segunda-feira, 29 de maio de 2017

434 - PETROMAX .......



… Depois de muito me conter julguei eu encostá-la à parede com um decisivo e peremptório:

- Eu sei escrever mas não quero fazê-lo…

- Então porque dizes isso ? Para me aguçares o apetite ?

- Para me travar os apetites. Temos que saber conter-nos.

- Fala de uma vez por todas ou cala-te para sempre.

- Sou incapaz de ficar calado. Está-me na massa do sangue.

- Doido insano.

- Doido ao quadrado, se pudesse amar-te-ia ao cubo, à terça, à tripla, à três composta, à quarta, à quinta, à sexta e ao sábado, domingo descansaria.

- Então fala caraças, decide-te.

- Se eu desatasse a falar seria até entornar o leite todo e partir a cantarinha. Seria té nunca mais me calar. E o respeito a que estou obrigado ?

- Então não fales homem do Diabo.

- Eu sou do Clube do Cupido e não do Diabo.

- Não me fecundes.

- Ta bem minha querida, adeus lindo amor do coração, por quem eu cortaria a cabeça e a daria a comer a um cão.

Fosse eu um Centauro e não falarias assim para mim, agarrar-te-ia p’los cabelos, dar-te-ia montaria e cavalgaria contigo p’los céus como Pégaso, enfrentando as alterosas ondas dum mar sereno onde te levasse e te deitasse até que, quando afogado nas suas profundezas eu finalmente respirasse e explodisse num banho de luz incontido p’lo negrume negro da profundidade do mar oceano que calhasse navegar e de tal modo essa luz me cegasse que eu visse miríades de pirilampos marinhos e grinaldas de coloridas anémonas voando no lugar das nuvens que esta felicidade afastara das alturas e eu, surpreendido pela beleza dos dias, o inusitado da situação e p'la felicidade vivida, abrindo a boca de espanto como peixe a quem faltasse o ar, me aferrasse à tua garupa, às tuas ancas, ao traseiro, aos quartos, colado às tuas coxas, procurando a firmeza de tudo quanto apregoas no lugar e procurando-te a fornalha incandescente, teimando uma e outra vez e cada vez mais fundo, almejando suprir esta avidez esta ânsia, esta fome e numa reviravolta de esperança e redenção, de fé e devoção, pudesse de ti tomar posse e entregar-me como se num rodeo montando um cavalo marinho eu lhe apontasse puxando as rédeas, o caminho da mais brilhante estrela do mar e lhe ordenasse que a buscasse, enquanto nós dois, mergulhando naquele céu de felicidade, por ser no fundo que está a virtude e a verdade, a luz e o clímax que ambos buscamos mas não encontramos, como se só o fizéssemos à luz de um Petromax, ao invés de dispararmos neste mar em que vogamos perdidos, uma pistola de sinais e rebentássemos bem alto na escuridão que nos tolhe um petardo de cor e luz cujo fulgor nos ocultasse, pois se há coisa que não quereria era sermos encontrados precisamente agora que estamos perdidos neste sonho sonhado de desejo consentido e com sentido mas travado, pois não quero que me dê um pandangaio, quero morrer farto mas não de enfarte, quero a fome de ti morta matada devagar e tu degustada devagar devagarinho como manda o Martinho e eu, feliz e contente tenha tempo até para palitar este dente que, como uma dor imaginada, como um espinho doloroso cravado na minha mente, moendo-me a consciência e esgotando-me a paciência que não tenho e se me esvai por não ferrar-te quando o que eu mais queria e tu o sabes, seria fecundar-te, deixar florir em ti a flor deste amor cujo rancor me incita a, de tempos a tempos regar-te o pezinho, alimentar-te o ego o brio o in e o id, de mansinho pois nada mais me resta que desejar-te, cobiçar-te, ambicionar-te, usar-te, ter-te, esclareça-se amar-te, não vás tu pensar julgar-te eu objecto de arte, ou artefacto, handcraft, fait à la main, sim talvez, porque não ?

