quarta-feira, 3 de agosto de 2016

371 - A VIZINHA JUSTA E O IMI DO COSTA ..........


Que bom que seria haver só domingos, eu por mim até prefiro os sábados, porém domingos ou sábados, é igual, é-me indiferente, a bem dizer a única coisa que muda são as mulheres, as mulheres e a paisagem quando olhamos pela Janela.

Mas que belo almoço, um bom gaspacho, e um bom presunto de porco preto, bem fresco e melhor regado como manda a lei, é um bom vinho este, Castelo de Estremoz, quase vimos daqui as vinhas subindo a encosta da cidade, este vinho* tem uma particularidade curiosa que talvez seja culpada pela espiritualidade que nos pranta, as uvas são vindimadas durante a noite, para manterem a frescura e o aroma que sentimos neste néctar. (cortei vinho e meti néctar, soa melhor não soa?). Depois de totalmente desengaçadas e esmagadas as uvas fermentam em cubas de inox com temperatura controlada durante seis a oito dias e as castas Aragonez, Trincadeira e Castelão que o compõem e fazem dele um vinho tipicamente alentejano e são uma feliz conjugação de fruta madura e frescura que resultaria numa suave estrutura não fosse ser para mim um vinho um pouco áspero, como se não bastasse já a aspereza da língua por onde ele arrasta o atrito. Já a cerveja Sagres me provoca essa mesma sensação, daí que não a aprecie, gosto dos líquidos que estralam no céu-da-boca e depois escorregam bem pela goela. Mas era um almoço de amigos e às tantas já nem notava a rudeza ácida do vinho, bem bom apesar de tudo, o Caxias chama-lhe um figo e fê-lo acompanhar de farta comida tradicional alentejana, queijos e a mais variada doçaria conventual. Saímos dali mais docinhos que cordeirinhos.

Estava eu olhando pela janela, olhando as vinhas quando me ocorreu, e apostaria, que fazendo o mesmo estaria o Costa, só vendo prédios e mais prédios, a poente e a nascente verá um mar de prédios a perder de vista, e pensei de mim para mim que onde uns vêem um mar de prédios Costa verá um mar de tributos, vai daí ter-lhe-á surgido a ideia da tributação, tributação ponderada, justa, mais sol mais tributo, melhor vista mais tributo, melhor astral mais tributo, todavia uma tributação solidamente alicerçada em critérios subjetivissímos, isto é justa, justissíma.

Ainda acabrunhado ouço a canzoada a ladrar e entre ela um ladrar mais fino, assim como um chiar, é chiar de “poodle”, a minha vizinha Justa vai passear os cães, logo será sábado, nem preciso ser adivinho nem consultar um oráculo ou o calendário, nem sequer preciso levantar-me, os latidos dizem-me ser sábado, dia em que a vizinha Justa os leva bem cedo a passear, isto é a correr com ela, aposto que serão seis e meia da matina e nem um minuto mais, aposto que ela calçará os ténis rosa vivo e o fato de treino preto com a lista laranja eléctrico em S do ombro ao tornozelo. Gosto de ver aquele S, fá-la parecer mais alta e mais direita, mais desempenada (não devo usar o termo mais nova), com o peito mais atiradiço para a frente e as costas menos curvadas.  

Costa esfregará as mãos olhando os telhados, já o fizera quando das taxinhas sobre as dormidas e os turistas que entravam na capital, por isso nem entendo toda esta admiração agora, o homem foi feito para taxar, nem saberá fazer outra coisa, tal qual a minha vizinha Justa e a sua postura, que a ocupa e alimenta, aliás muitissímo bem para os quarenta e cinco ou cinquenta que contará, demasiado bem até, concedo que tem as rodinhas um pouco baixas mas o resto compensa, se compensa… 

Dizia eu que o Costa espreitará os telhados, e eu não me contenho sem espreitar a manhã pelos fuinhos do estore. Adoro quando ela põe aquela fitinha no cabelo, aquela ou aquelas, afinal condizem sempre com a cor das coleirinhas da Fakir e do Monhé, dois animais exemplares que nos dias de semana nem largam um balido, digo um trinado, digo um latido. A genica da vizinha Justa logo pela manhã tira-me do sério, aliás se não fosse isso seria o estacionamento no largo, nota-se logo que é sábado, menos carros, outros carros, e atirados para ali ao calhas sem quaisquer preocupações. Durante a semana e bem arrumadinhos cabem o dobro, bem, mas ao fim de semana os fiscais da EMEL não aparecem e a malta dá ganas à sua natureza interior, é como se alguém tirasse o interior às válvulas dos pneus d’uma bicicleta, descomprimimos, cagamos para tudo.

A vizinha Justa tem daquelas trelas de onde se tira um saquinho para apanhar a caca dos cãezinhos, a vizinha Justa é exemplar, toda ela, é exemplar, é um modelo, um modelo modelar, já o Costa, um bom contorcionista e ilusionista, seria um presidente de Junta exemplar, quis o destino fazer dele autarca modelar, daí até PM foi erro de casting, cada um com as suas tamanquinhas, cada macaco no seu galho, e realmente não lhe vejo arcaboiço para ministro, nem de primeira nem de segunda, do trapalhão anterior nem sequer vou falar, esse quanto a mim nem para apanhar a caquinha dos cães serviria, erros de casting, desde que se foi o Carlos Castro que o país anda assim aos trambolhões, faquires, Houdinis, emplastros…

Modelar é a Justa, essa sim, sei do que falo, o prédio faz um angulo recto e da minha janela vejo a janela da casa de banho dela, por onde o sol entra de manhã bem cedo tudo tornando radiante, contudo essa parede de tarde nem apanha sol, talvez lhe baixem o IMI, ela merecia, ai se merecia, sim tem as rodinhas baixas mas é elegante. Mereceria claro, justificar-se-ia.

