segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

414 - O ÚLTIMO FÔLEGO DAS LUMINÁRIAS ...


(Em caso de  emergência respirar por um tubinho.)

Nas últimas semanas, ou mês, a comunicação social, mormente a escrita, tem-se debruçado sobre as tentativas, intenções e legislação preparada para, segundo o governo, se proceder durante o corrente ano a uma verdadeira descentralização de competências cuja responsabilidade passará a recair sobre os municípios. A começar pela gestão dos fundos europeus Portugal 2020.

O governo alega em defesa da sua boa-fé, esgrimindo como argumentos o facto, verdadeiro, de nunca terem sido delegadas nos municípios questões ou áreas, digo responsabilidades de tão manifesta importância, coisa de que os mesmos se deveriam orgulhar, pois finalmente este governo reconhece as capacidades dos municípios e atribui-lhes condicentes obrigações, numa atitude de desconcentração de poderes sem paralelo na nossa história.

Os municípios mui naturalmente estranham a fartura, e claro, acusam tão grandiosa quão boa intenção de regionalização encapotada, o que de facto parece estar a acontecer, e ainda de o governo lhes atirar para cima áreas e situações, razões e problemas que ele governo nunca foi capaz de cabalmente resolver. Para tudo piorar fá-lo sem o acompanhamento de uma justa compensação financeira, digo dinheiro, de sobra preferencialmente, sempre ele, o dinheiro, dando de barato em relação às propostas do governo que de boas intenções estará cheio o inferno.  

Não irei aqui terçar armas nem por um lado nem pelo outro, cada um procura gritar mais alto, cada um procura esconder a realidade fazendo-se crer mais lúcido, mais competente e responsável que o outro, quando no fim de contas ambos escondem a pilhéria que sempre foram e de que não passam nem passarão.

Se há quarenta anos atrás tivesse havido a coragem de descentralizar a fundo, ou regionalizar, eu teria compreendido a atitude, atitude que evitaria que hoje cada região sacuda a água do capote e atire com as culpas do seu atraso para cima dos vários governos, de todos os governos. Como sempre a culpa é dos outros e nunca nossa. Embora o país não seja grande, diz-nos a história ser dificílimo de governar, e há quarenta anos, com incipiente rede fixa, uma baixa densidade de telefones instalados entre a população, cuja cobertura estava longe de cobrir 50% das residências, sê-lo-ia ainda muito mais. Sem modernices como faxes, sem satélites ou rede móvel, a Marconi, os telegramas e os estafetas eram então a realidade pré-histórica em matéria de comunicações na qual vivíamos mergulhados. Poderes regionais teriam superado com maior facilidade estes constrangimentos naturais, agregando da região uma imagem que o longínquo Terreiro do Paço teria mais dificuldade em apreender.

Decorridos quarenta anos, e depois de termos errado e falhado todas as visões e decisões, praticamente em tudo que nos propusemos fazer, resolvemo-nos finalmente deitar mão da regionalização / descentralização. Com a verdade me enganas diz o povo e mui acertadamente. Por detrás das boas intenções algo se esconderá de maléfico, negro, e maquiavélico, digo eu, senão vejamos:

Durante quarenta anos em que a Europa e o mundo estiveram relativamente em paz e poderíamos ter feito alguma coisa de jeito sem sermos incomodados, quiçá até ajudados, nós dormimos, fechámo-nos em guerrinhas intestinas e politiquices mesquinhas tal qual o cigano a quem o mano não deixava molhar a sopa e que por isso levou uma galheta do pai. Nós fechámo-nos na nossa maniazinha de grandeza, como fizera a China que se isolou do mundo dentro das suas muralhas, e que ao acordar deu por estar duzentos anos atrasada desse mundo exterior de que se afastara e com quem não quisera partilhar os seus segredos e o seu avanço.

Todavia, é precisamente agora que o mundo entrou em ebulição, agora que o mundo não vai tão depressa parar de ferver, agora que esse mundo nem vagar terá para olhar para nós quanto mais auxiliar-nos, agora que estão reunidas todas as condições que desaconselhem fazer o que quer que seja é que nos chegou a vontade de fazer alguma coisa. Não nos iludamos, de um modo ou de outro, com ou sem descentralização ou regionalização o país vai regredir, vai definhar e empobrecer ainda mais. Durante quarenta anos foram cavados fundo os alicerces da nossa miséria, como sempre 8 ou 80, e agora estão fundos e sólidos, fortes, ninguém será capaz de mover ou demover o que quer que seja e está garantido o mergulho na miséria e na pobreza desta democracia de pechisbeque que ardilosa e arduamente a estupidez ergueu. Tudo que tenha pés de barro afundar-se-á, e tudo tem.  

Só não vê quem não quer, agora que os meios de comunicação, a informática, o digital, os chips, os pixéis, os gigabytes, os circuitos integrados, a robótica, a inteligência artificial, as videoconferências, a condução autónoma, os telemóveis de última geração, o Google Earth, os processadores, os algoritmos, os dados estatísticos vomitados em segundos aos milhões, agora que o terreiro do Paço está a um clique de distância de Sidney, agora que dispensámos a Marconi e qualquer dia os CTT, agora que alguém numa salinha pode através de satélites ter uma panorâmica completíssima e em tempo real deste pequeníssimo país e gerir, governar em conformidade, é precisamente agora que querem dispersar os poderes decisórios descentralizando-os, regionalizando-os, entregando-os nas mãos de quem em quarenta anos não foi capaz de tornar cada região uma região única no mundo, avançada, moderna, responsável, dinâmica, produtiva, planeada, guindada ao sucesso. Portugal ainda tem todas as condições para ser o Paraíso da Europa, senão do mundo, mas com os mesmos portugueses que têm vindo a gerir a coisa só o inferno estará garantidamente garantido. 

Deus nos ajude. Isto não é mais que o último fôlego das luminárias.

Rapaziada não se deixem enganar, o que esta atitude diz claramente é que o governo assume não ser capaz de governar eficientemente o país, como outros antes deste não foram. E quem não estiver bem que se mude...

- Tomem lá esta merda e desemmerdem-se !

Este é o grito ocultado que se está atirando aos municípios, e parece em boa verdade ser o vero discurso oficial, um discurso destinado ou dedicado a alijar a carga e a responsabilidade de quem até aqui não acertou uma, não acertámos uma, em tudo e durante todo este tempo este país tem obtido um resultado deplorável que só nos deixa como opção fazer a trouxa e zarpar, e cada vez são mais a fazê-lo.

Claro que mais uma vez os municípios não saberão nem conseguirão desemmerdar-se, ou não tivessem eles até aqui feito outra coisa que não merda. Duvidam ? Olhem para o estado de cada concelho, de cada distrito, ou para o país. 

O sucesso de quaisquer políticas mede-se pelos resultados obtidos. Está tudo à vista. 

