domingo, 11 de dezembro de 2016

404 - ESTENDIDA AO COMPRIDO * by Luísa Baião


               O meu filho tem dois cães muito meigos muito giros que, volta não volta me pede para acolher, como de netos se tratasse e sempre que o momento o impeça de os levar com ele. Como adoro os ditos cujos e a coisa vem a desejo, nada me importo com isso, mau grado o tamanho dos mesmos, assim para burro, mas um enlevo.

Calhou-me em sorte guardá-los no dia em que vim de férias e pelo fresco da noite saí com o meu marido, cada um com um p’la trela, ele c’o cão, eu c’a cadela. Como a noite estava fresca pisámos o jardim das canas e à boleia de lérias trocadas com alguns amigos rumámos à praça grande na mira das esplanadas. Entretida na conversa não me apercebi a tempo que o meu marido chamava e que a cadela, apressada, resolveu logo acudir. Dá-me tal puxão na trela, qual locomotiva em marcha, que me estatelou no chão onde sem eu saber como acabei por me ver estendida e, como devem calcular, c’a dignidade ofendida.

Embora tal não me alivie não fui nesse dia a única a ver-me estendida ao comprido, assim jazia também o CIEA, Centro de Inovação Empresarial do Alentejo. Nessa mesmíssima tarde e ao pôr em dia a escrita quanto à leitura de jornais reparei que, sem quaisquer propósitos, publicara o Diário do Sul a quinze do corrente, páginas centrais, 16 e 17, três notícias que o acaso alinhou e me levaram a esta singela conclusão acerca da qual vos convido a dedicar cinco minutos de meditação sobre o nosso fatalismo e o tempo que entenderem de requiem por todas nós, alentejanas e eborenses.

Numa dessas notícias afirma-se que mais de 50.000 empresas portuguesas se encontram neste momento em risco de falência, vinte por cento do total nacional, reportando ao mais recente inquérito promovido pela AIP. Outra, em caixa, colocava a nu o facto de a distribuição total do rendimento em Portugal ser a que apresenta maior disparidade entre os países membros da CEE, o que faz de nós os campeões da desigualdade, com os portugueses mais ricos a ganhar quinze, quinze vezes mais que os compatriotas mais pobres !

A última, bem, a última era a que nos dizia directamente respeito pois se tratava de uma convocatória do CIEA para a realização de uma Assembleia Geral Extraordinária, com um único e curioso ponto na ordem de trabalho; “a dissolução”, pura e simples, assim sem mais nem menos, a frio, de tal modo que apesar do calor que se tem feito sentir, estremeci com um arrepio.

Lembro-me ainda quando o mesmo Diário do Sul, há uns anos, publicitou a constituição desta instituição que julguei, como os seus estatutos então divulgaram, ser a chave, o motor, a alavanca sinergética do que nos faltava e infelizmente continua a faltar. Esperei que dessa vez fosse de vez e que em harmonia com outras instituições de que a cidade se orgulha, como a SODERA, o NERE, a UNESUL, a Associação Comercial do Distrito de Évora, o ODA, Observatório do Desenvolvimento do Alentejo, (se esqueci algumas, que me desculpem o lapso), a coisa fosse mexer, andar, que é como quem diz, desenvolver-se, assumir, como os estudiosos gostam de afirmar; “massa crítica” que permitisse quebrar a “inércia” detectada, a diagnosticada aversão ao risco, a ausência de espirito empreendedor. Enfim, tive esperanças que dessa vez estivessem completos os ingredientes necessários ao tão prognosticado caldo de cultura empresarial de que Évora carecia, e carece.

Temi então que os meus desejos não passassem de boas intenções, sabido como tudo se move tão lentamente por aqui e acreditei que dessa vez seria a vez de Évora, podem pois acreditar quanto lamento e desilusão  essa convocatória me provocou. Embora não faça parte do número de associados do CIEA, como eborense desejo fazer saber e sentir quanto lamento o desmembramento deste Centro de Inovação e de estudos, cujo trabalho não consegui acompanhar mas que a exemplo das outras instituições acredito ter sido esmerado e particularmente profícuo.

Não é justo que se iludam os eborenses, que não lhes sejam dadas condições para o seu próprio desenvolvimento, que se lhes tolham os meios de assumpção da sua realização. Este não é mais que um triste exemplo de como as boas intenções não faltam, nem chegam...

Se a minha vontade esmorecesse a cada contrariedade, há muito não estaria viva, por um lado, ou os projectos que abracei teriam atrofiado, por outro. È preciso teimar e querer... para vencer.


* Escrito por Luísa Baião numa quarta-feira, ‎23‎ de ‎Julho‎ de ‎2003, ‏‎pelas 13:35h e publicado por esses dias na coluna Kota de Mulher, Diário do Sul, Évora.



quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

403 - A BIZINHA DA BIZINHA POETINHA * ...........


Caíam as seis da tarde neste Dezembro frio quando entrei no Café Sportif para atestar e me aquecer c’uma bica antes de rumar a casa. Um tipo que eu nunca vira, simpático aliás, vendo-me entrar bafejando e esfregando as mãos cedeu-me o espaço dele junto ao balcão apinhado e:

- Faz favor amigo, à vontade, parece que vem com frio, já agora sabe dizer-me se a sua vizinha está melhor ?

- A minha vizinha ? Qual delas ? Tenho algumas dez ! Respondi eu.

- A poeta - disse-me ele um tanto ou quanto indiscreto, surpreendido com a cara de curioso que lhe mostrei.

- Por acaso é editor dela ? Ou espera entrevistá-la ? Para ser franco nem a sabia doente...

- Sou amigo, e estou em cuidados, o senhor já reparou que o carro dela não sai do mesmo lugar vai para mais de dois dias ?

- É amigo ? Peço desculpa, é que nunca o vi por estas bandas, a minha vizinha tem um furo no carro homem, se você espreitar a roda do lado do passeio verá que está vaziíssima. Apareça lá com um macaco que ela agradecer-lhe-á, digo-lhe isto porque tenho evitado sair pela garagem não vá ela aparecer-me à frente em robe chinês e com uma chave de rodas na mão.