A chaleira ! Nem a ouvi apitar merda ! Lá se entornou o chá outra vez, e aquela porcaria mancha-me o esmalte do fogão de um castanho dificílimo de tirar. Lá estão eles de novo com a história do IMI na televisão, taxem, os pombos caralho ! A cidade está cheia de pombos porra ! E cagam em cima de toda a gente foda-se, ainda são piores que o Costa, dos pombos e do Costa ninguém se safa, é a nossa sina…

Vou calçar os ténis e buscar a pedaleira, vou-me até à Ericeira ... 



segunda-feira, 1 de agosto de 2016

370 - Made-up Dianas - A Exposição .............................


Fui lá, estive lá. Foram precisamente dois minutos para ler o folheto, mais três para dar um giro pela igrejita que é pequenita e olhar a dúzia de postais tornados cartazes que para ali estavam arrumados em duas paredes, o resto do circuito fi-lo às escuras e às moscas. Tempo perdido, mais ganhara nem ter lá ido. Aproveitei e bebi a bica na Zoka, o mata-mouros estava de férias pelo que a coisa me saiu barata.

Projecções, extrapolações de lugares comuns, e, observação à parte, já tudo é considerado arte e todos se consideram a todos artistas, tal como Erdogan e Maduro, dois democratas de estirpe, ou como Daniel Ortega, e Donald Trump, os democratas agora na berra, ou na berlinda, e dando que falar de novo.

Lá estava o livro pequenino, o das presenças, dos visitantes, eu diria antes dos militantes. Uns gatafunhos, uns desenhos, uns bonecos, de crianças certamente, a julgar pelo traço, pela caligrafia, pela idolatria, e um boneco maior que me pareceu de um fariseu. De qualquer modo poucas assinaturas, poucas presenças e, virando-me para a menina que jazia à entrada em vez do Marco mata-mouros o anjo da guarda, indaguei eu;

- Tem vindo muita gente ?

“Que venham mais cinco” respondeu-me ela, e logo;

- Não trouxe um amigo também ?

Oh ! Não ! Respondi desprendidamente…

- Vim só eu e as minhas tamanquinhas, é você a Maria Faia ?

Não era, continuando por lá, prostrada, cantarolando milho verde, milho verde… Aos poucos fui-me afastando da entrada, não fosse ser visto ali e conotado com a coisa, até que o cante da sua voz se sumiu ou se fundiu com a que eu ouvia, ouvia e oiço sempre que penso, e eu penso rápido. E lá abalei, não correndo mas pensando nada entender dos critérios subjacentes às escolhas que ali são mostradas às nossas gentes.

Serei eu o culpado desta falta de discernimento ? Talvez seja (sem o saber), ou talvez tenha um gosto requintado, ao menos não digo que sim a tudo, não papo tudo, pois nem tudo que luz é ouro, nem eu sou carteiro para andar fazendo a distribuição ou a apologia de postais que tais e, a ser gostaria de ter sido o Carteiro De Pablo Neruda, esse sim, pois ao menos coube-lhe um glorioso fim.

            Esta é para mim a realidade lúdica, irónica e humorística que me liga culturalmente à cidade invocada na exposição Made-up Dianas, não lhe acho piada, nem de ironia a acho digna, antes me fazendo rir muito, tudo me faz rir e a tudo acho imensa graça. Assim tão céptico e exigente, devo ser somente eu e os Meninos da Graça, os tais muito apegados à igreja da Graça* e a Graça claro, que ficou para tia, olha que gracinha …

Em hegemonia vêm depois as referências, as tais que eu atrás referenciava quanto aos critérios que nem entendia, e entre eles lá vem o cante que, conforme premonitoriamente** afirmara há quase um ano atrás, agora pau para toda a obra e os restantes, que até teriam graça não tivessem caído tão em desgraça, a costumeira invocação de mortos, o Templo Romano, a Sé Catedral, Capela dos Ossos, o aqueduto, a Fonte das Portas de Moura, tudo coisas com bué da time em cima, feitas há séculos, mas que esprememos até ao tutano por não termos outras, nem maiores nem mais pequeninas. E como não podia deixar de ser o apelo gastronómico, a bolota, lembrando as pérolas a porcos, e o vinho claro, a única coisita cuja produção, volume e preferência tem aumentado nesta dimensão patrimonial e matrimonial a que estamos subjugados ou circunscritos.

É o património pátrio que elegemos a dogma, é a ortodoxia caseira como nossa mátria, é o pai Geraldo Geraldes o Sem Pavor, é a mãe Diana, deusa da caça e da lua, do luar e dos aluados, é António Aleixo e Este Livro Que Vos Deixo, são os bonecos da BIME, são as mantas de Reguengos para vender aos esquimós e rasgar pelo meio, metade para os velhos a outra para os novos como manda o adágio, são as botas do meu pai com quem eu me pareceria se as calçasse, e é a Igreja de S. Vicente e o quanto eu riria de novo caso lá voltasse.

