chiado, e na Amadora, onde à época se situava a distribuidora, esta última gerida pelo senhor qualquer coisa Morais, hoje ele mesmo livreiro, para o que adquiriu em Lisboa uma livraria em situação de falência, após a queda do império Bertrand às mãos de gente do calibre daquela que nos tem governado, gente que durante algum tempo se foi sucedendo sucessivamente sem cessar à frente dos destinos do grupo e por pouco não rebentou com ele.

Mas do que vos quero falar é de Vergílio Ferreira, já um homem velho quando o conheci, mas opinioso, garboso e desempenado, que por esses dias e numa dessas formações me foi pessoal e casualmente apresentado pelo citado senhor Morais, não recordo se no Chiado se na Amadora, no momento em que preparavam o lançamento da sua biografia fotográfica, “pois havia que fazer render o peixe antes que se fosse desta para melhor” segundo palavras do próprio Vergílio Ferreira cujo falecimento, um momento infeliz, teve lugar um ano ou dois após este nosso encontro. Dessa biografia guardo ainda hoje com muita consideração, estima e carinho um exemplar autografado por ele mesmo, que ao saber-me de Évora e seu leitor indefectível me abriu a porta da sua amizade com condescendência.



Por duas ou três vezes nos encontrámos, falámos, por junto três ou quatro horas, se não mais, tive pois oportunidade para lhe fazer saber quanto apreciava os seus escritos e volumes do “Espaço do Invisível” e de “Conta Corrente”, memórias que considerava e considero conversas com os leitores e muito para além dos próprios romances, estes mais limitados na amplitude do pensamento e circunscritos a um tema, a uma história ou a um título, no que concordou comigo, pois esses monólogos / diálogos com o leitor encerram um caracter mais intimista que os romances, tolhidos pelos personagens, enquanto no “Espaço” e na “Conta Corrente” o sentia falando comigo liberto de amarras e constrangimentos, enquanto eu, seu leitor, o ouvia e lia permitindo-me simultaneamente desvendar-lhe a intimidade, o âmago, e arrancando desse mistério a luz.

- Acha mesmo que foi um maravilhamento amigo Humberto ? (usou mesmo esta palavra, maravilhamento).

Sim, respondi-lhe, essas obras dão-nos a conhecer e a sentir o prazer da leitura, essas suas confissões proporcionam ao leitor uma, como dizer, iniciação ao pensar, à meditação, ao pensarmo-nos a nós e aos outros, incutem um exercício mental que a convivência torna exigente e que nos força a uma conivência condescendente para com os fundamentos da existência que em cada um de nós existe, independentemente de mais conscientes uns de nós que noutros e da própria avidez com que alimentamos essa moral, essa cumplicidade.

- Os olhos comem, mas o espirito também, felizes os que o alimentam, sussurrou.

Na realidade assim é, pena que os leitores de Vergílio Ferreira lhe procurem sobretudo os fantásticos romances, fenomenais certamente, mas para quem exija mais, encontrará nos volumes de “Espaço do Invisível” e de “Conta Corrente” a alma do mestre, aberta, mostrando-nos com uma terna candura o modo como vê o mundo que nos cerca e por vezes não compreendemos, ou nem sequer vemos, por inexperientes, por desatentos, por ignorantes, por incultos. Com extrema delicadeza diplomacia e grandeza Vergílio Ferreira vai inculcando em nós, seus leitores, a sementinha da inquietação, da curiosidade, da interrogação, e vai sugerindo respostas, caminhos, versões, soluções, sem nunca nos pressionar, sem jamais pretender conduzir-nos, apenas informando, seduzindo não empurrando, mostrando não impondo, e que melhor que nos fazer acreditar e levar a fazer, e a crer, que coisa melhor que ficar vendo-nos por nós mesmos alcançar, descobrir, chegar, concluir ?

É bom lê-lo, mas melhor ainda é “falar” com ele, percebê-lo, entendê-lo, vivê-lo, porque depois de lido é o mestre que vive em nós, que vive por nós, se eterniza em nós. Devemos-lhe isso pois nos seus escritos jamais nos ocultou a sua mente ou nos fechou o coração. É o meu Nobel, será sempre o meu Nobel ainda que as circunstâncias tenham concorrido em contrário.