Emborquei a bica quando acabei de falar mas ao pousá-la já o não vi, saiu cedo, com um frio destes, onde iria ?

Gosto do café Sportif, de vez em quando e ao fim da tarde costumo passar por lá e confessar-me, em especial nos dias frios, tem uma óptima garrafeira de aguardentes velhas e visquis. Nesse dia entrei e pedi a bica como normalmente, mas quando pedi a queijada habitual o Sr. Paulino muito solícito e de missal na mão disse-me não não. Olhei-o surpreendido.

- O cafezinho tá pago por uma menina prendada mas o bolinho não senhor Baião.

- Qual prenda amigo Paulino ?

- Não é prenda é prendada amigo Baião, refiro-me concretamente àquela fulana que costuma aqui vir com beltrana e o cumprimentam sempre efusivamente não se recorda amigo Baião ? Da última vez que aqui estiveram vinham com a tal sicrana em que a gente, enfim percebe-me, até lhe deixaram dois livrinhos de poesia que a semana passada lhe devolvi.

Bem, resumindo a história, lá tive que pagar a trampa da queijada, nem são muito boas sequer... Há horas em que a gente por causa de um bolinho perde a fé nas pessoas.

Conquanto perante o senhor Paulino mostrei-me surpreendido mas agradado. Costumo frequentar o Café Sportif, não sou habitué mas passo por lá de vez em quando, é agradável, fica perto de casa, o senhor Paulino é uma simpatia, ele e a esposa, e as casas de banho têm um chão que se pode lamber. Pena a televisão sempre tão alta e o senhor Paulino ultrapassar as barreiras do bom conversador e espetar-nos uma seca mal nos descuidemos, quem sabe se por ser licenciado em direito, talvez seja por isso, o que sei é que transforma o mais pequeno assunto num processo cível e depois, sendo a justiça lenta o assunto naturalmente arrasta-se… Tem dois ou três gatinhos que ronronam por ali e já me conhecem, gosto deles e eles gostam de mim, mal me vêem ocupam uma cadeira na minha mesa, talvez por eu cheirar a gatas, mais concretamente à minha Mimi que só falta mijar-me em cima para marcar a sua posse, o dono é dela e acabou-se.

No entretanto falamos, quer dizer desconversamos, ou tergiversamos, porque eu e o senhor Paulino estamos bem é embirrando, pelo que lhe atirei:

- Pois é amigo Paulino, se a nossa dívida começar a ser paga nem pedrinhas os portugueses vão ter para comer...

- Ó amigo Baião primeiro há que sair do euro, pelo menos é o que ouço dizer aí na televisão.

- Sair do euro amigo Paulino ? Então e passamos ao escudo de novo ? E fazemos a operação contrária e a divida será de imediato multiplicada por 200,482 não era esta a cotação quando aderimos à moeda única ?  Estamos metidos numa camisa de onze varas amigo Paulino, os nossos políticos não souberam erguer esta democracia, as nossas elites não conseguiram fazer-se respeitar nem respeitaram o Zé povinho, nem sequer souberam fazer a pedagogia desta democracia, só souberam fazer trampa... Estamos a empobrecer alegremente e vamos todos a caminho da miséria generalizada, há cada vez mais ricos e cada vez mais pobres, é a desigualdade generalizada quando afinal não é preciso não é forçoso que alguns vivam pior para que todos vivam decentemente... Bastava organização... Organização social... Funcionou na Europa durante mais de 50 anos... E agora admiram-se por se levantarem os nacionalismos claro !

- Pois é amigo Baião, lá porque a esquerda claudica o povo não deixa de exigir visão e liderança, neste momento a nossa pobreza de liderança é tanta que até eu votaria em Salazar mas isso já você sabe naturalmente, ou já sabe ou já intuiu... E digo-lhe mais, olhando a espuma dos dias passados, da semana que passou que acabou, em que Fidel e Salazar foram colocados em dois extremos opostos mas ninguém se lembra que um atrasou o país, a ilha, 50 anos, enquanto o outro o desenvolveu 40 anos, ninguém parece lembrar que um foi-se abaixo com a turbulência dos dias da guerra fria e o outro aproveitou as vagas desse mesmo mundo para subir mais alto, um quebrou e cedeu ante o bloqueio e não foi capaz de usar a diplomacia mas que o outro fez da diplomacia uma arte e fez-se vingar na maioria dos casos em que se meteu, como me pareceu aberrante um ter prendido e matado milhares enquanto o outro nem uma milésima dessa parte mandou “arrecadar ou apagar” sendo caricato que o primeiro tenha sido considerado um herói e o outro um fascista desprezível, é caso para dizer estar a vida pejada de arbitrariedades...

- Não deixa de lhe assistir a razão amigo Paulino mas este povo cega-se a ele mesmo enfiando os dedos nos olhos... tivéssemos nós uma direita inteligente, actual e culta e outro galo cantaria, até a esquerda seria outra... 

- Boa tarde apesar do tempo !

 - Olá boa tarde, que tem o tempo amiga ? Se é para pesar o tempo vais precisar de um bom barómetro amiga.

- Já o apesei, está muito apesado para o meu gosto.

- Olha,  tens um bom remédio, mete a mão na balança...

 - A balança, ainda continuo à espera que ma devolvas, já lá vai um mês ...  sem ela bem me deu trabalho a trafulhar... por causa da ASAE ...

 - Esses gostam muito de chatear a malta só para mostrar serviço.

 - Isso isso !  Mas eu dei-lhes a volta cá c'uma pintarola que nem imaginas !

 - Imagino pois, imagino que quando foram ver se a balança estava aferida e lhe prantaras um penso rápido.

- Pois pois ! Penso mais depressa do que falo.

 - É sempre um bom método.

 - Descartes nem falava !

 - Esse só pensava, só cogitava.

 - Ya, a esse bastava-lhe pensar... agora por mais c'a gente se ponha a pensar não acha modo de dar volta à vida ...