Dança Can Can dos Coça Barriga.

http://www.dnoticias.pt/pais/costa-quer-2017-como-o-ano-da-maior-descentralizacao-para-as-autarquias-AL692604





quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

000 413 - LANDS OF NOBODY ...................................

           

Pois o que sucedeu, muito antes ainda do nascimento desta fulcral e primordial Júlia se tornar imprescindível à nossa história, é que passado o estado de graça do amor e uma cabana, Manuel Mestre e Perfeita da Anunciação começaram, também eles, olhando à sua volta e interrogando-se acerca disto e daquilo, e por que não tinham eles direito a trabalho certo se eram tão jovens, fortes e voluntariosos, prestáveis e disponíveis, ou por que não lhes chegava a jorna para mais que meio pão, um casebre digno de um cão e, depois de contados e recontados os tostões nem um deles, nem um tostãozinho ficava para uma segurança do amanhã, um pecúlio para a menina, uma extravagância para uma saia, um capote ou umas botas, já que não fora o relógio da igreja anichado frente à sua porta, sua deles, nem as horas saberiam por falta de verba para uma corrente quanto mais para uma geringonça daquelas, geringonça com a qual Perfeita da Anunciação embirrava desde que uns dias atrás, pela matina, ouvira nitidamente as badaladas do dito cujo assinalando as oito menos um quarto no preciso momento em que, ao acercar-se da porta do moiral da Herdade dos Safados, ele moiral a convidara a entrar e lho garantira, lho, o trabalho, sempre que ela quisesse e o aceitasse, a ele moiral, isto é, trabalho sempre garantido mas desde que ela consentisse em que ele, Fortunato Encarnação, lhe desse uma badalada de vez em quando pois também ele era humano, um ser humano, um homem de carne e osso, e não de ferro, ele mesmo reconhecia ali ante ela as suas fraquezas, fraquezas dele, mormente ante ela Perfeita da Anunciação, sublinhou, uma mulher linda e perfeita como nunca nem alguém lhe anunciara outra. 

          Por momentos custou a Perfeita da Anunciação acreditar no que os seus ouvidos lhe garantiam estar ouvindo, apanhada de surpresa que fora. Sabe a ciência que em situações assim o nosso cérebro puxa à mente em milésimos de segundo um bilião de coisas, de lembranças, de memórias, de hipóteses que possam explicar o que se está ouvindo mas não acreditando, qual a reacção ou resposta adequada, e fá-lo tão rapidamente que o melhor computador não foi ainda capaz de processar tão grande quantidade de informação em menos tempo, pelo que Perfeita da Anunciação teve, embora aos nossos olhos, caso lé tivéssemos estado e assistido, tal não tivesse sido nem miraculosamente possível na fracção de segundo que um piscar de olhos ocupa, mas foi., foi e teve ela tempo para depois de refeita de tal choque, ou surpresa, ajuizar com algum humor, melhor dizer com alguma ironia quão melómano este Fortunato lhe saíra se comparado com o primo Xico Estevão, um adepto confesso das mocadas, entendida a palavra como acto de percussão, mocada, pancada, batida, de longe muito mais forte e violenta que a badalada, esta mais melódica que aquela, mais dispersa no ar, menos invasiva, intrusiva do pavilhão auditivo e respectivo canal, logo menos ofensiva, ofensiva no sentido de agressiva, ofensiva no sentido de um corte ou de um rasgão, uma concussão ou laceração, portanto impossível de comparar com mocada, que deriva de moca, sinónima de pancada e de batida, cousas que por certo não deixariam de provocar, originar, golpear, ferir, fazer mossa, ainda que Perfeita da Anunciação nunca tivesse sido vitima do seu rude primo Estevão que nós agora e mercê desta exaustiva explicação quase pintámos como um troglodita armado de clava e cabeludo, primo com quem aliás há uns anitos atrás namoriscara uns mesitos sem contudo trilhar caminhos que a impedissem de chegar casta ao casamento.

  Não que pretendesse passar por santa ou por ingénua, nem uma coisa nem outra, simplesmente sublinhar que sempre soubera aparar o jogo ao primo Xico e evitar que as por ele chamadas ou designadas mocadas fossem aparadas, amparadas ou amortecidas, de molde a não deixarem amolgadela, abalo, comoção, testemunho ou cicatriz, a única defesa possível num mundo de malvadez e preconceitos que uma jovem casadoira nunca deve descurar antes do casório, ma sim levar convenientemente a peito.

  E por falar em peito, ante o olhar lúbrico e deslumbrado de Fortunato Encarnação de imediato Perfeita da Anunciação buscou agarrando-as as pontas do xaile que sobre os ombros levava despreocupadamente e o repuxou de aconchego a si e de modo a que melhor a cobrisse, terminando este repentino cuidado e amparo com um cruzar de braços sobre o móbil de tanta observação e no momento em causa, tanta celeuma, tanta agitação, podendo nós concluir que ser generosa, se de peitos, pode ao invés do vulgar e licitamente esperado, perder uma mulher.

  Badaladas ou mocadas, o certo é que Perfeita da Anunciação não ficou para ouvir a música em que Fortunato intentava embalá-la e, ainda cinco segundos não tinham decorrido já ela se virava bruscamente. Ainda a geringonça da torre sineira não acabara de bater a oitava badalada e Perfeita da Anunciação ruborizada e atrapalhada deitara correndo em direcção a casa, casa essa, ou esta, onde vive, onde agora escuta sempre com um misto de indignação e revolta as badaladas que anteriormente tanto gosto lhe dava ouvir, mas que se lhe tornaram insulto insuportável desde que deixara o desafortunado do Fortunato de discurso por acabar e com o badalo nas mãos, sendo que estas últimas palavras não passam de força de expressão minha pois o bom do Fortunato, tal qual já acontecera com o senhor engenheiro Casimiro Martins Perdigão, descontada a compostura, que nunca haviam abandonado nem perdido ante Perfeita da Anunciação, o único aspecto em que se viram desarmados foi na cobrança, já que nem a um nem ao outro foi pago o preço da borrega que intentaram cobrar junto da jovem, bela e roliça Perfeita da Anunciação. *

E se nas suas divagações e interrogações Perfeita da Anunciação questionava o porquê das suas amigas, ou pelo menos algumas delas serem preferidas e terem as jornadas garantidas, enquanto outras eram preteridas e quase atiradas para a mendicidade, a dependência, a pedincha e até a prostituição, estava a lembrar-se de Luna Maria, e enquanto indagava para si mesma quantas, quais e quem se teria já deitado a ouvir as badaladas que lhe haviam de assegurar o trabalho no dia e dias seguintes, Manuel Mestre ponderava quanto do seu caracter não estaria a prejudicá-lo, já que não era dado a bajulações, ao beija-mão, à graxa, sendo que reflectia igualmente quanto o facto de falar muito e fazer demasiadas perguntas o estaria a lesar, tido como era por ser um individuo revoltado.