Mas na hora de preparar esta crítica, a arte absorvida subverteu-me o pensamento, a sementinha ficara e germinou, quero dizer a imaginação brotou, e ao digitalizar as figurinhas catitas para o cabeçalho do texto tive uma lembrança engraçadita. Primeiro fotocopiei as doze figuras com as quais, colando-as numa cartolina fiz duzentos postais, todos devidamente legendados, "Made-up Dianas, by Susana Marques, especialista em cartazes" e coiso e tal, como manda a lei. No mesmo dia os remeti para amigos em férias um pouco por todo o mundo, Cancun, Andorra, Cannes, San Remo, Saint Tropez, Mónaco, Biarritz, Maiorca, Havana, Rio, Bali, Olhão, Londres, Alvito, Bósnia, Amieira, Suécia, Beja, Croácia, só para os mais chegados, só para aqueles que realmente se preocupam minimamente comigo e com quem mantenho alguma amizade pessoal e intimidade, só mesmo para os que de vez em quando me dão provas disso e:


- Como estás amigo Baião não te trates não ! ***

E quem diz Baião diz Baiãozinho, que isto tudo depende da proximidade e por falar em proximidade, ainda nesse dia ou no outro alguém atrapalhadissímo e ligado à comissão de festas da aldeia de Ferreira de Capelins me contactou:

É o senhor Baião ? Temos as festas à porta e um dos artistas em cartaz emigrou, estamos à rasca para o substituir, o senhor é o agente da Susana ? Que é que ela toca ? Que é que ela canta ou faz ? Andamos procurando alguém disponível e não muito carote. Agradecidos. Podendo diga alguma coisa com urgência. Ligue directamente ao senhor regedor ou ao presidente da junta que é também o presidente desta comissão.

Depressa esqueci este equívoco e lancei-me de novo aos postais, que recortei em tamanho A5, repetindo a operação anterior e tendo-os colado em cartolina com meio milímetro de espessura, e de seguida cortado cada um deles em vinte irregulares bocaditos e metido tudo dentro da caixa de uma camisa em cuja tampa colei uma imagem A3 a que acrescentei a legenda “MADE-UP DIANAS PUZZLES”. Depois foi passar uma fitita com um lacito e deixar a netita deslumbradita ! 

            A Susanita teria gostado ! Ela é tão dedicadita ás criancitas ! 

           

     






























                                          

sexta-feira, 29 de julho de 2016

369 - O ENGENHEIRO, GASSET E EINSTEIN ..........


Quando puxei o engenheiro para o meu grupo de amigos estava longe de julgar quanto haveria de arrepender-me. Puxei-o numa atitude altruísta e desinteressada, ciente das minhas debilidades e limitações abissais quanto ao ramo da ciência em que ele é expert, é engenheiro, doutorado em física e acredito que homem para discutir a teoria quântica com Einstein. Foi tendo em mente o muito que com ele poderia aprender que o convidei para o meu grupo de amigos. Completar-nos-íamos, em simultâneo dar-lhe-ia igualmente uma oportunidade de comigo aprender também alguma coisa. Inclusão era o meu móbil, tanto mais que ele se mostrava avesso a entender o mundo que o cerca, ainda que, numa atitude encorajadora eu o tenha confrontado, isto é, elogiado, desafiado, provocado, devido facto de, sendo ele engenheiro, o achar capacitado para discutir com Einstein os tais segredos do universo e me custar a aceitar a parca ou limitada visão que apresentava para apreender o complexo mundo em seu redor, refiro-me agora não ao mundo físico mas o mundo social.

Foi essa a ideia que presidiu à intenção de o ter puxado para o meu circulo de amigos, um pouco por interesse confesso, e não somente para colher vantagens da sua presença no grupo mas também para enriquecer os debates e, como já disse, dar-lhe oportunidade de alargar horizontes e opiniões no campo social, mais concretamente no campo das ciências sociais e humanas, área em que lhe poderia ser útil de molde a quitar o que dele esperava obter.

Mas esta experiencia de inclusão do amigo MP na minha roda de amigos está em risco de soçobrar, tão pouco porque desvalorizei o factor pessoal que, de forma inerente e inevitável afecta no laboratório este tipo de experiencias por mui bonitas que as teorias nos surjam. As suas facetas individualista, egocêntrica e egotista afectam-lhe irremediavelmente a visão de conjunto, impedindo-o de ver para além da sua pessoal obstinação, situação ou posição. Trata-se lamentavelmente de um facto gravoso que afecta as suas análises, por muito cuidado e atenção que ponha no desenvolvimento do método científico a que a jaqueta de engenheiro o obriga.

Depois é a confusão total, incapaz de ter nas mãos provas e bases sólidas que sustentem as suas hipóteses, desenvolve extensas teorias despidas de exactidão, logo de significado, o que atesta nele uma grave lacuna e afectará a sua capacidade de raciocínio e de síntese. Aliás ele mesmo o admite, ou confessa. Incapaz de sintetizar, isto é de ir do geral para o particular, nunca poderá arvorar-se em alguém cuja análise nos mereça sequer compreensão, quanto mais confiança. Esta coisa da condução do pensamento, da dedução, da indução, não é para todos, e muito menos para quem nitidamente acuse carências de formação e, tal e qual hoje em dia nada funciona bem sem o contributo das várias ciências, ou disciplinas, a chamada interdisciplinaridade ou equipa multidisciplinar, também igualmente numa roda de amigos o protagonismo e participação de todos eles se torna cada vez mais imprescindível.