 - Nem a pensar, nem a trabalhar.

 - Calma aí, o meu primo Horácio tem dado umas palmadas numas seguradoras com uns esquemas que ele lá sabe e tem-se safado bem, e se bem as pensa melhor as faz... há que saber trabalhar diz ele.

 - Mas não te deu a receita pois não ? Deve ser segredo de família.

 - Dar deu, a coisa até é simples, a Luisinha é que nã me deixa meter no negócio, arrendas uns palacetes mobilados à burguesia do norte, mandas lá um avaliador fazer a coisa por alto, a seguir fazes um seguro de tudo e é só dar a palmada e esperar que a seguradora te pague os milhões levados... O Horácio tá rico, até a mulher anda tomando aulas de dicção que ela nem falar sabia e agora é uma senhora, arrendou na Garraia um armazém para guardar o material palmado... e daqui a uns tempos vai vender o que  roubou coitado... escorre-lhe por todos os lados... até já dá mecenato aos partidos...

- Que estavam a dizer de Salazar e do Fidel, quando falarem desse homem desse grande português ponham-se em sentido, não esqueçam que com ele foram quase 5 décadas de "orgulhosamente sós" mas que mantivemos o orgulho, agora desde pretos a chinocas devemos a toda a gente e nada é já nosso. Isto aventou para o balcão a Mariazinha que não se coibia de uma boa intromissão.

- Ora finalmente alguém que me compreende ! Alguém que patilha a minha opinião ! - Regozijou-se o senhor Paulino – E pensar que toda a vida a família me afastou da prima Ermelinda que tinha uma pensão no Beato... casei bem na mesma mas se sou um tipo opinioso a ela o devo ... e nunca lhe fiquei a dever nada ! Saibam vocês que a esses dois há mais semelhanças a separá-los que diferenças a uni-los... Gosto tanto de expressar a minha opinião como de ouvir quem a reitere, bem atirado minha senhora.

- Não há ditaduras festivas, por muito bem que se saiba dançar a rumba ou por muito rum que o fígado aguente. – Disse o Ismael que estava mortinho de bêbado e mortinho por se meter na conversa - Era só, mas é engraçado como se revoltam todos contra Salazar, que nem matou nem metade dos que Fidel "encomendou a Deus" e rezam a um bandido que oprimiu o povo e o fechou na ilha durante mais de 50 anos...

- Amigo Ismael não se deve falar de Cuba nem de Fidel, se não se leu Guillermo Cabrera Infante, o primeiro entusiasta da revolução e o segundo a virar-lhe as costas... Disse a Mariazinha tentando colocá-lo à margem da conversa.

- Sei bem do que falo, em Cuba a merda ta escondida, e nem falaria de Cuba e de Fidel se não tivesse lido esses e muitos outros, Dulce Loynaz, José Lezama, Reinaldo Arenas, Heberto Padilla, e o outro, Camilo Cienfuegos, e Huber Matos e os outros, tantos outros...E já agora diga-me então a senhora quem foi o primeiro ?

- Esses também foram para Miami ? – atalhou o Murta que sofre de um complexo de esquerda velho e apuradíssimo.

- Não, foram fuzilados alguns e exilados outros pelo teu bandido bem amado... – Ripostou o Ismael visivelmente irritado com a intromissão pela esquerda.

- É por estas e por outras destas que virei as costas á nossa esquerda... A mais estúpida do planeta... E que após o 25 de Abril depois de 40 anos de merda ainda acha que o país está bem...  mais valia que o parvalhão do Otelo e os outros tivessem ficado quietos e estaríamos decerto melhor... Portugal não passa dum país de palermas governado por sacanas ! Ferveu a Cilinha encostando-se ao balcão.

- Topem-me isto ! Vociferava o Galhardas espumando dos cantos da boca com a irritação, - A Dívida Pública Portuguesa aumentou num só mês (Outubro de 2016) mais de 12 mil milhões de euros ! E fica tudo quietinho e caladinho.

É este o "grande" sucesso do Governo da geringonça...
Devemos viver num país de palermas, só pode ser !
Topem-me a evolução da dívida líquida:
Dezembro de 2010 : 158.736 mil milhões de € (boletim 04/2013)
Dezembro de 2011 : 170.904 MM€ (boletim 04/2013)
Dezembro de 2012 : 187.900 MM€ (boletim 04/2013)
Dezembro de 2013 : 196.304 MM€ (boletim 04/2014)
Dezembro de 2014 : 208.195 MM€ (boletim 01/2016)
Dezembro de 2015 : 218.093 MM€ (boletim 03/2016)
Setembro de 2016 : 224.307 MM€ (boletim 10/2016)
Outubro de 2016: 236.774.835.815 MM€ (boletim 11/2016).
(Fonte: Instituto de Gestão do Crédito Público)

              - Tomem e embrulhem.... isto não vai acabar bem....

- Olha quem chegou, nina peço desculpa pois só a tinha visto uma vez e precisamente aqui, na igreja do Sr. Paulino ! Por isso no outro dia não a reconheci ! Você nem o véu levava !

- Reconheceu pois ! Perguntou-me: - é a Inês não é ? Tirei-a pela pinta ! – Eu nesse dia já tinha vendido as pitas todas e levados os camelos a passear... O véu era desnecessário.

- Pois o véu, ó bizinha cuidado com esta nina, anda nas aulas de dança do bentre da professora Amélia Mendonza !! sabia ?

- Pois saiba que não ando mas tenho pena porque adoro dança do ventre. E o bizinho da mãe bizinha também gosta ?

- Claro que gosto, ou gostei, na minha idade a musica é outra ! Eu agora gosto muito é de saltos para a mesa e de pulos para a cama !

- Quem é a pequena Baião ? – segredou-me o Ismael dando-me uma cúmplice cotovelada nas costas.

- Uma pequena que conheci há uns anos, tinha um bazar à entrada do Hotel Palestina, aos anos que não a via – respondi-lhe entre dentes. - teve um negócio de dança do ventre mas com a falta de corrente a toda a hora acabou por arrumar as botas... não sei para onde foi depois – acrescentei.