Deus distraído e alguém te fez, bela e sem senão, não fora esta nossa diferença que desde a nascença nos separa e depois de ao quadrado, ao cubo ou à terça ou tripla ou três composta e depois de te fruir, gozar, ter, depois de me lamber e degustar-te como um doce um docinho que mais poderia acontecer a não ser retribuíres-me em cuidados paliativos, visitar-me uma vez por semana, por quinzena, por mês, por trimestre até que finalmente uma linda coroa de flores, um caixão baratucho e na lápide:

- Aqui jaz o Silvestre, era bom rapaz mas apagou-se…








quinta-feira, 25 de maio de 2017

433 - NO BRAGANÇA OU NO PINTASILGO ............


Não o via havia cinquenta e cinco anos ou talvez mais um ou dois, ou menos dois ou três, mas não há duvida, tem o mesmo cabelo e os mesmos olhos de menino alegre que lhe recordava, aliás das poucas coisas que nele recordava. Isso e os bibes impecáveis, que também já não lembro se brancos, se azuis aos quadradinhos miudinhos, ou verdes, também os havia verdes.

O outro tinha um bibe desses, o Kito, verde aos quadradinhos, e ainda lembro a avó Inácia Ferradora, irada, a única vez que a vi zangada comigo:

- Tu fazes-me o favor de tratar o teu primo por menino ?

E eu moita-carrasco, era Kito para aqui Kito para ali, éramos da mesma idade, ou quase, seis ou sete anos, ou oito, a esta distância eu sei lá precisar. O menino Kito era o netinho preferido dela, filho da minha tia Lenita e do tio João, João Sebastião, doutor de línguas, outra estirpe, acho ter sido a partir daí que nunca mais gostei desse meu primo, hoje ter-lhe-ia chamado ódio de classe, mas não, nem ódio nem classe, não gostava dele mas nunca lhe tive ódio, nem ele classe, acho que tanto privilégio o estragou, deve ter sido isso que fez dele um parvalhão, eu por cá continuei na minha luta de classe, uma idiotice este século em que classe e classicismo ninguém tem, conhece ou cultiva.


Não o Júlio, não isto é, também era menino, o menino Julinho, mas não era parvo, brincávamos como iguais, conheci o pai, médico, bom tipo, embora não me lembre da mãe, decerto uma senhora de predicados, foi ela quem me sentou à mesa uma vez e me serviu arroz branco com manteiga, nunca tinha visto tal coisa, nunca comera nada daquilo, Monsaraz e Portugal por volta de 1960 eram o cu do mundo, e mesmo eu que depois ia lá passar as férias grandes ido de S. Miguel de Machede não seria o espingardeiro que sou hoje.

Da varanda da casa do Julinho viam-se, por cima das muralhas, os campos em volta, hoje ver-se-á um mar salpicado de ilhotas, um mar novo, ilhas novas, quando naquele tempo tudo em Monsaraz era velho, de novo somente duas ou três ruas esventradas por onde andavam passando os canos que levariam água a duas ou três bicas, uma nas traseiras da igreja matriz, ao lado da cocheira da Ruça, a burra do meu pai, a minha burra, a nossa burra, outra a meio da rua ida da casa da Inquisição em direcção à entrada da vila, a rua da taberna do Bragança, havia uma outra taberna na rua principal da qual não lembro o nome, Pintasilgo, seria a do Pintasilgo, talvez, fui lá tanta vez e não me lembro, passaram cinquenta anos, é muito tempo.


Ou num ou noutro, ou no Bragança ou no Pintasilgo, mais neste que naquele, gostava de ir á noite ver televisão, a avó Inácia deixava-me ir se durante a manhã lhe tivesse enchido as tarefas e os cântaros de água, que ia buscar à bica atrás da igreja, do outro lado da vila portanto, com duas latas daquelas que vinham dos USA para a Misericórdia, como dádiva, e cheias de queijo flamengo para os pobrezinhos, os pobrezinhos não são uma modernice d’agora. Aqueles tipos dos States foram sempre uma cambada de fascistas prontos a convencerem-nos da sua bondade, mas a verdade é que até as luzidias latas eram aproveitadas, levavam dois furinhos e uma asinha em arame, havendo dias em que faria dez viagens com cinco litros em cada lata, era trabalho infantil que a avó coordenava como ninguém, ela que criou treze filhos, mais filhas que filhos. Não deixava de ser exploração infantil avó/neto, classe a classe dentro da mesma classe, hoje seria inadmissível tal abuso, ainda chamar menino ao Kito vá que não vá mas burro de carga ?