O seu amigo João M. Carrajola tinha-o mesmo uma vez acusado de subversivo, coisa sem pés nem cabeça, acusação sem fundamento e que de todo nem fazia parte da sua personalidade. Mas como dizem os sábios mais vale sê-lo que parecê-lo, Manuel Mestre nem estava a ser, nem fazia por o parecer, e fosse como fosse o resultado era o mesmo, uma maioria dos dias sem ser escolhido para completar a jornada, o regresso a casa cabisbaixo, a vergonha sentida ao encarar Perfeita da Anunciação que, calada e de olhos pequenos, mortiços, o olhava já sem nada lhe perguntar, antes adivinhando o sofrimento abafado por ele e impossível de ser escondido, interrogando-se nestas circunstâncias e cada vez que ele galgava o umbral da porta quando, quando seria que a fome a obrigaria a deitar-se escutando as malditas badaladas, e já nem diferença lhe faria fosse com o senhor engenheiro Casimiro Martins Perdigão ou com o bom malvado e afortunado Fortunato Encarnação.

Num tal ambiente, que o casal não tivesse filhos acabava sendo uma felicidade, a vinda de um rebento, menino ou menina, só agravaria todos os problemas vividos e não vividos ainda mas de que o casalinho começara a aperceber-se, como ampliaria a dependência de que ficariam prisioneiros, ou reféns, e bem podemos dizê-lo pois já o pensámos, lá teria, ou não teria Perfeita da Anunciação que pagar o preço da borrega se quisesse ter com que alimentar mais uma boca quando duas já eram difíceis de contentar.

De tamanhas atribulações ia escapando João Carrajola que, depois de pintar a manta bem pintada e quanto quis e lhe aturaram, ou permitiram, logrou padrinhos que o tivessem enfiado à pressão nos quadros da GNR uns escassos dias antes de completar trinta e seis anos e antes de o limite de idade para a sua admissão ser atingido. Penso que já aqui o disséra, o que não vos disse foi que enquanto cabo do posto se distinguiu pelas sevicias proporcionadas a quem tivesse o azar de lá cair, lugar onde o nosso cabo, ciente da sua hombridade e sentido de justiça tentava moldar todos à sua imagem e semelhança, se preciso fosse à força, o que bastas vezes lhe trouxe contrariedades quase chegadas a vias de facto e, quando os confrontos com a população, que não escondia a sua antipatia nem o seu desagrado por ele nem quão pouco era estimado atingiram proporções desaconselháveis foi finalmente corrido dali.

Mas Deus escreve torto por linhas direitas, e algures alguém houve que tomou por bons ofícios o interesse e a dedicação do nosso amigo Carrajola pela manutenção da ordem e da disciplina, da autoridade, a ponto de, na hora H o terem transferido para uma cidade das Beiras onde o esperava o curso de sargentos, o que lhe valeu ter-se furtado ao desagrado das gentes que se preparavam para lhe fazer a folha, que seria o mesmo que fazer-lhe sentir o seu pesado sentimento de repulsa e nojo. Foi muito depois disto, destes acontecimentos, deste tempo de trevas que Júlia veria finalmente a luz, sim, esteve para se chamar Maria da Luz, mas não calhou, o destino não quis, mas essa é outra história que adiante vos contarei. 


 Ver Galopim de Carvalho, in “O Preço da Borrega” Lisboa, Edições Âncora.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

412 - O TANGLOMANGLO QUE ME DEU * .............


Descobri hoje uma melhoria em mim mesmo. Tirara a roupa da máquina para ir levá-la lá abaixo à arrecadação, na garagem, e metê-la no secador, o que fiz. Mas no regresso e ao subir as escadas, desde o acidente que subia escadas uma a uma como o caranguejo e não andando, ou seja não pé esquerdo pé direito, esquerdo, direito, e por aí adiante, era só direito, direito, direito. Hoje pela primeira vez desde há 6 anos e involuntariamente a perna esquerda, digo o pé direito, avançou ! Alto, emenda, perdão, digo a perna esquerda e o pé esquerdo, avançaram e subi as escadas a andar ! Perceberam ? A coisa ainda ta torta mas já ta a funcionar ! Também as desço já do mesmo modo. 

Mas tenho que parar por aqui esta estória que o guarda-nocturno ta á minha espera p’ra irmos tomar a bica. Matias Sebastião o guarda-nocturno e eu somos velhos conhecidos e velhos amigos, daí que feita a sua obrigação e sempre que podemos, antes dele se ir à deita troque dois dedos de conversa e beba uma bica cá com o rapaz, é que ele tem um fraquinho por mim, além de me atribuir as culpas pelo seu rebate de consciência, mas essa é outra história e já vamos a ela.

Foi há meia dúzia de anos. Eu ouvia-os, não sei se chegaram lestos se demoraram uma eternidade, ouvia-os a eles e ao reboliço à minha volta, ver não via por o muito sangue espalhado e coagulado me ter empapado os cabelos e a vista, tendo contribuído para que me tivessem considerado despachado, quer dizer, para o Matias e para o colega eu já estaria como todos havemos de ir um dia.

- Tá lá ? Comando ? Escuto. – É o Matias, já chegámos, não, não é urgente, não precisam mandar o helicóptero, é só um e já tá como há-de ir. Escuto – Mandem um reboque buscar a viatura acidentada, cheira a gasolina que tresanda, um descuido e pega fogo à serra toda. Escuto. – OK, daqui comando, certo, vai seguir brigada de desencarceramento e o reboque. Escuto.

Eu já estaria portanto como há-de ir um qualquer de nós, com os pés para a frente, pelo que não vi mas senti terem atirado comigo despreocupadamente para uma maca que, por sua vez foi displicentemente atirada para dentro suponho que de uma ambulância.

- E agora Matias ? Évora, Beja, ou Évora ? 

- É pá Beja está mais perto mas o tipo é de Évora, depois teriam que o transladar de Beja para Évora, deslocações, esperas, papéis, chatices, mais despesas, neste caso temos que nos lembrar da família, Évora com ele que como está mais vinte ou trinta minutos não irão fazer-lhe diferença nenhuma e a família ficar-nos-á agradecida.

– Boa, é mesmo assim Matias, é a gente pensar e agir SIMPLEX.

Atado à maca lá segui, sentindo os balanços e os encontrões que o terreno provocava na viatura até ser alcançada estrada firme. Agora que arrefecera as dores começavam a assaltar-me, a cabeça parecia querer estourar e sentia o cérebro chocalhar dentro da caixa craniana, sacolejado de um lado para o outro dentro dela. Nada que os preocupasse, para eles eu já estava como havia de ir um dia, com os pés para a frente, pelo que percebi o Osório desabafando para o Matias:

- Não sei como gostas dessa merda e não te cansas de rockalhada pá, um dia inteiro, muda isso para a Rádio Nostalgia pá, ao menos essa tem música decente meu Rockabilly do caraças. 