E foi assim com um súbito e despropositado desvio da conversa que me vi livre do esquerdista do Murta, do salazarista do Ismael, do chato e cuscas do Paulino e dos três gatos dele, do Galhardas e da Mariazinha, da bizinha e da filha que diga-se em abono dela e da verdade acabou por pagar a queijadinha, pelo que antes que me pedissem para mudar a rodinha ao carrinho sumi-me pela porta do fundo nem disse água vai nem água vem, deixando-os a discutir o sexo dos anjos precisamente no momento em que entrava pela frente o chato do engenheiro Arcanjo. Sumi-me mesmo na hora H que o tipo é um crava do caraças.

Bom Natal ! 



* ATENÇÃO, NOTA IMPORTANTE - Este texto não é totalmente original, todo ele é constituído por retalhos retirados de um outro texto e de diálogos mantidos pelo autor com outras personagens na plataforma Facebook. O alinhamento, colagem e escolha dos comentários e dos parágrafos que os mesmos vieram a constituir, foi sim alvo duma disposição deliberada e uma escolha criteriosa do autor do texto. Os nomes dos envolvidos foram por cortesia naturalmente alterados. Obrigado.

domingo, 4 de dezembro de 2016

402 - A ESPERA ... por Maria Luísa Baião * ................


Foi ansiosamente aguardada. Todo o meu mundo durante muito tempo girou em volta dessa espera. É verdade que quem espera sempre alcança, mas o tempo, que não passava, e a situação, que nem atava nem desatava. Nunca imaginei que a espera pudesse ser desesperante, ou quase.

Os meus estados de alma alternavam entre o júbilo, a alegria pelo momento aguardado e a tristeza pelo lento evoluir do tempo, esse tempo que quanto mais desejado mais intolerado se tornava. Eu andava já stressada, eléctrica umas vezes e cansada outras, de tanta energia colocada nas coisas, em tudo. E o tempo, e a demora demolindo as minhas resistências.

Sou ágil a pensar e a agir, mas nessa situação, impossível de controlar, tornei-me mesmo agressiva, insuportável, quando não precipitada. Nem as primeiras chuvas, nem o cheiro grosso a terra molhada, realidades que normalmente depositam no meu espírito, como rios extravasando os leitos, um aluvião de paz, me cercearam a emoção vivida. Uma emoção profunda e velha de tanto usada e abusada.


Momentos houve dando por mim intolerante para com o cheiro das flores, os ornamentos, os livros e os discos, e então, nessas poucas e raras vezes, tombei combalida, soturna e infeliz por não chegar esse momento tão ansiosamente aguardado. Na sala todos os móveis me pareciam taciturnos e austeros, escuros. E eu a distanciar-me de mim mesma, numa tentativa de me alhear de toda a situação, absorta na espera e no desespero. E o tempo sem se apressar, parecendo desejar irritar-me, passando em passinhos pequeninos, eu procurando não chorar, aferindo vezes sem conta relógios e calendários, cujas horas e folhas iam caindo de maneira compassada, regular, demasiado tarde para a minha pressa, para a minha ânsia, para a minha circunspecção.


Eu procurando dominar-me e às circunstâncias, eu a inflar-me de calma e cerimónia, enchendo-me de salamaleques para com as amigas e vizinhas, numa sofreguidão de empatar o tempo e esconder a mágoa difusa e inequívoca que não esquecia um momento sequer. Os físicos embirrando comigo, que tudo estava bem, sob controlo, no tempo próprio. E mostravam-me provas e exames, eu alheia a tudo aquilo mirando constantemente o calendário do relógio e fazendo contas de cabeça, enquanto por civismo e deferência debitava frases óbvias, fórmulas de ocasião, odiando-os por terem razão, olhando-os de soslaio e atirando-lhes críticas pensadas por não me enganarem, por não me iludirem, por não me mentirem.

Era errado pensar assim, mas animava-me, trazia-me um conforto sem alívio, e eu, num débito de reconhecimento e consideração sorria-lhes e agradecia-lhes, concordando.

Um dia houve que após a chuva, manhã alta, ergueu-se uma bruma colada à terra, imersa nessa névoa, enterrei nela a minha solidão e tristeza. Coisa pouca, o ritual de cerimónias instalou-se de novo mal saíram os primeiros sinais de um sol quente, afastando as nuvens. Voltei ao formalismo de um funcionário do ministério dos estrangeiros, diplomacia a quanto obrigas, corri as cortinas mas a bruma não voltou, a névoa não voltou, nem me cegou nem fez esquecer. O coração voltando ao ritmo acelerado que se tornara norma, descompassadamente, indiferente à devastação que ele e a espera talhavam em mim.  


A espera, essa terrível evidência de que nenhum recurso me podia livrar e que tive, uma vez mais, de admitir sem contestar, sem protestar, prostrada já ante uma natureza imutável que nunca lograria alterar. Aceitei os factos, foi como se me deixasse conduzir por mão amiga, impregnei-me de uma solicitude afectuosa e, de quando em quando, passava por baixo das narinas um lenço embebido em água-de-colónia.

Lembro-me de, por vezes sentir frio em pleno verão, um frio enorme dentro de mim como se fora de gelo, o estômago sempre contraído, eu apertando as mãos junto ao peito. Colocava então um casaco sobre os ombros, acendia um pauzinho de incenso e esperava. Esperava que o tempo que não passava passasse, que fosse já amanhã, a semana, o mês seguinte, sentava-me no sofá, a minha gatinha no colo, e adormecia com essa esperança que nos desespera.
  

Finalmente chegou o momento ! Todas e todos corremos acossados para ver o milagre ! Fizemos de magos, telefones e telemóveis tiniram e surgiu ouro, incenso, mirra. À nossa frente o milagre, buscando a mama na avidez da vida, muito cheiinha e muito bonitinha, cabelo escuro, comprido, como as mãos e os dedos, olhos pequeninos perscrutando a existência, a novidade, a beleza de ser.