Fechar-se na sua concha ou excluir-se, colocar-se à margem e ignorar os amigos, nem irá beneficiá-lo nem favorecê-lo, aliás se continuar teimando na sua atitude de sobranceira auto-exclusão é dar-lhe espaço, deixá-lo ir, certamente aprenderá por si. Há dois mil anos atrás já Séneca, nas suas “Cartas a Lucílio” (existe uma edição barata e muito boa da fundação Calouste Gulbenkian), afirmava, na primeira delas, ter o homem, para “ser”, que perder a esperança e o medo, precisamente as duas variáveis à volta das quais o meu amigo MP vive preocupado. Para ele tudo se resume a si mesmo, às suas esperanças, frustrações, medos.

Aconselho-o a ler primeiro Séneca, e depois a meditar na forma como Einstein, tal como ele um físico, conduziu as complicadas deduções e induções que das suas análises resultou uma síntese, não extensa, nem confusa, nem mal elaborada ou pior apoiada, como o são as anarquia e barafunda de quanto pensamento o meu amigo MP produz. Porém ainda antes uma coisa simples, meditação, reflexão e contemplação mental sobre a teoria e pensamento de José Ortega y Gasset, que nos ensinou ser o homem indissociável das suas circunstâncias, e as nossas circunstâncias, as nossas e as de MP são uma democracia desigual e disfuncional, instalada num país onde bandidos e oportunistas ditam as leis e a vida por cima do mérito e da equidade. 

Quanto ao físico que foi Einstein, atentemos na sumula do seu pensamento, que resumiu àquela coisa tão pequena, tão engraçada, tão linda, tão virtuosa, tão sublime, em que Einstein condensou tanta enormidade e complexidade universais, E=Mc2







quinta-feira, 28 de julho de 2016

368 - DÉFICIT, SANÇÕES, O ESTADO DA NAÇÃO


Os recentes acontecimentos da nossa vida política dão para festejar, pois mau grado as vozes da desgraça que sempre apelam ao caos a verdade é que alguma coisa foi conseguida, e foi conseguida apesar das contrariedades existentes, das latentes (não lactentes) e das que foram atiradas aos pés dos actuais protagonistas, ou governantes, para que se estampassem. *

Já dei pois publicamente os meus parabéns a A. Costa e a Mário Centeno, que nem ajoelharam nem claudicaram e calaram uma data de vozes aziagas, não esqueçamos que pairou sobre nós o espectro do corte ou a suspensão de 16 fundos estruturais e financiados por Bruxelas, e que Bruxelas vai ou iria propor ao Parlamento Europeu como sanção por não ter sido respeitado o limite do défice público de 3% do PIB em anos anteriores e da responsabilidade de outro governo o governo de Passos e Maria Luís, governo que nunca apresentou um resultado digno de registo. Estamos pois de parabéns, mas calma, não embandeiremos em arco porque os números verdadeiros que nos apresentaram escondiam os que não nos foram mostrados. Ou seja, uma boa notícia camuflou outra ou outras más noticias.

O que foi noticiado e para o que chamo a vossa atenção resume-se a: ... " redução da despesa total com um aumento ligeiro devido ao recuo da aquisição de bens e serviços e a uma forte compressão no investimento público. Estas são as principais razões para a queda do défice " ... Ora o que acontece é que alguém continua a gemer... E muito.... Será caso para dizer que afinal estes governantes não são muito diferentes dos que estiveram antes, a austeridade continua, é endémica, e venha da direita ou da esquerda dói na mesma... Por outro lado é sabido que a forte compressão no investimento, público e privado, é “só” de 2.2 pontos abaixo de zero segundo o último gráfico que vi com estes olhos que a terra há-de comer... O que significa que ninguém acha que investir neste país valha mais que um caracol...mas OK ta bem, não lhes retiro o mérito, nem ao Costa nem ao Centeno, mas vejam também e sobretudo não o escondam, ao custo deste arraial...

É que sem investimento não haverá nunca crescimento e sem crescimento adeus emprego, senão vejamos as notícias ou a notícia com atenção; …"a “estabilização da despesa durante os primeiros seis meses de 2016 tem origem numa forte compressão do investimento, em sentido contrário àquilo que era previsto no Orçamento do Estado para 2016. "...  O que significa que se estiveram simplesmente borrifando em criar emprego, os desgraçados dos desempregados que se amolem, e assim, com a verdade nos enganam porque com papas e bolos se enganam os tolos, o que a notícia afirma não deixando de estar correcto não é virtuoso, porque nos mostra uma face da moeda mas nos esconde a outra, portanto forçoso se torna concluir claramente em todas estas notícias, que nelas está bem escondido mas escarrapachado, qual gato com o rabo de fora, terem as contas sido mascaradas, não sendo este o primeiro governo a fazê-lo, o anterior foi bem pior.
Analisemos..."a redução do saldo resultou “de uma estabilização da despesa”, que progrediu 0,2%, acompanhada pelo aumento da receita” na ordem de 2,9% " ora o que nos é dito é que efectivamente reduziram a despesa, mas calma, ainda só estamos para efeito de contas a 30 de Junho e faltam até ao fim do ano tantos dias quantos os que já passaram, e subsídios de férias e de Natal a pagar… portanto a despesa pública irá aumentar ao nível dos salários, nem que fosse unicamente derivada da reposição dos subsídios da função pública mas existem mais incógnitas, existe a recapitalização da CGD, que ninguém sabe se vai ser feita nem como, bem como a incógnita do Novo Banco, vai ser vendido por tuta e meia ou simplesmente encerrado ? Há ainda a diminuição de receita originada pela baixa do IVA, e, azar dos azares, e quer gostemos ou não, a economia continua estagnada e a dívida está ainda por pagar.