- Não dá, enquanto não passarmos o Mendro não dá, empurra a cassete. Eu seguia "morto" e mal instalado mas tinha direito a música. 

Eles entretidos fazendo saltar as frequências do rádio e eu sentindo pela inclinação a subida do Mendro, parte do percurso da Vidigueira a Portel, sendo o Mendro** o local mais alto da serra com esse nome e onde em tempos havia, ignoro se ainda existe, uma estação e antena retransmissora da RDP e RTP. Nunca essa subida me parecera tão íngreme, talvez por ter a cabeça a um nível mais baixo que os pés e a subida estivesse a durar uma eternidade por onde a ambulância parecia arrastar-se a passo de caracol.

A repentina sequência de curvas e contra-curvas deu-me a indicação de que abandonáramos a estrada principal correndo paralela a Portel e conduzindo a Évora e nos embrenháramos na vila. Iriam meter gasóleo, andariam estes tipos na estrada com o depósito na reserva ? Mas não, não se tratava de nenhuma imprevidência dessas como erradamente eu julgara. Ouvi-os parar, puxar o travão de mão, abrir as portas e um deles para o outro:

- Já agora aproveito e compro tabaco.

Aproveitem e mijem também cabrões de merda !  Não me façam é perder mais tempo, pensei eu a quem o maxilar, que devia estar partido, doía p’ra caneco e o inchaço estava a sufocar e a dificultar a respiração, provocando-me aflição e por certo causa de dores lancinantes das quais nem me conseguia queixar. Era sobretudo na anca que se concentravam as dores cuja imobilidade me provocava um formigueiro na perna e estando a tornar-se insuportável. Ocorreu-me que poderia ter a anca deslocada ou a bacia partida, no entretanto estes merdosos em vez de correrem de sirenes abertas paravam para tomar uma bica e comprar tabaco. Afinal de contas eu já estava despachado, que diferença me poderiam fazer mais vinte ou trinta minutos ?

Lembrei-me da minha amiga Zéza, que de vez em quando ficava hirta do pescoço como quem ao apertar-lhe os gasganetes lhe tivesse provocado um torcicolo, chegando a andar assim semanas a fio e com um formigueiro apanhando-lhe a cabeça e lhe provocava uma dor imensa. Queixava-se ela dessa forte dor e digo eu que só não lhe apanharia a língua porque calar-se era coisa que nunca a vira fazer, sã ou doente cantava como uma grafonola e, tal como as gralhas, nunca se calava. Dava gosto ouvi-la.


Finalmente chegados a Évora fui largado nas urgências. A lei obriga ou para efeitos burocráticos é aconselhável largar os corpos nas urgências, por serem mais rápidas uma série de formalidades, certidões de óbito e outras que, quanto a mim felizmente não foram necessárias nem cumpridas pois acabaram por reparar estar eu mais vivo que morto. O resto da história é banal, lavagem, medicação, internamento, serviço de observação, reparação, raios X, raios Gama, raios Beta. Está lá, escuto, afinal não era nada de cuidado, num ano reaprendi a falar, reaprendi a comer, reaprendi a andar, reaprendi a equilibrar-me numa bicicleta, reaprendi a dominar de novo a mota, recuperei o gosto pela leitura, recuperei o gosto pela escrita, estou pronto para outra, obrigado Luisinha, obrigado Dr.ª Cármen Corzo, obrigado enfermeiro Agostinho Monteiro, estou aqui para o que der e vier e até para um dia estar como hei-de ir, como havemos de ir todos, com os pés para a frente … 





O TANGO-LO-MANGO * 

Eram nove irmãs numa casa,
Uma foi fazer biscoito;
Deu o tango-lo-mango nela,
Não ficaram senão oito.

Destas oito que ficaram
Uma foi amolar canivete;
Deu o tango-lo-mango nela,
Não ficaram senão sete.

Destas sete que ficaram
Uma foi falar francês;
Deu o tango-lo-mango nela,
Não ficaram senão seis.

Destas seis que ficaram
Uma foi pelar um pinto;
Deu o tango-lo-mango nela,
Não ficaram senão cinco.

Destas cinco que ficaram
Uma foi para o teatro;
Deu o tango-lo-mango nela,
Não ficaram senão quatro.

Destas quatro que ficaram
Uma casou c'um português;
Deu o tango-lo-mango nela,
Não ficaram senão três.

Destas trêsque ficaram
Uma foi passear nas ruas;
Deu o tango-lo-mango nela,
Não ficaram senão duas.

Destas duas que ficaram
Uma não fez cousa alguma;
Deu o tango-lo-mango nela,
Não ficaram senão uma.

Essa uma que ficou
Meteu-se a comer feijão;
Deu o tango-lo-mango nela,
Acabou-se a geração.

* (Versão POPULAR recolhida por Sílvio Romero)  

quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

411 - WAFERS ... E O PORTUGUÊS SUAVE ............


WAFERS 

O meu amigo Seromenho falara-me num tal Alvin Toffler,
não, não são bolachas, era qualquer coisa da sociedade aberta,
coisa duma terceira vaga, duma vaga avassaladora,
a modos que duma sociedade mais desperta, democrática,
um choque do futuro, uma surpresa,
se não era isso era parecido, porque foi seguido,
por uns tais Peter Drucker and Ludwig Mises,
seguido ou antecedido agora não vem ao caso,

houve o H G Wells, da guerra dos mundos,
houve ainda um George Orwell que,
como em qualquer drama que se preze meteu uma dama ao barulho,
uma tal "Nineteen Eighty-Four" a quem,
como fizeram com o Mao Tsé-Tung, mais conhecido por 971,
deram um número, acho que o 1984 porque foi com base nele que,

um precipitado amante das artes do teatro e de duas camélias,
nem sei se uma delas seria Ofélia quanto mais a outra,
um camelo ia eu dizendo, ou um caramelo,
um caramelo mais precipitado que desorientado confundiu as datas e,
meteu-se a fazer história antes do tempo,

em 1974 imagina o desiderato, claro que falhou,
claro que nunca mais ninguém conciliou o que ele tanto quis conciliar,
nem os tais nove da prova provada,
que a coisa não foi lá nem com a dinâmica de grupos,
mais um desastrado ignaro digo eu, um estratega disseram outros,
a modos de arremedo e gozo do que eu afirmara.