Os pais chamaram-lhe Leonor, e eu tornei de novo a ser quem era. 
  
                        
* Escrita numa quinta-feira, mais precisamente a 19 de Outubro de 2006, às 15:48:13 e publicada por esses dias por Luísa Baião na coluna Kota de Mulher, Diário do Sul – Évora

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

401 - HÁ FADAS EM ARRAIOLOS, por Luísa Baião*


 Estando um dia bem bonito, o verde campo florido de malmequeres preenchido libertou no ar mil cheiros, desejos e tantos apelos, que acordei em alarido. Assim que o sol despontou invadiu-me a alegria e nada nada demorou pr’a que liberta do enfado, tivesse agarrado o carro e apontando estrada incerta vogando sem qualquer fado, como quaisquer navios perdidos rodando em estrada deserta.

Faço isto algumas vezes para fugir ao fastio. Nada tendo a proibir-me libertei-me das grilhetas e quando alguém me chamou era tarde e já corria tanto quanto as borboletas. Corria pl’o Alentejo, pl’o Alentejo que eu amo, campos verdes e floridos, cheiros inebriantes e queridos, da terra que o olhar conquista, paisagem a perder de vista, como em vasto mar oceano.

Rolava despreocupada por uma estrada tão pisada, quando, sobre o alto de um monte me acenou o branco azul do casario deslumbrante. Em consciente desvario virei o rumo rumado e o almoço traçado pr’onde se fixavam os olhos e rumei a Arraiolos, vila que sempre adorei.

Sempre sempre no beicinho, as queijadas de toucinho tão macias, tão gostosas, de chorar e pedir mais. Almocei no Condestável, uns segredos de bom porco e outras especiarias tais. Passeei, calcorreei, ruas agora renovadas, outras inda esburacadas e tentei ver a verdade de conversas apuradas sobre estórias tão diversas como os buracos da praça, silos pr’a cuidados futuros, talhas de tintureiros em apuros** ou simples contos brejeiros de contadores feiticeiros.

Com passos vagos, gestos lentos, me passeei. E do castelo enxerguei quando o olhar semeei, como um sopro sobre as vagas, as searas ondulando, sussurrando histórias de antanho que, ofuscando, convidavam, a ver imagens de armas, de Miras e de Rivaras, de D. Fernando de Bragança o maior de Portugal e abastado senhor. Histórias de então e de hoje, de gentis almas misteriosas, recatadas, habilidosas, em secretas e novas missões arroladas, cujas vidas só o são, por muitas vezes em verdade, nos mais belos contos de fadas.

E, frente a quem dá a vida, num gesto de grande amor sem esperar qualquer outra paga que não seja um mero louvor, pequena fonte verte água e alimenta um espelho dela onde de forma singela se reflecte num mosaico, belo caleidoscópio arábico (?) que honra essa nobre terra.

Descida à vila de novo, labirinto onde mãos de fada cumprem turnos de horas mortas, vi dar à luz milagres extras, partos saídos de mãos destras, cuja beleza nos enleva e em sonhos nos revela ao tocar-lhes de mansinho, o ciciar do carinho com que portas dentro tecem, tapetes que vamos sentindo como janelas abrindo caminho a vidas mais belas. ***

Não vi nessa terra mágica nem mistérios nem segredos, mas vi, como nos degredos, trágica sina da gleba, gestos ledos mas estudados, donde irradia um esplendor que ofusca tristes tormentos passados na gestação dos enredados novelos. Calhou-lhes como fado e em destino tecer obras que glorificam e que sorrindo fabricam c’a gravidade de almas nobres, mas não por certo p’rós pobres.

E ali, a ver se encantam, mesmo à mão de semear, em exposições que nos espantam, como quem nos está a chamar, podemos ver a beleza estender-se numa certeza de quem sem as leis dominar, nos borda em excelsos padrões, geométricas constelações que nós gentios cobiçamos se para casa levamos com um aviso; “ não pisar “ !

E não havia segredos, nada até de espectral, apenas trabalho extremo, obras de alto coturno e a prova de que há na vida quem tenha tido por destino não um ofício de menino, mas ofício virado vício, em que a agulha a trabalhar, vai tecendo no bulício de vocações ancestrais, tapetes de porcelana, cuja marca não engana escultores, pintores ou amores de quem a verdade ama. Acariciei-os de leve, fechei os olhos expectante e ao toque do tapete, os sentidos se me abriram, qual janela mirabolante se expandiram e quis crer, de olhos fechados, mesmo sem ver, que a vida se me revela, e que estar viva, que ter vida, é ainda a coisa mais bela.

  
* Publicado por Luísa Baião em 10-2-003, coluna Kota de Mulher, Diário do Sul – Évora    



 Pode ter existido em Arraiolos um destes complexos tintureiros. 
  Pode ter existido em Arraiolos um destes complexos tintureiros.
Arraiolos complexo tintureiro surgido em escavação.

401 - CAVALGADA HERÓICA ........ Alter ** .........


A semana tinha sido exaltada e prenhe de apreensão. Choveria? Não choveria ? E tanta coisa pendente disso ! No sábado aprazado entre as sete e as oito da manhã, três ou quatro vezes tirei a moto da garagem e a voltei a guardar. Finalmente, pelas oito e pouco uma aberta prometeu um dia lindo ! Não hesitei ! Mota fora ! Aí vamos nós ! Quando cheguei ao ponto de encontro estavam lá vinte ou trinta resistentes como eu. Pelas nove e já com sol, estavam reunidas perto de sessenta motos e mais de noventa amigos ! Partimos rumo a Alter do Chão, às coudelarias reais !

Pelo sim pelo não todo mundo tinha envergado os fatos anti chuva, não fosse o diabo tecê-las. E não foi que teceu mesmo ! Desde a saída de Évora, pelo Frei-Aleixo e até Estremoz foi uma prova de resistência em que ninguém foi abaixo. O passeio prometia. GNR na frente e atrás p’ra não deixar ninguém sair dos eixos, a estrada molhada fazendo com que nas curvas o esfíncter se contraísse. Uma neblina de sonho solta pelos pneus das motos pisando no molhado tudo toldava, enquanto os escapes abertos provocavam um silêncio ruidoso e ensurdecedor de que me fui alheando, propiciando a que deixasse a moto deslizar e os sonhos divagar.