Mas este que reencontrei cinquenta e cinco anos depois e cuja mãe não lembro mas ainda ouço foi quem o baptizou:

- Menino Julinho almoço !

E nós dois entretidos na brinca para logo puxado por ele subirmos rindo-nos a escadaria do quintal até á varanda e à cozinha, os olhos galgando as muralhas e estendendo-se até à raia de Espanha, o vau da Guadiana, tendo sido esses mesmos olhos inocentes que reencontrei agora, os mesmos cabelos finos a quem o pai de vez em quando desfazia a compostura, mão na cabeça abanando-a, sacudindo-a e:

Menino Julinho menino Julinho …

seguindo caminho com a mesma alheada firmeza com que se aproximara de nós, vida de homem, vida de gente grande, não, ali nunca houve coacção que me forçasse a qualquer submissão ao menino com quem repartia brincadeiras e me olhava com os mesmos olhos que hoje lhe vejo na foto que o trouxe até mim, meio século depois.


E enquanto eu rejubilava por ter reencontrado este querido e velho amigo de quem direi que o simples facto de existir me contenta e deixa feliz, soube que aqui ao lado Vinícius Júnior, jogador contratado pelo Real Madrid ao Flamengo, de apenas 16 anos e que terá custado cerca de 45 milhões de euros, poderá valer 200 milhões. A uns endeusam, a outros expulsam, outros há sem eira nem beira, enquanto uns riem outros choram, e outros caem em Manchester…  Ontem ali, a norte de Londres, confiando em amigos e jogando com a existência, outro ser, outra vida, sem preocupações quanto ao facto de os amigos existirem ou não, desiste de existir, desiste de si, arrastando consigo o caos e deixando em agonia a utopia que nos alimenta as ilusões e o viver, acreditando que, numa nuvem talvez maior, mas como a que fora vista na Cova de Iria o esperariam setenta e duas virgens antes de acabar o dia…
  



terça-feira, 23 de maio de 2017

000 432 - MONSARAZ, TIOS, TIAS, PRIMAS…

Monsaraz, by Marcelino Bravo (Évora)

Sinceramente nem sei que vos diga, pois não gosto de mentir e aprecio a franqueza. Elas eram duas, da mesma idade e quase iguais, uma era Maria Luísa a outra Luísa Maria talvez agora compreendam melhor as minhas reticências. Uma era filha do meu tio Inácio Valadas, o Inácio das éguas, e da minha tia Ermelinda, a outra do meu tio Jacinto, do tio Jacinto Palma e da tia Marcelina.

Confesso o meu desapego, delas ainda vou sabendo alguma coisita de vez em quando e vendo-as ocasionalmente, talvez de dez em dez anos, geralmente quando morre alguém vemo-nos todos no funeral, e quanto às tias e aos tios penso já terem falecido todas e todos mas para ser franco nem disso tenho a certeza, nas famílias grandes é assim dizem.

O sal e os fosfatos afectaram-me muito, não se trabalha quarenta anos num distribuidor de bacalhau para sair incólume. Ainda hoje tenho gretas nas pontas dos dedos de mexer em tanto sal e já me reformei há quase vinte, mas o pior são os nitratos, ou fosfatos que alguns exportadores metiam no bacalhau sei lá para quê, talvez para pesar mais, o meu patrão ao menos esse era só água, cada mangueirada nos fardos duplicava-lhes o peso, o peso e o ganho, mas os vapores que a água levantava aos fardos quem os respirava era eu. Dizem que também são culpados pelo buraco do Ozone e pelo degelo do Árctico, sei lá, parece que Lisboa vai ficar debaixo de água, e Cacilhas, preocupa-me sobretudo o Seixal, uma das primas Luísa vive lá, e viúva, quem vai ajudá-la a lutar contra a maré quando chegar a altura ?

Acessos todos em chapada (ladeira) os de Monsaraz... 