Só sei que as coisas nunca mais foram o que eram,
aquilo foi democracia a mais, aquilo quero dizer isto,
overdose puxada,

ainda estamos a pagá-la e vamos pagar durante muito mais tempo,
isso mesmo tempo, pois foi a propósito disso que meti o bedelho,
lembro que falo do tempo, pois depois veio um Xico Esperto,
mais um,

a história abarrota deles,

este era um tal Fukuyama ou lá como é que ele se chama,
veio apregoar o fim da história, mais um precipitado,
a anunciar o fim das guerras no mundo,
bastou algures ter caído um muro para lá vir ele,
talvez por já termos tido Hiroshima, Nagasaki e Chernobyl,
ao certo sei apenas que com ele foi a vez de Fukushima,
mas já me estou a alongar e ainda nem vou no princípio,
isto é assunto a tratar com pinças à mesa do café,
é história mundial, eu posso lá perdê-la,
quero dizer perder a história natural.

Vou levar a bike, a pen e um maço de guardanapos de papel,
a coisa promete, e eu adoro escrever nos guardanapos,
e tu tem um bom dia que eu estou inspirado,
e não quero ficar aqui encalhado,
um bom dia para ti e a mim que não me falte a verve,
deixa-me ir espreitar a água que já ferve,
hoje é um Pensal bem feito, com torradas,
doce de figos, queijo do “Galhofas”
e pão de trigo do “Aqui Há Pão”

bom proveito.

Eu dissera que não tinha acabado pá !!
eu fui só tomar o pequeno almoço pá !!

Claro que entretanto aproveitei e fui ao café, almocei, dormi a sesta,
e agora estou à pressa para ir lanchar, mas antes deixa-me dizer-te,
que ficara de escrever sobre o Rousseau e o homem novo pá !!

Faltou ali e falta aqui o homem novo pá, ficaram só os selvagens,
ou ainda não topaste a marosca em que nos andam a marinar ??

Mas voltando à vaca fria, a coisa prometia dizia eu,
e prometeu, pois mal lancei a bisca,
digo o tema para debate na mesa,
logo dois se refugiaram atrás da bica,
outros tantos fingiram-se de mortos,
os três mais afastados de moucos,
e os mais próximos chegaram-se à távola,
que é como quem diz, à conversa,
tendo um deles,

um tal Crispim, que é como a Zéza, uma amiga de Bomfim,
uma freguesia de Setúbal pá, até tem jardim,
logo tentou virar o bico ao prego esse Crispim,
fugir ao tema, meter o pé na porta p’ra que não fechasse,
e mudar o percurso dos gases na retorta;

- Pois ! Prometeu !

disse ele imaculado, mostrando a todos o dente cariado,
Prometeu assim Prometeu assado,
e eu cheio de paciência para com ele,
lá tive que escalar o Olimpo a fim de trazê-lo à terra,

- Anda cá Crispim não fujas de mim, não é Prometeu é prometeu,
pinga lá a tua gota no alambique e cala-te,
que o tema não é o fogo eterno e sim o fogo dos infernos,
ou invernos,
o invernoso buraco em que a seita nos meteu,
ou és ateu ?

Assim mesmo, um buraco, um abismo,
e o outro é que era um malandro,
o outro é que nos privava da cultura,
o outro é que se aproveitava da nossa ignorância,
e agora os democratas gabam-nos a inteligência, o espirito,
o intelecto, a instrução, o saber, o apuro,
e no entretanto chulam-nos sem pudor, claro,
claro ou escuro, tiram proveito da nossa estupidez,
que é como quem diz, exploram-nos sem igual na história,
c’o pessoal agora é todo QI a mais de 120,
e Galaxy’s Big Super Plus,
o que explica muita coisa,
para não dizer que explica tudo.

A nossa pobreza, por exemplo, da do espirito à de capital,
o capital esse grande mal,
essa hidra c’Abril abatera e que tem vindo a erguer-se,
a pobreza, esse outro animal que alimenta muita gente,
disse uma vez uma voz feroz,
num auditório onde nenhum de nós usou contrariá-la,
ou admiti-la, admiti-la a ela, à pobreza. *

Foi então que o Olímpio saiu à liça,
com o direito ao trabalho e à preguiça,
os direitos adquiridos, os contratos honrados,
o direito à existência, à pobreza, à caridadezinha,
aos rendimentos mínimos e ao conforto máximo,
que lhe propicia a sociedade que ele mesmo vigia,
que estuda, e,
por telemetria, capta o que lhe parece ser do seu interesse,
desde que tal não colida com as benesses que acha que merece.

A verdade é que esta democracia está a matar-nos,
fica-nos curta nas mangas e custa os olhos da cara,
tanto sábio e tanto democrata hão-de rebentar com isto,
são centenas de cabeças, milhares de opiniões,
para de seguida nos quedarmos aos trambolhões,
e andarmos, década após década, inda jogando a feijões,

felizmente aqui há democracia e direitos adquiridos,
coisa sem igual na história deste nosso Portugal,
onde se finge que mexe para afinal ficar tudo na mesma,
como a lesma,
Portugal dos contentinhos, dos pequeninos,
dos inteligentes, dos espertinhos.

E aí temos o homem novo, o português do subsídio,
o subsídio-dependente, o emigrante, o precário,
o descontente, o recalcitrante, o protestante,
o católico acomodado, o democrata atrofiado,
o socialista oportunista, o capitalista enriquecido,
o Zé Povinho de novo esquecido,
ai Portugal que se não existisses terias que ser inventado.

E eu ? Onde ia eu ?

Ah ! no homem novo ! o português suave,
o homem novo que me fugiu, que se cagou nisto,
e não me digas nada ó Evaristo,
que há escravos na Vidigueira,
ladrões de frangos na pildra da Carregueira,
milionários com residência fixa na Reboleira,
ex. primeiro ministros c’a folha feita,
e um povo burro e tolo que não joga com o baralho todo.

E eu ? 

eu quero que vão todos para o caralho,
tenho coisas p’ra fazer, coisas com que me entreter,
abrir uma garrafa de reserva por exemplo,
pôr a mesa e jantar,
lá vai a Marina dizer de novo que só penso em comer,

o que vai ser ?

sopa de cebola e alho, que rima e é boa para a gripe **
pois nada mais há a fazer, é rezar e esperar;

“ povo corrompido e pouco nobre, agora com o juízo curioso tanto no rico, assim como ao pobre, incrível o que pode o vil interesse e sede imiga, do dinheiro, que a tudo e todos obriga e que, a troco do metal luzente e louro, rende munidas fortalezas; faz trédoros e falsos os amigos; nobres faz fazer vilezas, corrompe virginais purezas, sem temer de honra ou fama alguns perigos; e deprava às vezes as ciências, abandonando os juízos e cegando as consciências “ (Adaptação parcial do final do canto VIII dos Lusíadas). 


Poema by Humberto Baião, Évora 18-01-2017, 19:40











segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

410 - MELANCIAS OU MORANGOS ...