É preciso saber sonhar sabem ? Deixar espaço ao sonho… A mim faz-me sentir bem, é um estímulo cada um destes passeios, um período consagrado à divagação em que a sensibilidade é levada ao ponto de exaustão. Ao extremo.

Na orla do ângulo de visão permitido pelo capacete divisava os raios de sol desenhando na neblina grinaldas com mais cores que uma palete e eu, acelerando num ritmo certo deixava o imaginário ir fluindo, acompanhando a estrada que não via já, toda ela um carreiro de amor, as motas como um rebanho criado pela minha pródiga imaginação. Os traços descontínuos da via bruxuleavam ante os meus olhos soltando reflexos doirados e coloridos quando o sol batia na estrada, no espelho da estrada molhada, desenhando vitrais góticos cujas cores não encerravam figuras mas lembranças e sim, lembrei-te em baixo-relevo enquanto, delineando as curvas, fiz todas sem que por uma sequer tivesse dado, sem que uma vez tivesse pisado o traço, e, em cada curva tu, e eu, perdido em carícias ingénuas, nem ciúmes nem saudades, somente o coração batendo placidamente, o motor ronronando, a estrada fugindo, eu sonhando e uma 125 azul surpreendentemente, acompanhando-nos. *

No peito uma chama de desejo, lume ardendo nos sentidos, volúpia que meu corpo sublima bamboleando nas curvas. Não chove já, acelero de novo, acompanho-os sem dar por eles, as curvas repetem-se, cada vez mais perto de ti, não sei já em quais delas penso, se nas que molhadas são um perigo se nas tuas, cuja silhueta mentalmente desenho preenchendo-me com desenhos que me toldam e tornam lascivos os sentidos, enquanto desprendido de tudo, tramo mergulhar em pecado na boémia, ébrio do teu odor, do odor libertado pelos prados que a estrada ladeavam e a primavera confirmava. Confundido rendi-me a mim mesmo e curvei sem dar por tal ou pela estrada, há muito que não chovia e o sol afagava-nos com os seus raios, espraiei os olhos pela paisagem e foi a ti que vi como se tingida na retina, beijando-me em lírica e serena ausência mas prenhe de promessas e delírios sabendo-me presa fácil de paixões e carências.

Chegados apenas os cavalos me seduziram pelas possibilidades de montar um deles, preferencialmente alado que, por milagre, minha alma levasse mergulhando-a em céus de esplendor num gesto delicado que, tocando a abóbada celeste, te envolvesse neste anseio conquistando-te o corpo quando eu, de ouvidos tilintando embriagados, vendo em meu redor flâmulas e pendões multicores rodeando um mar de rosas entre nós e o céu, só tivesse dado acordo de mim quando as trombetas me solicitaram para o festim do almoço.

Restaurante abarrotando, mesas sobrelotadas, toda a gente quer ficar perto de toda a gente mas não te alvitro entre os demais, enquanto isso o espírito de camaradagem e de festa divaga sobre nós abençoando-nos, retribuímos não desdenhando do cozido nem do tinto ou da cerveja que pródigos pajens e arlequins nos colocaram à disposição. Confesso não ver já quem está à minha direita, à esquerda ou em frente, que interessa isso se somos como irmãos de velha e honrosa irmandade?

E não me sais da ideia, lembro ter afivelado um sorriso que me durou toda a tarde e não perdi, antes guardei, não fosse caso que, na prova de vinhos em Estremoz, te perdesse do pensamento sob influência de tais éteres pois só vê-los bastava para nos toldar a razão. Mas não estive com cuidados, minha alma vagabunda tanto navega neste mundo como caminha sobre o mar, pois não sou de nenhum lugar, nem me acho louco por ser assim, vos garanto porém embora não lembre já o opíparo jantar, ter sido um dia tão feliz, tão feliz que somente no dia seguinte dei por mim e, como sempre lá estavas, não sei se à minha esquerda se à minha direita, acho que à direita, não fosse a bainha da espada enredar-se na roda do teu vestido...


** Devo esclarecer que esta linda cavalgada teve lugar em 2009, foi promovida pelo grupo de amigos das motas da empresa Estradas de Portugal EP, belissímo passeio que me esquecera da publicar.... Aproveitei agora a oportunidade... Bom jantar para todos e todas, boas curvas, Bom Natal, bons passeios e um abraço... :)

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

400 - ENQUANTO FUMO UM BOM CHARUTO ...




Há semelhanças separando-nos entre as diferenças que nos unem,
amei-te em tempos, como me amaram, depois, contudo, todavia, porém.

Não foram ciumes, foram dúvidas, ilusões, apreensões,
foram desilusões piores que cepticismo,
e as certezas, absurdos inaceitáveis, visões inverosímeis.

Os relógios sem corda, parados no tempo errado,
inda que certos duas vezes ao dia,
só, sós,
numa feérica ilusão de harmonia.

Harmonia pré-fabricada,
com pós-verdades, como agora se diria,
esquecido Cabrera Infante, Dulce Loynaz,
José Lezama, Reinaldo Arenas, Heberto Padilla,
e o outro, Camilo Cienfuegos, Huber Matos e outros, tantos outros.

Um cenário p'ra inglês ver, a virtude, a inocência inicial, o pecado capital,
a felicidade forçada, decretada, imposta, o improviso guindado a arte,
a arte sem arte urbana, a arte urbana tornada kitsch,
o kitsch duma matrioska, a matrioska como o handcraft suiço,
feito à mão em fábricas ultra modernas, o kitsch em série,
o artesanato nato, infalível, nado e criado com injectoras de alta pressão,
para alumínio, para plástico, ou em modernas impressoras 3D.