 O que nos é dito significa contudo sem sombras para dúvida que continua o aumento da receita cobrada, dos impostos cobrados, portanto a realidade é que o estado continua esmifrando alguém, alguém que paga impostos, todos nós, e cada vez mais e mais estrangulando quaisquer veleidades que a economia porventura tenha de deitar o pescoço de fora... " Os dados agora divulgados reflectem as entradas e saídas nos cofres das administrações públicas durante os primeiros seis meses de 2016, isto é, numa óptica de tesouraria, critério diferente daquele que é utilizado a nível europeu para o cálculo do saldo orçamental, "... Ou seja, tal qual ali diz: "o próprio boletim de execução orçamental reconhece atrasos no pagamento de compromissos assumidos por entidades públicas, que “registaram uma tendência ascendente" o que, grosso modo significa terem ficaram devendo imenso dinheiro aos hospitais, atrasaram pagamentos, portanto mascararam as contas... Evidentemente que não pagando a fornecedores a conta aparece recheada, por isso, com mais malabarismo menos malabarismo, mais camuflagem menos camuflagem, o melhor é irmos rezar para que a nossa economia, que sofreu todas as tropelias possíveis e está moribunda, não morra de vez com a avidez com que todos dela usam e abusam…

O que essencialmente nos falta é um homem com uma visão global, que abarque tudo, em vez de visões sectoriais que se entrechocam e anulam, sem serem sequer antecipadamente concertadas, o que nos faz falta, e acreditem que já fiz a minha introspecção ponderada, é um homem com botas de tacão e que saiba qual o sítio do pescoço onde deva carregar... Nem somos povo para nos governarmos nem para deixar que nos governem. Não acho que tenhamos algum homem desses à mão presentemente, nem em Évora onde eu conheço toda a gente, vivo aqui há uma catrefa de anos, quanto mais em todo o país.

Por agora tenho dito, é só …

* O presente texto foi elaborado com a prestimosa e involuntária colaboração de alguns amigos com quem o assunto, ou os assuntos, foram discutidos. Obrigado.

quarta-feira, 27 de julho de 2016

367 - DUAS CANECAS, PLEASE, S’IL VOUS PLAIT, FAZENDO O FAVOR, O OBSÉQUIO...


Eu tinha passado a noite no bairro alto e a cabeça ainda me andava à roda, mas lembro-me do artista, conheço o homem há muitos muitos anos, uma vez, uma vez há coisa de meia dúzia de anos talvez, e casuisticamente, encontrámo-nos no exterior do CCB, ou nos jardins da Gulbenkian, ou nos corredores do HESE, eu tinha ido ver uma qualquer exposição, ele não sei, estava acompanhado de um amigo comum ainda que desconhecendo esse facto, pelo que após nos cumprimentarmos me apresentou a esse seu nosso amigo e, tendo eu desabafado um:

- Ah ! Já nos conhecemos há muito !

lá ficou ele gerindo uma atrapalhação que lhe não cabendo nas mãos, e como quem não sabe o que fazer aos pinos ou às bolas de malabarismos se lhe atirarem inesperadamente tudo acima ao mesmo tempo, acabou ás tantas por, cabisbaixo, balbuciar para esse amigo:

- E nós também, somos amigos há muito tempo, somos amigos do Facebook. (nós eu e ele entendamo-nos)

Por alguma razão eu encornei que, entre um homem limitado e um artista que se evade pode haver uma gigantesca quinta dimensão, curioso que embora nos conheçamos há trinta anos tenham sido os últimos três que levamos de amizade no Facebook os que naquele momento foram por ele exibidos para me definir, ou descrever. Eu afinei logo. 

Ele há na vida momentos de grandiloquente inspiração e há momentos de inversa sublimação, aquele desabafo disse tudo, disse quanto eu pesaria na sua consideração e quanto me apreciava, já eu desejo ardentemente que ele cresça e consiga um dia calçar as botas que o pai lhe terá deixado. As botas do gato das sete léguas...

Com a cabeça andando ou não à roda detesto ligar o ar condicionado do carro, já por diversas vezes aquela porcaria me trouxe aborrecimentos, irritações na garganta, constipações e até gripes, pelo que aguentei todo o caminho de vidros abertos gozando a aragem, que de aragem só tinha o nome. Quando cheguei à cidade não rumei de imediato a casa, segui em frente, uma ou duas cervejinhas não cairiam mal depois de quase cento e cinquenta quilómetros de tortura, e sempre me refrescariam e acalmariam, evitando que batesse na mulher e nos gaiatos.