MELANCIA

Ofereceste-me melancias,
quando sabias, sim sabias,
serem morangos que eu preferia,
daí o meu ar aborrecido, que combatias.

Combatias.

Ora recuando, ora sorrindo,
ora um quente, ora um frio,
ora fugindo, ora anuindo,
eu dançando em terreno escorregadio…

E tu,

Ora dada, ora oferecida,
ora ignorada, ora bem vinda,
todavia, contudo, porém, bem aparecida,
e sempre, sempre linda.

Até àquele dia calmo e soalheiro.

Em que,
do frigorifico o chantilly,
do lugar ou do merceeiro os morangos,
os morangos foram a oportunity,
crisis and oportunity.

Qual crise qual carapuça,
corremos abraçados p'rá pensão Díli,
janelas escancaradas, zapping na Tv, retoiça.

Até que,
exaustos p’la brincadeira,
lançámos mão do moranguito,
tiniram telefones, demos-lhes um manguito,
sou franco, somente recordo ser o vinho tinto,
e a casta, Trincadeira.

E a melancia, onde entra ela ?
esquece-a, inda falta muito para o meio dia,
não pares, concentra-te minha coisa bela,


lembrares-te disso agora, quem diria… 


Humberto Baião - Évora, segunda-feira, 16-01-2017, 15:20h

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

409 - FALEIRO, CÉU, O PROBLEMA É O HOJE ......

            

No mesmo dia em que o sociólogo e pensador Zygmunt Bauman num artigo brilhante (1) designa por trampa as redes sociais, o meu amigo Faleiro posta uma frase bombástica que por algum motivo o terá tocado “A mente não suporta ser nada” (2) e, ainda que num repente me tenham acudido à memória as palavras de José Mário Branco proferidas no longínquo ano de 79 (3) palavras que por si só seriam uma completíssima resposta ao seu desabafo inconsequente, perderei todavia mais tempo e paciência com ele que a Céu, que no seu entender, no entender dela, muito lhe deve.

Percebo o Faleiro, tem tido azar na vida é o que é, e a Céu nem foi o primeiro desses azares, depois de juras juradas deixou-o de mãos atadas e abalou para as Arábias com um enfermeiro artolas todo ele ai não me toques, que assinara um contrato fartote mais parecido ao dum treinador. Ela continua a jurar-lhe amor e envia-lhe postais ilustrados de arranha-céus desmesurados onde diz ser ascensionista e poliglota. 

        - Sempre teve queda para línguas, diz-nos o Faleiro, saudoso e cheio de remorsos por agora o lambidinho ser o enfermeiro… 

           Na realidade a Céu era bióloga, tinha tirado um mestrado que lhe abrira as portas de um hospital veterinário onde havia quinze anos dava banho e penteava cãezinhos, e estava quase nos quarentas... Azarenta ela e azarento este Faleiro, festa de arromba em 2000 por ter acabado o curso em primeiro, engenheiro de correntes fortes, porém com tanta sorte na vida que nunca fez mais trabalhos que ligar dois zingarelhos e substituir-lhe os fusíveis. De empreiteiro em empreiteiro todos lhe ficaram devendo, nem tendo direito sequer ao desemprego de lei, pois os patrões nem salários pagavam quanto mais as habituais contribuições sociais. Um deles inda ia ajudando e no Algarve emprestando um chalé que por lá tinha, mas também esse p’ra comer o dito teve que vender e o Faleiro lá ficou uma vez mais a arder…

 - Não faz mal ! Dizia ele, - De qualquer modo afinal eu já nem dinheiro tinha para apanhar um comboio que até lá me levasse… E hoje podemos dizê-lo, é mais um frustrado engenheiro, e nunca soube o que era dinheiro. Por amor por aqui ficou, e quando ela abalou estava com quarenta anos, sem folgo para aventuras, um revoltado, um rebelde, um insubmisso, insurrecto, delinquente reincidente mas sobretudo um demente, e um problema valente…

O problema contudo reside todo no facto de, para o meu jovem amigo Faleiro “as coisas” se passarem totalmente lá fora, lá fora do seu âmbito pessoal, lá fora no virtual, eu disse “no”, no virtual, lugar onde ele concebe agora a realidade e a luta, uma vez que, a julgar pelas suas palavras, posições e atitudes é um tipo resignado, ele mesmo o diz e confessa, admitindo inconscientemente que “de geração em geração estamos a perder direitos, qualidade de vida e aos poucos se foi chegando onde ele chegou” tendo desistido de ser quem é, de ser algo ou alguém, de ser alguma coisa na vida. A culpa será portanto do tempo e da história, do passado, que é como quem diz, dos outros.

Não faço ideia de como ele assumiu ou alguém lhe implantou tais coisas na cabecinha mas está solenemente enganado, errado. A génese do problema que o afecta, e que afectará centenas de milhar de jovens no país, é que ela a génese das suas queixas, não radica no passado nem nos outros, radica no presente e nestes, nestes que agora governam, põem e dispõem as peças no xadrez inclusive ele, Faleiro, ele e todos os jovens que amocham e calam, preferindo levar a luta para as redes sociais onde matam e esfolam de modo fútil e inconsequente.

O meu amigo Faleiro está portanto muito pouco preocupado ou interessado no porvir, estará mais resignado, até por desconhecer, por nem ter vivido o passado nem naturalmente o conhecer muito bem, desconfio que nem muito mal, portanto, para usar uma palavra que tão cara lhe é, dir-lhe-ei que o tempo não volta atrás, mas que é uma pena já que o que nos espera no futuro, futuro que começou ontem, nem é nada de bom nem nele se perspectivam moldes de cativar a juventude, juventude que para melhor ser erodida e iludida se mantém agora até aos quarenta anos e não tarda muito que oficialmente se seja jovem até aos cinquenta…

Obviamente um regresso ao passado é tão absurdo quanto um salto para o futuro e os problemas com que a juventude hoje se debate não existiam há quarenta anos, senão vejamos:

A)   Há 40 anos ninguém precisava tirar uma licenciatura para vender sandes no McDonalds ou sentar-se a uma caixa registadora num híper. Há 40 anos os jovens tinham bué de saídas profissionais onde se realizarem e onde darem forma aos seus sonhos, desde logo uma guerra em três frentes, corrijo digo quatro frentes para ser mais exacto, e onde através do ingresso num dos ramos das forças armadas podiam alimentar vaidades pessoais e egos, nos Comandos, Pára-Quedistas ou Fuzileiros qual destes corpos o mais aguerrido, o mais famoso, reconhecido ou prestigiado. Existia a justa perspectiva de atingir-se a glória através de um qualquer acto de heroísmo, de reconhecimento pelos pares, de exemplo de bravura, nem que fosse a título póstumo, uma medalha de latão honrosamente atribuída à família num dia de cerimonial militar capaz de comover a pátria, os amigos e os presentes.