Enquanto lá, sem WiFi a vida não dá, e todos, peões de brega,
iguais, iguaizinhos, igualizados, maquinados, formatados, alinhados,
alienados, alinhavados,
pegando a vida de cernelha,
agarrando-se à ínfima centelha com que se acendem os charutos,
enrolados à la main, bloqueados, contrabandeados, falsificados,
condenados, malfadados, apreendidos, mitificados, amados, sagrados,
símbolos de irreverência, de subserviência, paciência, impaciência,
despotismo, abuso, prepotência, arbitrariedade, 
a resiliência d'uma causa justa que virou incerta,
de quem já nada se diz de ciência certa.

Apagou-se a vela,
lamenta-se ou aplaude-se,
agora sim começou uma querela,
e a divinização, a canonização,
que tempos estes os da pós–verdade,
sem magia, sem credo, sem fé,
onde,
tudo é gozo, riso, mentira,
quem diria aqui chegarmos,
vejam só a ironia.

Ah ah ah ah ah ah ah ah ah ah ah ah !


quarta-feira, 23 de novembro de 2016

399 - BRAVO, JERÓNIMO ! * por Maria Luisa Baião

          
           Atravessava um destes dias o nosso burgo, quando ao descer precisamente a Rua de Burgos me lembrei que não deveria deixar passar em claro a tão comentada exposição de Marcelino Bravo, ali à Delegação Regional de Cultura do Alentejo. Em boa hora o fiz, porque não me arrependi, antes pelo contrário.

            A primeira impressão que colhi foi precisamente aquela que as páginas deste diário tinham já anunciado, cores fortes, quentes e emotivas. A segunda impressão foi-me transmitida pelo dinamismo das curvas do seu traço, lembrando o estilo “arte nova” do início do século XX, em que o real era, e contínua a ser pelo que vi, traduzido num estilo livre mas fortemente evocativo, um traço indelével de automatismo nas formas que caracterizou a pintura dessa época.

           Como então, a arte de Marcelino Bravo exige uma particular atitude para ser olhada, pois deixa transparecer uma mestria, uma dextria própria, não incompatível com a grande disciplina das formas e imagens.

            Nelas encontramos originalidade conceptual e um forte sentido de estrutura. É também perceptível uma suave distorção da realidade, o que só acentua a força de expressão das suas emoções interiores e de onde resulta certamente o jogo quente das cores que o individualizam e libertam da realidade natural.

            A policromia, as cores vivas, fazem lembrar as paletas dos impressionistas e neo-impressionistas, e revelam um mundo muito particular de relações cromáticas, (expressionismo?), decididamente liberto de inibições quanto ao uso da cor e de convenções quanto às formas.

     Alguns traços geométricos revelam vagamente o “realismo cubista, ou preciosismo”, no entanto Marcelino Bravo não abandona as formas, às quais dá como assinalei, notável relevo pictórico, de realçar o vermelho puro, incendiado, na tela com Monsaraz ao fundo.

            São sobretudo as suaves distorções das formas e as cores que acusam na sua obra um traço expressionista, linhas e cores dissonantes, apontando para a natureza certamente hipersensível do artista, expressionismo bem patente na forma como é expressa (perdoem-me a redundância) a sua ligação e amor a Évora e ao Alentejo. As formas geométricas de composições como “Évora Património” apontam na direcção do expressionismo abstracto que Marcelino Bravo não concretiza, quanto a mim felizmente, para que se não perca a fácil identificação da sua forte raiz alentejana e eborense. Gostei, muito.
            E mal saí do nº 5, não me contive, e entrei no nº 6 da mesma rua, na “Galeria Jerónimo”, uma entre tantas lojas de artesanato, que contudo esconde mistérios insondáveis.

            É o refúgio conhecido de Jerónimo Amaral ** artista ignorado que todavia leva no rol vasto número de exposições de esculturas em ferro. Diferentes composições, mas todas elas figurativamente características e possuidoras de uma intensidade selvagem.

            Apresentando um grande contraste entre as diferentes obras, a sua criatividade tem um sentido de mistério que tanto nos inspira harmonia e paz como revolta, protesto, ou algo de grotesco. Jerónimo Amaral espanta-nos com a sua criatividade e técnica, virtuosa e radical ao mesmo tempo, e parece não conseguir esgotar as virtuosidades e possibilidades de cada tema a que deita mãos. Estranhas, desconjuntadas e distorcidas nas suas formas anatómicas, os seus temas emergem como criações “surrealistas”, em que o compromisso com a violência serve por vezes de mensagem e suporte à defesa do ambiente, mas que não quebram totalmente com o racional, ainda que procurem uma beleza chocante que porém fica tenuemente presa à racionalidade e á lógica. Mais que acusando traços das “Construções em relevo” do movimento “construtivista”, Jerónimo Amaral faz a sua própria escultura de materiais que vai reciclando, desperdícios metálicos, lixo, e criando figuras e formas de impacto impressionante, muito engenhosas e não raras vezes animalistas. Simplicidade e simbolismo são características de todas as suas esculturas em ferro, misto de uma visão de “outsider” e de “técnicas de colagem” na escultura.

            Se algumas das suas obras parecem revelar “histeria nascida em estúdio”, o artista, o homem, o outsider, é contudo uma paz de alma e fonte de simpatia. Jerónimo Amaral gostaria talvez de ser anti-social, não o consegue, trai-se a cada sorriso e involuntariamente deixa transparecer um calor humano que gera de imediato forte empatia. Essa sua faceta trai a concepção “dadaísta” que desejariam atribuir à sua obra, obra em que não existe uma recusa da procura do belo pelo insólito.  

             Muitos anos de vida para o Jerónimo Amaral. **

             Vão ver com os vossos olhos. 
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Nota minha: Não faltem à "PRESENÇAS" de Marcelino Bravo na Biblioteca Pública de Évora !!
O "home" só expõe de quinze em quinze anos !! Aproveitem !! 