Estendi as pernas, refastelei-me e traguei de seguida três ou quatro que escorreram que nem ginjas goela abaixo. Com este calor a gente nem as sente, só sente mesmo é o corpo distendendo-se, descontraindo, e então é fazer como fazem os ciganos, se três ou quatro fazem bem, seis ou sete hão-de forçosamente fazer melhor…

Estava eu nisto quando ao erguer os olhos para ver o fundo à caneca a vista se distendeu sobre a praça e vi os bonecos, os bonecos é como quem diz, as figuras, e dei comigo a pensar quanta beleza e sentimento em cada uma, quanta paixão, quanta arte, quanta inspiração e quanto amor. 


E repentinamente ocorreu-me que tanta brutalidade, tanta boçalidade, tanta cegueira, tanta ignorância neste povo tão só porque nem tem tempo p'ra ser, para ler, para aprender, para conhecer, para se instruir, e as peças ali especadas, idealizadas com tanto carinho, feitas com tanta dedicação e primor, enterneceu-me a paixão por elas ou jamais teriam sido feitas, comoveu-me a entrega que exigiram, o sacrifício de horas em seu redor até que completadas. A consagração a causas nobres sempre me perturbou, e juntar grão a grão, bocadinho a bocadinho, dia a dia, semana a semana, mês a mês, ano a ano, os materiais, é coisa que testemunha um estado de espirito que vai muito pra além da imaginação, quem assim procede é um sonhador, tem um sonho, e esse sonho ou essa causa que o move só pode ser uma enorme ânsia de evasão.

Ia eu começar a desenvolver mentalmente essa coisa da evasão quando a simpática Lídia me trouxe mais duas, detesto acabar uma e ter que esperar pela seguinte, sede é sede, calor é calor, e ali estava eu tentando fugir, ou evadir-me, tanto de uma como do outro. Quanto ao artista fugirá de si mesmo, incapaz dez se assumir e traçar aventureiramente um rumo sobre a frágil ponte do desfiladeiro e da confiança, sonha, sonha e evade-se, fugindo de si próprio tornando-se por momentos outro, e é esse outro que não ele quem nos oferece de bandeja a beleza da criação, o resultado desses momentos de desvario e inspiração, o resultado dessa ocasião de libertação e grandeza porque raramente o artista cabe no corpo terreno, mortal e limitado que tende a parasitá-lo como uma crisálida.

Conheço o artista, dócil, conheço o homem, submisso, admira-me como convivem, um voando inspirado nos céus das musas e onde vogam os deuses, o outro caminhando acabrunhado, cabisbaixo, circunscrito e circunscrevendo-se ao mundo pequenino e parecendo viver unicamente para os fim dos meses. Não é caso único, dessa ordem de grandeza tivemos Van Gogh, que se mutilou e endoidou, ou o contrário, e que depois se suicidou, mas tivémos também o nosso Soares dos Reis, que não suportou a realidade, ou Amadeu Modigliani, Frida Kahlo, e Jean Michel-Basquiat, para citar somente alguns do ramo… 

Mas nada temam, os grandes gestos Deus somente os concede aos grandes homens, e o nosso artista por enquanto vive dos favores d’outros, portanto a sua vida terá o perímetro que outros lhe conseguirem abrir, ou lhe concederem para ao trazerem pela trela, e como em terra de cegos todos se encolhem e refugiam no centro, para nosso gáudio e prazer iremos ter bonecos e artista durante muitos anos, até por ninguém se libertar do que, consciente ou inconscientemente lhe está na massa do sangue. Para se libertar o nosso homem teria que, por exemplo, ir a Belas Artes aprender alguma coisa sobre o mundo, eventualmente aceitar uma bolsa de uma dessas fundações capitalistas imperialistas que tanto abomina, a Fundação EDP, ou a Fundação Milénio, falo destas por saber que se promovem apoiando as artes e os artistas, logo o nosso homem teria que entrar em contradição consigo mesmo e, pelo menos uma vez na vida, seria obrigado a assumir-se. É que falar é fácil, falar, difamar, criticar, denegrir, comprometer, macular…

Ele que se vá entretendo com os bonecos e deixe a politica para os políticos, olhem, cá por mim se fosse rico comprar-lhe-ia os bonecos todos para meter no jardim, se fosse rico teria um jardim né ? Um jardim e um jardineiro, um carro e um carreiro, uma maison e um mordomeiro, e criadas para isto e para aquilo o dia inteiro ! Já tou a delirar, é do calor e das canecas …

C’um caneco ! Mais duas à saúde dele e da minha ! 






terça-feira, 26 de julho de 2016

366 - ANTIGUIDADES, PRATAS, QUADROS & Cª


Um dia destes fomos jantar uma sopinha de peixe da ribeira à alentejana e pargo no forno ao Xica Bia, a quem dantes chamávamos a Xica Boa, mas isso são outras histórias de aventura e de cavaleiros do asfalto que um dia vos contarei, esta foi uma saída romântica avec a Luisinha, seulement nós ambos, os dois, avec les cheveux ondulés dans le vent no boguinhas, apanhando o air da nuit que os dias estão quentes como o caraças. Já esqueci o sargo grelhado, ou pargo, para o caso c’est indiferente, mas jamais olvidarei ter encontrado um amigo que não via há quarenta anos, quarante ans ! Incrible ! Estava tal e qual o conhecia ! Seulement les cãs blanches, un peu gris, o resto era o habitual nele, a camisa branca impecável, desabotoada apesar do frio exagerado do ar condicionado e expondo o peito aberto, o peito e um fio, não um fiozinho qualquer mas antes uma grossa corrente de oiro, reluzindo sobre os cabelos negros dum peito musculado.