B)   Nem era precisa muita sorte para sobreviver às guerras do ultramar, guerras que tanta celeuma costumam levantar. Foram das guerras menos mortíferas que a história mundial regista e de tal modo foi empolada a questão à sua volta que houve grupos de historiadores relutantes em admitir a classificação de guerra apesar das tentativas de Salazar. Inclusive na ONU o nosso problema no ultramar nunca logrou alcançar essa atribuição, essa categoria, embora fosse reconhecido que o país sofria agressões cuja classe ou natureza apontavam todavia para meros incidentes, inda que se pautassem por uma inegável e pontual mas continuada violência. Israel que mantinha um qui pro quo idêntico com a Palestina nunca viu ser-lhe reconhecido direito a usar a designação “guerra”, até por não haver no caso de Israel, tal como no nosso não havia, declarações de guerra trocadas, nem dois países directamente envolvidos no nosso caso pois no caso de Israel a Palestina nem era reconhecida como nação. Era simplesmente uma região e a ONU nunca fez mais que atirar para cima de Israel com resoluções que jamais seriam cumpridas. Quer num caso quer no outro os contingentes de capacetes azuis da ONU nunca foram mobilizados por oficialmente não existir uma guerra declarada. De concreto sabe-se que na nossa “guerra” do ultramar faleceram em treze anos perto de oito mil militares, metade deles em acidentes de viação, acidentes com armas ou de outras quaisquer índoles que não directamente devido a esse tão reclamado estado de guerra.

C)   A título meramente informativo e comparativo adianto que a guerra de independência da Argélia conduziu à morte de 250 mil combatentes de ambos os lados em apenas sete anos de confrontos, e que a guerra civil de Angola (4), quase trinta anos, incluindo a decisiva, fratricida e morosa batalha de Cuíto Cuanavale, a batalha mais prolongada no continente africano desde a IIGG, fez tombar cerca de 500 mil africanos. A duração e o morticínio de outras lutas ou outras guerras poderá ser avaliado com um simples clique, vão ao Google ou à Wikipédia. Quanto ao resto cada lado de um conflito terá sempre os seus heróis e os seus mártires, que mui evidentemente para o lado contrário nunca passarão de párias...
  
Mas enfim, esqueçamos a guerra, quem quisesse ficar por cá poderia igualmente armar-se em herói e abraçar uma carreira de contestatário ou subversivo, granjeando dessa forma, mais tortuosa contudo admitamos, o mérito que perseguisse. Bastaria ter a felicidade de ser arrebanhado e bater com os costados no Aljube, em Caxias ou Peniche, e desde que assim fosse o sucesso entre os seus pares estaria garantido. Portanto, de um modo ou de outro, a favor ou contra, o futuro estaria sempre assegurado, dois casos paradigmáticos e bem conhecidos vos vou apontar, o Major Valentim Loureiro (o batateiro)  e Manuel Alegre (o poeta), ambos exemplos de abnegação e luta pela democracia, ou contra ela, e que resultaram em soluções diferenciadas mas igualmente proveitosas e nada despiciendas.  Aquilo não era uma guerra, era um modo de vida de onde todos tiravam proveito e quando não puderam tirar, zangaram-se e deram uma golpada, fizeram uma revolução, a revolução do 25 de Abril, cujo custo vais pagar com três palmos de língua fora porque os vampiros que lá estão agora são trinta vezes piores que os senhores que lá estavam anteriormente.
  
Entre ser contra ou a favor dessa guerra eu não teria duvidas, o que não quereria era ser ser moço de recados, criado às ordens, porteiro ou segurança, venha o diabo e escolha qualquer destas situações pois nenhuma delas oferece o mínimo prestigio ou o mínimo futuro, E é tão mauzinho o futuro que temos pela frente que nem podemos sequer mandar um patrão para o caralho e dar o salto para outro no dia seguinte, ou no mesmo dia, today simplesmente não há empresas nem patrões. Esta nossa democraciazinha com esta paz…zinha de merda e sem rupturas que se mantém a balões de oxigénio não interessa a ninguém, a não ser a uma dúzia de privilegiados que dela têm beneficiado como nunca. Com uma divida nacional impagável, nem nos próximos duzentos anos vamos ter uma folgazinha para aliviar o cinto ou os costados.
  
Será caso para dizer antes a morte que tal sorte, por isso amigo Faleiro, mata-te e acaba com o sofrimento porque de resto, por mais sonhos ou aspirações, desejos e ambições que acalentes, todos os requerimentos que metas nos próximos cem anos simplesmente não terão provimento. Nem cabimento. Posto isto toma e embrulha ó Faleiro porque a coisa não vai acabar bem, é impossível que acabe bem. Nem a Céu vem, nem do céu tu esperes o que quer que seja, conforma-te ou revolta-te, luta meu grande incréu…






terça-feira, 10 de janeiro de 2017

408 - A MÁSCARA DE MPINGO ..............................



Depois do espanto e de olhá-la profundamente quedou-se olhando-a, remirando-a demoradamente até que um estremecimento a denunciou, assustara-se e levara involuntariamente as mãos ao peito persignando-se, como se no ritual duma crença em que eu sabia não acreditar ou cresse pudesse protegê-la.

Encontrei-a um dia destes quando visitava a exposição “Vantagens e Desvantagens da História para a Vida” no Fórum da Fundação Eugénio de Almeida, reconheci-a não só pela cicatriz e pela “pinta” mas sobretudo quando parou petrificada ante a exposição duma máscara negra africana em madeira de mpingo, jacarandá africano ou pau-preto. Não a via há mais de trinta anos, vira-a em Durban por volta de 75 ou 76 pois os pais chegaram a morar ao lado de uma vivenda onde vivi uns meses. Ela era então uma criança de uns doze ou treze anos  a quem eu fazia umas festas na cabeça sem lhe ligar grande importância.

- É tudo uma questão de fé, disse-me a páginas tantas. – Ainda recordo o meu pai distribuindo ordens, lugares e munições pelos homens deitados no interior de janelas e portas, o paizinho ajeitando o chapéu para que a aba o protegesse do raiar do sol, os homens praguejando, a neblina matinal confundindo-se com o fumo que os casões e os celeiros ainda largavam e por cima do cheiro a fumo o odor nauseabundo dos animais e dos pretos mortos e inchados, abandonados à sua sorte ia para alguns dias pois ninguém arriscava abandonar a segurança dos fortes alicerces da casa mãe.

Mpingo dissera o pai ao arrancá-la da cara do matulão estendido ao comprido na soleira da porta, lábios secos encolhendo em volta da boca cujos dentes o inchaço parecia querer expelir das gengivas, a barriga aberta por um zagalote, as tripas espalhadas empestando a atmosfera de um cheiro fétido.