* Publicado in DIÁRIO DO SUL –  “Kota de Mulher” - 01-02-2001 by Maria Luísa Baião

** O saudoso  amigo Jerónimo Amaral já não se encontra infelizmente entre nós.

Perfil de Marcelino Bravo no Facebook:  https://www.facebook.com/marcelino.bravo.56/photos?lst=100000792991962%3A100004495483657%3A1481581098&source_ref=pb_friends_tl



domingo, 20 de novembro de 2016

398 - ARMINDINHA, AI MINHA MENINA …...........



Eu teria quinze anos e a Arminda uns dezoito, ligeiramente mais alta e encorpada tentava impressionar-me dando às asas, digo aos braços, tentando assim aumentar o tamanho do peito, tinha um peitinho pequenino, uma coisa miudinha, linda, lembro-me tão bem. Parecia um anjinho de pele branquinha dando às asinhas e eu dizia-lho. Aos quinze anos já tinha um bom rol de paixões vividas e consumadas, embora com a Arminda fossem só devaneios e arrebatamentos de rapazes, digo de jovens, pois nunca tomei sequer um café com a Arminda. Um dos aromas de que gosto e sempre gostei é o do café, adoro-o, adorava-o e quando ia a passando, calhando haver uma cafetaria era fatídico, entrava para uma bica escaldada.

Quanto à Arminda sempre gostei dela por outro motivos, se bem que ela depois de casar com o senhor Óscar se tenha enchido de brios e nem quando ele morreu ou mesmo depois de ultrapassada a dor da perda me tenha voltado a querer. Hoje compreendo-a, o senhor Óscar não deixara filhos, a mercearia enriquecera-o, se bem que já fosse rico à data em que a fundara pois que para tal tinha adquirido o Palácio do Farrobo* e, num golpe de sorte o estado veio a adquirir-lho para nele instalar o actual edifício do Registo Civil e Tribunal tendo feito dele, Óscar, num golpe de sorte e dum dia para o outro um homem rico. A mercearia veio a ser inaugurada menos de cem metros mais abaixo, ou mais à frente, na vertente da Rua de Machede** virada para o pequeno Jardim do Bacalhau, na verdade um muito melhor local que o inicialmente pensado Palácio do Farrobo. Anos mais tarde, após muitas sovas e cheia de filhos, Armandinha cedeu e, muitos dos eborenses se lembrarão ainda, o espaço foi por ela dado de arrendamento para loja de louça de barro que, à direita de quem subia a dita rua se manteve aberta durante quase duas décadas. 

Era esta riqueza ou esta herança que a Arminda acautelava, não se deixando levar nem tão pouco por devaneios embriagados no mar de fardos de bacalhau por onde tantas vezes vogámos. Um parêntesis para vos dar conta do meu melindre, já que a Arminda me colocou de parte com receio que a viesse a enganar ou a tornar-me oportunista por mor da herança dela, para no fim acabar nas mãos dum magala do Regimento de Artilharia 16 que lhe batia e detestava o fiel amigo. Mas enfim, arbitrariedades da vida. Gostar da Arminda teve sempre muito a ver com o facto de eu adorar o olor das mercearias antigas, daquelas que tinham feijão e grão a granel, e arroz, e açúcar, em cubas de madeira na loja e que demolhavam os fardos de bacalhau, nesses tempos humedecido de propósito para pesar mais sendo guardado num armazém das traseiras, bacalhau que depois um facalhão de eixo, tipo guilhotina, articulado e preso ao mármore do balcão cortava em postas bem pesadas.

 Como já disse eu adorava aquele odor e por arrastamento o cheirinho da Arminda, a marçana por trás do balcão e com quem, por vezes, eu brincava ao esconder no armazém, entre fardos de bacalhau, sempre atento à vinda do senhor Óscar, o merceeiro a quem a Mercearia Do Farrobo enriquecera. Ricas pernas tinha a Arminda, isto recordo agora por falarmos em riqueza, hoje talvez não tivesse quem a apreciasse como eu, era cabeluda do umbigo ao rabo e, mesmo às escuras e no meio dos fardos adorava passar-lhe a mão pelo ondulado do cabelo negro ou pelas tranças que, de vez em quando com vagar uma amiga lhe entrançava e lhe caíam até meio das costas, até ao rabo para ser mais preciso que estas coisas da clareza e da objectividade são um esforço que vos devo.

Passados bem poucos anos passeando-me eu pela baía de Luanda sou agarrado por trás com alguma violência por um tipo que não demorei a identificar pelo cheiro, era o escurinho, o monhé, o menino Teles de Menezes, o magala que arriava na Arminda e que fora mobilizado por castigo. Sempre cheirara a caril dos sovacos. Esturrara grande parte da fortuna dela e numa sova maior que lhe dera saíra-lhe a sentença em rifa. A queixosa fora directa ao comandante da unidade que depois de aplicar um correctivo ao magala providenciou para que ele entrasse nos eixos tendo-o despachado para a longínqua Angola… Antigamente não havia condenação penal da violência doméstica é certo, mas existiam meios muito mais expeditos de acabar com ela de um minuto para o outro, hoje a democracia, os tribunais e os advogados enfernizam e eternizam tudo…

Foi assim que a Arminda primeiro se viu livre de mim, um gaiato, para se entregar nas mãos de um homem feito, com mais três ou quatro anos que eu, cinco no máximo, que por sua vez fez dela uma mulher a sério, uma mulher com sofrimento e tudo, coisa de que eu jamais teria sido capaz. Não me salvei porque nunca pensara converter-me de alma e coração às delícias da Arminda, como sempre concordáramos nunca passou dum devaneio de juventude, um amor de perdição pelo seu cheirinho a bacalhau, uma pele tentadora e macia como grão-de-bico cozido e um hálito permanente a menta e a café. Sinceramente nunca me vi como marçano, nem sequer sonhei com tal coisa, mas com a Arminda foi outra loiça… 

               Uma postinha de pescada da melhor… 


* http://viverevora.blogspot.pt/2011/06/evora-perdida-no-tempo-interior-do.html# 

** http://monumentosdesaparecidos.blogspot.pt/2012/01/palacio-do-farrobo-evora.html


Jardim do Bacalhau