Nunca soube ao certo o nome dele, Bicho era alcunha que lhe viera com o feitio metediço e irrequieto, acho que o apelido era Rodrigues, passados tantos anos o natural será que a memória me falhe, quase quarenta para ser mais exacto, lembro a última vez que o vi e a última visita que lhe fiz, depois disso foi um carrocel a vida, Angola, Namíbia, Xangongo*, o Calaári, a queda em combate, o resgate no héli, o Hospital Militar da Estrela, as Berlengas, a Carmelinda**, a vida passa num ai, ai que não passa.

Olhámo-nos e medimo-nos através das cinco ou seis mesas que nos separavam e abanámos um para o outro as cabeças ao mesmo tempo, em sinal de reconhecimento mútuo. Reconhecêramo-nos, ele levantou-se, conduzindo gentilmente para a porta a mocinha que o acompanhava, empurrando-a leve e ternamente pela cintura delgada, nem devia ter metade da idade dele, talvez a idade de uma filha, pararam junto à nossa mesa e com um leve empurrão indicou-lhe a saída, não sem que antes a informasse e esclarecesse:

- Um velho amigo que não via desde que me levou cigarros à pildra de Évora ! E esborrachou literalmente o charuto no pratinho dos caroços.

Tua filha ? Perguntei eu sem que tivesse obtido qualquer resposta, e não obter nenhuma era já uma resposta, não seria filha, nem sobrinha, nem eu devia meter-me onde nem chamado seria, entendem ? Pelo à vontade dele com ela fiquei a par da sua intimidade, não lhe escondera o passado, e o passado dele nem era brilhante nem recomendável, embora os excessos da juventude devam ser desculpados, não acham ?

De modo esfusiante cumprimentámo-nos então com um longo abraço, apresentei a minha esposa, e ele para a pequena que ficara parada entre nós e a porta com um ar interrogativo:

- Que é que não percebeste ? Andando !

Voltou à conversa, assumiu-se solteiro, eu justifiquei-me com a mobilização apressada para África e ele com uma precária que tinha aproveitado para dar o salto para a Suíça, onde ficara meia dúzia de anos e com cuja ordem social não se dera, mal pudera fugira para a bebedeira de liberdade que então se vivia em Portugal,

- Estava eu na Estrela por essa altura ! Rematei para o calar.

- Eu já não aguentava aquilo Baião, a Suíça é bonita mas é ordem a mais, é organização a mais para o meu feitio, mal me apercebi do mar de oportunidades que aqui se abria barimbei-me na Rent A Car.

Estavam quebradas as reservas iniciais, ele fora, segundo disse e durante dois anos, condutor de uma pequena Rent a Car, fazia de chofer, levava os carros à oficina, ia levar e buscar os carros aos aeroportos e aos clientes, levava os filhos do patrão à escola e trazia-os de volta, conduzia a madame ao cabeleireiro, aparava a relva no verão e desimpedia a neve do quintal no inverno, tratava de ir com os carros atempadamente à inspecção automóvel, não ultrapassava os 90 fosse em que estrada fosse, era impossível beber uma cervejinha todos os dias num bar ou restaurante, eram caríssimos, pelo que me imaginei a avaliar quanto teria sofrido um espírito livre como o dele. 

- Baião, assim que vi como as coisas por lá funcionavam e cá não, fez-se luz e apareceram nitidamente diante dos meus olhos as oportunidades que se me abriam !

E por falar em abrir abrimos mais uma garrafa de branco de Palmela, a Luisinha não demonstrava mas eu que a conheço via claramente quanto se divertia com o personagem, que se sentou à nossa mesa, encomendou dose tripla de Robalo ao Sal, que nem estava mau e o Bicho continuou, como se tivesse encontrado o pai, ou a mãe, com quem não falasse há anos. A verdade é que não se calava, parecia ter corda, ou uma metralhadora, eu nem tinha ordem de falar nem o queria interromper não fosse o homem rebentar.

- Nunca quis casar Baião, teria sido mau para ela, tu conheces-me, nem casar, nem sócios, nem amigos, foi por causa deles que daquela vez fui apanhado, não tivessem eles bufado e jamais me teriam deitado a mão. 

Portanto, a pequena a quem ele dera corda nem era esposa nem filha, eu bem digo que calado apanhava mais coisas que se o tivesse interrompido.

- Isto aqui quando cá cheguei era um maná Baião, um mar de oportunidades, e eu não aproveitava ? Toda a gente se aproveitava ! Roubavam-se de herdades a alfaias, a gado, a carradas de cortiça, ocupavam-se casas, Todos se amanhavam ! Entre setenta e quatro e oitenta e poucos era cada um por si, e eu, mal vi que lá nas inspecções miravam tudo e por cá nem inspecções havia nem perdi tempo ! Olha, meti-me a sucateiro, deixava cartões e comissões em tudo que eram pronto socorros ou oficinas, não te rias mas parecia o Sócrates !

Assim fiquei sabendo que adquiria por tuta e meia todos os carros de gama alta, recentes, estampados, ardidos ou acidentados e sem conserto que podia, parece que na Suíça levariam logo baixa mas por cá ninguém controlava nada, era comprá-los, com os documentos claro, que logo passava para nome próprio enfiando o chaço num barracão, ou barracões que alugara um pouco por toda a parte, Coina, Marvila, Dafundo, Loures, Azeitão, segundo ele até no norte chegou a ter três ou quatro alugados.