Pau-preto, como os pretos que ela assustada guardara e apertara contra o peito como fazia com a boneca Carmina, também ela preta, ambas desandando para a casa grande onde as mulheres rezavam e choravam pedindo a intercedência de Deus a fim de levar os pretos para que se salvassem os brancos.

Olhei-a consternado.

- Além disto pouco mais recordo daqueles dias duma infância vivida em sobressalto. Nunca mais vi o paizinho vermelho de raiva como naqueles dias. Ainda o recordo bramindo:

- Bala de branco não mata preto, ai não mata, devem ter aprendido a lição os cabrões, não enterrem nenhum, deixem-nos ficar a apodrecer ou a servir de pasto à bicharada.

E não os enterraram, as cruzes ao fundo do jardim tinham todas nomes brancos, Eulália, Laura, Elsa, Ludovina, Natércia, Florindo, Metrogos, Fonseca, Marco, Rocha, Gervásio, Pacheco, Santos, Palma, Rolo, Desidério, Pimenta, Pessanha, e uma cruz pequenina da cadela Violeta que por vingança tinham degolado com uma catanada. Uma cruz maior, na qual enrolaram o terço com o qual andava sempre rezando, movendo os lábios numa ladainha que não serviu de remédio nem de consolo a ninguém, foi feita a preceito para a irmã Esperança. Mas decididamente o deus dela não estava olhando os brancos naquela hora fatídica.

Durante a viagem a Carmina perdeu os cabelos primeiro, uma perna depois e ao fim de tantos dias caminhando debaixo de sol acabou por perder a cor. Quando o primeiro camião da fila tocou o claxon anunciando Durban estar à vista e a viagem a chegar ao fim, deixei-a cair devagarinho pela janela do carro mal me senti ensanguentada e alarmando tudo e todos com um ferimento que parecia ter escapado ao mais atento e pôs os nervos da mãezinha em franja até ter acabado por sossegar e me acalmar também a mim explicando-me a natureza coisas.

- É a menarca, disse para o meu pai.

E foi o último episódio da minha vida em que sangue me poria em polvorosa. Custei a adaptar-me à escola em Durban, o monhé que dava as aulas não tinha a paciência da irmã Esperança e pela primeira vez na vida desejei enterrar alguém e esquecê-lo. Nesse ano ainda os meus pais conseguiram falar por telefone com a família na Covilhã e rumámos à metrópole, metade da minha vida foi passada em viagens, se não foi é o que sempre me parece, ou fugindo de uma coisa ou correndo para outra.

De volta a Lisboa, de que não me recordava minimamente, senti pela primeira vez ser indesejada. Para onde quer que nos virássemos éramos vistos como tendo peste, ou lepra, os pretos não gostavam de nós e fugimos deles, mas como fugir dos brancos, e para onde ? Em três ou quatro anos arrolei meia dúzia de namorados, não suportei nenhum e admito que fiz tudo para correr com todos eles. Todos com a boca cheia de solidariedade mas incoerentes entre o dizer e o fazer, nem lá a ignorância das gentes preenchia um décimo do que por aqui vi, ainda se vê. Cidades atrasadas, gentes atrasadas, ruas e ruelas tortas e tortuosas, tenho saudades das mentes libertas e dos espaços livres das cidades das colónias e de Durban. Aqui sou culpada, ainda não percebi bem de quê ma sou culpada, o remédio é usar uma máscara, é isso, fingir, ouvir, concordar, e depois fazer como quiser, esta gente é incapaz de tolerar seja o que for. Poderei um dia tirar a máscara mas já não sou a criança de há vinte ou trinta anos, Mudei muito, mudaram-me, a máscara garantiu-me a sobrevivência, lá fora a estupidez continua a mesma, contínua igual.

A conversa prosseguiria dias depois na sua casa em Cano, Casa-Branca, Sousel, terra onde o marido, veterinário, refez a vida e lhe repôs a calma numa alma torturada havia demasiado tempo. Puxou de um baú de onde retirou a máscara que o pai tinha arrancado do rosto de alguém diante dela naquele dia fatídico. Virou-a para mim e recomeçou o diálogo que interrompêramos dias antes:

- O óleo espalhado no corpo não evitou a bala do branco, nem o óleo nem as máscaras, mas a mim salvou-me a máscara que afivelei, salvou-me da estupidez e das incongruências destas gentes. Simbólicas as máscaras por vezes, quer sejam ou não irei restaurar a que tenho em casa e herdei do paizinho, passá-la a óleo e expô-la na sala, jamais deitarei fora esta máscara, não, não vou voltar a guardá-la, foste um herói paizinho, recordar-te-ei sempre como um herói, contra os pretos lá, contra os brancos cá, contra os preconceitos de toda a gente e em toda a parte. Quanto à minha máscara jamais a tirarei. Culpada, incapaz, todos somos considerados incapazes, só porque alguém se recusou a negociar a paz, só porque alguém não acautelou, não recorreu à diplomacia, não nos protegeu naqueles dias, nos dias em que todos sabiam o que iria acontecer e em que aconteceu. Só não soube quem não quis, só não sabia quem não queria, por que não nos defendeu quem nos convidara a ir ? África sempre foi dos africanos, como a Europa dos europeus e as Américas dos americanos. Angola era nossa, Angola não era nossa, e o que é nosso agora ? Uma dívida que vai durar duzentos anos a ser paga ? Nada, não temos nada, está tudo nas mãos das Tríades Chinesas, de Fundos Anónimos, de Mercados Invisíveis, os pretos quando quiseram lutar pela libertação ainda tinha a nossa cara para apontar mas se nós quisermos lutar agora pela independência a quem vamos apontar ? A quem ? Com o quê ? Quando ?  Como ? Que gente de trampa esta, que miséria de povo, gente de merda, este país dá-me nojo, só gente estúpida, corrupção e corruptos, e ninguém lhes mete as tripas ao relento… Expulsa de um lado, atirada para o outro, é assim que me sinto desde 74, mas que culpa tenho eu ? A quem fiz mal ? Quem foi o animal que assinou e selou o meu destino ?  Quem ?

E tu Diogo cala-me essa cadela e muda-me já a merda da televisão para o canal Disney que já não posso com a trampa do funério, e faz o que te digo ou desaparece-me da frente.

Desapareceu...

MÁSCARA  *

Depus a máscara e vi-me ao espelho. —
Era a criança de há quantos anos.
Não tinha mudado nada...
É essa a vantagem de saber tirar a máscara.
É-se sempre a criança,
O passado que foi
A criança.
Depus a máscara, e tornei a pô-la.
Assim é melhor,
Assim sem a máscara.
E volto à personalidade como a um términus de linha.

* Álvaro de Campos, in "Poemas"

TABACARIA  **


Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente

Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

** in Tabacaria /Álvaro de Campos (F.P)