A outra vive mais perto, mas nem por isso nos vimos mais, casou-se, o tipo arrebatou-a, meteu-a em casa, nunca mais ninguém a viu, resquícios árabes é o que é, dizem que os árabes andaram por aqui, em Monsaraz à entrada das cercanias da vila lá está uma modesta construção, cuba ou mesquita, má gente essa, rebentaram com D. Fernando e D. Sebastião, e isto nunca mais foi nada que se visse, ou de jeito. 

Vomecêses estão a par do que eles andam pintando por essa Europa ? Hoje foi em Manchester, amanhã sabe lá Deus onde será, não tenho dúvidas vai haver atentados para todos. Hoje Manchester, amanhã Chelsea, West End, Penny Lane, sobrarão, aliás era expectável, os tipos no Reino Unido andam brincando com as pessoas, andam a lixar a vida a milhares de indivíduos… 

Pisaram um vespeiro, mal entrem numa mesquita chorando serão confortados, algum de vós tem dúvidas ? Ah e tal irmão, não dirijas mal a tua raiva, aprende a usá-la, setenta e duas virgens te esperam no paraíso e tal, sê um herói e um mártir, sim claro, sabemos que não vale a pena ires a drogarias nem a farmácias mas a malta tem o que precisares desde AK47 a camiões. Um braço por cima, um toque de confiança e não haverá nenhum que saia sem um cinto de explosivos à cintura e sonhando com as tais virgens... Nunca devíamos ter tocado em Ceuta, cada macaco no seu galho.

Cuba mourisca, actual capela de S. João Baptista.

Da mesquita lembro-me ainda que estivesse meio soterrada, brincávamos em cima dela, por vezes até às sete da tarde, hora em que aparecia o meu tio Jacinto deitando os bofes pela boca, pedalando desde a fábrica de papel até cá acima, outras vezes arrastando-se ao lado da pedaleira, nunca soube se a empurrara desde a ponte até cá acima, tal como nunca o vi partir, abalar, descer a chapada, havia de ser bonito, uma ladeira daquelas, daqui à fábrica, sempre a descer, aposto que nem tinha que pedalar nem uma única vez, nunca o vi, mas imagino-o, mãos coladas no guiador, cabelos virados para trás com o vento, cigarro bem trilhado nos lábios para não abalar, a ponta avivada, o borrão voando sozinho, o cigarrinho chupadinho em três tempos, aposto que nem lhe durava, as calças presas com uma mola para não esvoaçarem ou se meterem na corrente, o chapéu entalado na caixa de lata onde levava o almoço e presa com uns elásticos daqueles das fisgas.

Entre tantas fotos esta parece-me ser do meu tio Jacinto.

Tinha cara de gente boa o meu tio Jacinto, o Jacinto Palma, de olhos azuis como o meu pai, eram cunhados, e para ser justo devo dizer que o meu outro tio o tio Inácio Valadas, o Inácio das éguas também era uma simpatia, ele e a minha tia Ermelinda que só tinha igual na tia Aia, já a minha tia Marcelina, a do Jacinto, é mais ensimesmada inda que tenha uma voz alegre, fala cantando, também gosto dela.

E depois é isto, a família dispersa, nem sei se morta se viva, cada um em seu canto, não cheira a esturro ? Farei amanhã noventa e quatro anos, já enterrei muitos deles e acho que ainda vou enterrar muitos mais. Queria deixar a fortuna aos meus, mas como se nem dão sinal ? Nem sei se vivos se mortos, secalhando deixarei a fortuna à Misericórdia de Baião, que façam um hospital novo com maternidade e tudo, e um lar para os velhos, e que relvem o campo de futebol, façam um ginásio, construam as bancadas, e já agora uma igreja nova, isso mesmo, com um bom largo, para os bailes quando da vinda dos emigrantes que cada vez hádem ser mais, e um adro sem igual, para concertos, e que criem uma filarmónica para animar as manhãs da televisão, se assim for morrerei feliz.

Monsaraz, by Marcelino Bravo (Évora)


quarta-feira, 17 de maio de 2017

431 - OS 4 MAGNIFICOS DE MOUNTAIN VIEW ...