- Não me digas que das motas passaste a dar a palmada em carros, segredei-lhe eu. (e seria fácil meter a matricula dos estampados nos roubados, quem iria descobrir?)

- Qual quê pá ! Mas quem tinha necessidade disso ? Ainda tenho alguma vergonha, algum orgulho, roubar nunca ! Era fácil, ia a uma Rent A Car, alugava um carro igualzinho, metia-lhe as matrículas do “meu”, e vá de fazer-lhe um seguro contra todos os riscos, contra roubo, contra incêndio, contra quebra de vidros, envolvendo ou incluindo extras se ou houvesse, eles calculavam os riscos e os custos, eu aceitava o prémio proposto, pagava a primeira anuidade ia destrocar as chapas de matrícula e devolver o carro à Rent A Car.

- Não estou a perceber, ainda não cheguei lá confidenciei-lhe.

- Vai com calma Baiãozinho (o vinho começava a pesar em nós), nunca fiz um seguro duas vezes na mesma agência, trocava amiúde de seguradora e de cidade com mais frequência ainda, e se não têm sido as inspecções periódicas e o novo hábito de conferir matriculas e nºs de chassis o negócio ainda rodaria amigo. Bem, talvez já não, com o aparecimento dos computadores e isso, era automático concluir que o meu nome apareceria repetidamente como reclamando seguros de acidentes. Tocariam campainhas percebes ? Mas entretanto vivi anos disso, perdi a conta às vezes e às centenas de carros que as seguradoras me pagaram. 
Eu vivia bem, até era uma vida agitada e cansativa, é certo que arejava, que mudava de ares, de cidade, de agência, depois o progresso codilhou-me, estragou-me os negócios, esse e o das residências.

- Residências ?! Retorqui eu admirado ! Também te meteste no imobiliário pá ? Não há cão nem gato que não se meta nisso agora.

- Nada disso, nem foi negócio d’agora, limitei-me a explorar no ramo o mesmo nicho que fazia render nos automóveis.

- Que queres dizer, acho que já não te estou a acompanhar outra vez, tu és pior que o Arsène Lupin ! ***

- Era fácil, fácil até a informática me estragar a coisa, felizmente retirei-me antes de ter problemas, senão teria que explicar um dia muitas coisas para as quais não tinha explicações nenhumas, e a ter seriam encontradas coincidências a mais…

- Conta conta !

Já imaginava que ias pedir, afinal que tens aqui andado a fazer ? A dormir ? Havia que aproveitar as deslocações que fazia, se ia tratar de embarrilar uma agência com um seguro em Viseu, por exemplo, aproveitava a coisa, a estada, pegava nos jornais do norte, dali, da zona, e via os chalés, residências, casas de campo que havia para arrendar, preferencialmente mobiladas… com mobiliário antigo, clássico, quadros nas paredes, cutelaria em prata, estanhos, candelabros, tapetes persas, ou de Arraiolos, já percebeste ou tenho que te fazer um desenho ? Evidentemente o negócio rendeu, rendeu e bem, cheguei a ter casa de antiguidades aberta em Gondomar, em Gaia, que não por acaso tinham na câmara quem igualmente se amanhasse bem, se é que me entendes.

Pegámos o jantar com a ceia, estava um individuo igual mas diferente, era bem-falante, dominava bem a língua, que nele era cuidada, tinha modos nobres e gostos caros, confidenciou-nos morar numa quinta de sonho em Azeitão para onde nos convidou, era um jovem tão ignorante quanto eu ou quanto qualquer outro quando o conhecera, agora estava perante um gentleman, um homem culto, muito mais haveria naqueles quarenta anos que eu desconhecia, vivia, segundo dizia, de poupanças de uma vida e de um pequeno investimento que fizera muitos anos atrás na EDP, e nunca esquecera o que o pai lhe dissera;

- Um homem ou tem energia ou não se mete nelas !

Mesmo analisando literalmente a frase do pai era caso para aceitar que o Bicho a levara à letra, até num investimento pessoal, o pai lá saberia, e realmente a energia era tudo e era o futuro, só nunca quisera sócios, amigos ou cúmplices porque, como dizia, uma amizade é uma testemunha e quando menos esperas lixa-te.

- Sou apologista da iniciativa individual Baião, vai por mim, no que não puderes meter-te sozinho não te metas, é o meu conselho.

Soube-o bemfeitor, altruísta, e bem relacionado, como ele mesmo dizia estava a devolver o que tinha tomado de empréstimo e ainda lhe agradeciam e ficavam em favor, favores Baião, ou és padrinho ou és afilhado porque a vida está pior do que a pintavam os anarcas no nosso tempo de gaiatos lembras-te ?

Recusou-se a deixar-nos pagar a conta, ficava pelos cigarros que lhe levara em tempos, com juros claro. Qualquer dia lá iremos a Azeitão, antes que ele mande o motorista buscar-nos a casa…

*http://mentcapto.blogspot.pt/2015/01/221-contratempo-em-xangongo.html

** http://mentcapto.blogspot.pt/2015/01/223-farol-berlenga-grande.html

*** https://pt.wikipedia.org/wiki/Ladr%C3%A3o_de_Casaca