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sexta-feira, 26 de agosto de 2016

376 - LUTA DE GALOS ***..........................................


Era demasiado novo, por isso me pareceram manápulas as mãos que meu pai, irado, colocou em cima de mim, uma nos fundilhos outra na gola da camisa arrepanhando-me os cabelos da nuca que quase arrancou, elevando-me nos ares, eu gritando em desespero, para dois passos depois me depositar violentamente no chão, frente à porta de casa, onde entrei abruptamente e de supetão devido ao seu gesto irado.

Eu nem me apercebera da coisa e demorei anos a entendê-la, décadas, e, não fora terem-me ficado gravadas na memória as manápulas e a ira de meu pai e talvez tudo aquilo tivesse sido esquecido, como esqueci quem eram os que na matança disputavam comigo as unhas dos porcos, arrancadas pelos homens num repente, quentíssimas, jogadas fora para que não lhes queimassem as mãos e pelas quais nós lutávamos sôfregos, embora nunca eu tenha resolvido a questão do nós, nós quem ? Tal como nunca percebi que raio tinha o sabugo das unhas dos porcos de especial, ou de bom, para assim as disputarmos, embora recorde ainda, e bem, o seu sabor adocicado e sobretudo o agradável cheiro a chamuscado, como as lembro sempre que no inverno o pacote das castanhas me queima a mão, ou as mãos.

Como habitualmente, jogava Alquerque* com o Julinho na ampla e larga escadaria de lajes e poucos degraus do adro da igreja de Nossa Senhora da Lagoa, e nem eu nem ele déramos pela multidão que se juntara, foram os gritos dos contendores, roucos, guturais, já dentro da roda que à volta deles se formara e que com eles balançava para a direita, para a esquerda, para a frente, para trás, conforme as estratégias e tácticas usadas pelos dois homens que dentro dele se confrontavam espumando baba, raiva e palavrões que os guinavam ora para um lado ora para outro quem nos chamou a atenção. A mole humana, deveria dizer a turba que os cercara, observava, admirava e incitava, gritava como eles a cada ataque, a cada investida, a cada pulo de ataque ou de esquiva, incitando-os ou criticando-os e espumando de igual forma. 

Foi pouco depois dessa ocasião que o senhor Teófilo colou na porta da Junta de Freguesia um edital proibindo terminantemente folhas com mais de sete centímetros. Até aí qualquer um usava a navalha que quisesse e dada a proximidade de Espanha as de ponto e mola eram largamente preferidas, contudo diga-se a propósito que nenhuma delas teria uma folha com menos de sete centímetros, havia-as até que ultrapassariam os quinze, talvez mesmo a maioria. Essas eram as navalhas pessoais pois além delas havia as de trabalho, bem diferentes umas das outras e cuja folha se adaptava mais à função que à régua e esquadro de qualquer legislação.

Foi o alarido que me fez largar o Alquerque* correndo a matar a curiosidade no justo momento em que alguém jogava uma navalha a um dos desavindos. Não sei se a não tinha se a deixara cair, sei que alguém, presto lhe atirou um navalhão de podar, daqueles de folha levemente em gancho, larga, p’ra lhe dar maior resistência, ainda hoje me interrogo se não teria sido totalmente descabida uma navalha daquelas e se quem o fez não teria outra maliciosa intenção. De folha mais curta e incapaz de perfurar aquela navalha deixaria quem a tivesse nas mãos nitidamente em desvantagem.

Eu assomava por entre as pernas dos homens ou agarrado a elas, e nem eles paravam quietos nem os gladiadores na arena.  Urros guturais, saltos, golpes instantâneos desferidos em ataques, ou em defesa, sangue, cortes nos braços dos dois, um sangrando da cara, as navalhas confundindo-se-lhes nas mãos tintas de sangue cujo cheiro devia funcionar como adrenalina num cio latino, machista, sei lá, digo eu, o que sei é que o cheiro do sangue não me abandonou até hoje sendo muito diferente daquele com que as mulheres faziam a rechina. **

Um deles chamava-se Bartolomeu.

- Bartolomeu pede ajuda a Deus ! Gritava a turba.

Um deles dizia eu, esse, parecia estar condenado, ensanguentado, todo ele era sangue, notava-se-lhe o cansaço, já nem espumava da boca e falhava os golpes por o sangue lhe toldar a visão.

A multidão ululante apostava nitidamente na sua derrota, não que tal fosse uma questão de simpatia mas como sabemos dos fracos não reza a história, nem a maioria os respeita, ele fora somente o primeiro a ceder e portanto nunca teria quem por ele intercedesse, o tempo dos cavaleiros andantes e do cavalheirismo não era aquele e os gritos da mole humana pendiam claramente a favor do adversário do desgraçado do Bartolomeu. Nessa tarde ele seria o touro de morte na arena. A luta seria até ao fim, assim rezava a tradição, a menos que a guarda os separasse e nada menos que a guarda, entretanto mandada chamar por alguém ao posto da aldeia do Telheiro e que no melhor dos casos ali estaria dentro de uma hora a hora e meia, o desgraçado do bom do Bartolomeu estava condenado.

Mas a vida carrega imprevistos e quando menos se espera dá meia volta ou uma volta completa e, ironia das ironias a confiança do outro traí-o ou a confiança na vitória antes do tempo ou uma pedra mais saliente no irregular empedrado da calçada, o que sei é que todos à vez largaram um

 Oooooooooohhhhhhhhh ! ! !

quando ele se desequilibrou e, por centésimos de segundo abriu a guarda. Bartolomeu viu o raio de sol que Deus lhe enviava sob a forma de uma oportunidade única e irrepetível, listo disparou um salto, o braço movendo-se rápido pelos ares como o duma ceifeira, a lâmina em gancho beijando as calças de saragoça ensanguentadas do outro, nem de pé nem caído, antes num desequilíbrio estático que lhe foi fatal pois não houve ninguém que não visse a golfada de sangue atrás da lâmina da navalha de podar do Bartolomeu que num pincho lhe enganchara a perna e lhe cortara a safena num golpe de mestre lancinante que deitou por terra o outro, esquecido da sua própria navalha para, a mãos ambas tentar um garrote e não logrando, as golfadas jorrando, toldando-se-lhe a visão ainda nem acabara de ouvir da multidão um:

Aaaaaaaaaaaaaaaaahhhhhhhhhh ! ! !

que surpreendida arredava, como se a morte precisasse agora de mais espaço que a vida e o outro estrebuchasse aos saltos ao invés dos tremores e espasmos frios em que se encolheu, encostado aos degraus da dita escadaria, o cotovelo apoiado no meu jogo de Alquerque, as mãos aflitas tacteando a safena que se lhe sumira, tal qual quando os touros em pontas colhem os toureiros pela altura da virilha e em minutos os vêem esvair-se em sangue sem apelo nem agravo, tal qual este agora, sem saber se tactear se rezar, a alma e o olhar sumindo-se-lhe na direcção do nicho com um painel de azulejos de Nª Senhora da Lagoa, que ainda a hoje se pode ver no frontispício da igreja com o mesmo nome e em frente da qual eu morava.  

Foi quando ele me agarrou com as manápulas, arrancando-me à garra magnética da multidão com tal facilidade que inda hoje me surpreende. Logrou é certo, evitar que assistisse ao final daquele macabro espectáculo contudo não teve a mesma sorte quanto à triste cena do estertor do vencido. Era assim na minha terra há cinquenta anos, naqueles tempos lavavam-se os agravos e a honra com sangue, isto vim a sabê-lo muitos anos depois, o motivo, o móbil, a provocação ou a ofensa essa nem estive sequer perto de a saber.

Empurrando-me com brusquidão atirou-me para dentro de casa fechando atrás de mim a porta e rodando a chave, enraivecido jurei ali mesmo que, tivesse eu nas mãos uma ponta e mola daquelas espanholas e havia de lha ter espetado sem compaixão no coração. 

Até ao fundo...


*  Alquerque: velho jogo árabe cuja origem ninguém na vila conhecia. Uma espécie de “jogo do galo” em que cada contendor ao invés de alinhar cruzes procura alinhar as suas pedras.