Mais por curiosidade do que por quaisquer outros motivos, passado algum tempo após ter iniciado este blogue, anexei-lhe duas aplicações que poderão observar na margem direita do dito cujo e que inicialmente me indicavam na hora e sem falhas a proveniência dos meus leitores. Passada a satisfação inicial, essa particularidade infalível das ditas aplicações permitir-me-ia dar-me conta das visitas de alguns dos meus amigos ao blogue e conhecer em simultâneo a cidade onde vivem. De salientar que alguns desses amigos são veros amigos e gente conhecida, gente daqui, de Évora, gente que emigrou, com quem inclusive troco correspondência electrónica, geralmente mensagens breves e curtas no Hotmail e no Facebook.

A precisão matemática dessas aplicações deu-me uma melhor noção dos lugares ocupados pela diáspora portuguesa, e mais que isso, a noção da deslocação de alguns dos seus membros, e também ou provavelmente apenas o aparecimento de um ou de mais uns leitores. Aos eborenses que acompanho, e em especial aos que não se fixaram, antes se tornaram nómadas da diáspora, observo os movimentos, muitas vezes sabendo de quem se trata, um ou outro conhecido, vagueando por exemplo de Itália para a Europa Central, República Checa, ou então para a GB e Escócia, pois até em viagem de férias e turismo acompanhei o percurso d'alguns, pela França, Bélgica, Holanda, movimentações igualmente assinaladas no Facebook pois os recentes telemóveis captam e informam, dispensando ordens do dono, os passos dados e os lugares visitados, no dia, na hora, e no segundo em que o fazem. Mercê desta modernice drones armados já têm "despachado" terroristas cujo número é conhecido e se esquecem de desligar o telemóvel ou esta aplicação...

Essas duas aplicações no meu blogue regozijavam-me e distraíam-me, informavam-me, conjugadas com o serviço de estatística do próprio blogue, dando-me uma panorâmica bastante completa do universo dos meus leitores a ponto de poder afirmar com exactidão onde se encontram e sobretudo onde se concentram. Estou em condições de vos afirmar e garantir que na Lua e em Marte p’ra grande tristeza minha e por enquanto não possuo ainda nenhum, mas talvez não demore…

Naturalmente também terá havido quem tenha vindo embater no blogue por acidente ou engano, daí que só contabilize as visitas que se repetem uma e outra vez denunciando alguma constância, uma procura propositada e não aleatória, casuística ou errónea. Contudo paulatinamente o número de visitas e de lugares de onde são oriundas tem vindo a aumentar, se considerarmos ser a língua portuguesa uma língua difícil para estranhos, embora seja a quinta língua mais falada do mundo, considerando a especificidade do blogue, cuja leitura não é para todos pois é algo difícil, essa persistência e constância da procura aliadas ao aumento de leitores certamente me regozija ainda que não seja esse o fito deste texto.

Na realidade devido ao aumento do volume de visitas as ditas aplicações perderam alguma da sua eficiência, não tanto o globo, no qual é necessário clicar para que entre em funcionamento, mas especialmente a outra aplicação, que além da falta de instantaneidade e precisão que agora acusa, tem-me contudo dado a conhecer a perda de leitores da diáspora, concluo ter a instabilidade ultimamente registada no mundo afectado sobremaneira as suas vidas. Ou isso ou a merda do blogue a alguns não cativa, também tenho que ver e aceitar a possibilidade oferecida por esse prisma. E assim chegamos ao cerne deste texto, nem mais nem menos que quatro leitores muito especiais que há muito me seguem, ou perseguem, e de cuja perseguição há muito me apercebera. Tenho em Mountain View, Califórnia, USA, quatro servidores fiéis, e quando falo em servidores refiro-me a computadores, servidores esses que só numa condição me acompanham e visitam, condição que religiosamente há anos cumprem com inusitada eficácia.

Não fazem visitas aleatórias, antes a sua curiosidade é despoletada se e quando mexo no blogue, exclusivamente quando mexo no blogue, seja para adicionar um novo texto seja para corrigir um erro nalgum outro, haja mexida nos textos e eles quatro aparecerão quase de imediato e todos de uma vez. Hoje quis, deu-me vontade de conhecer, saber que cidade é essa, saber mais sobre essa cidade de  Mountain View, e nã é que tive uma surpresa ?

Há muito me apercebera ter ali não quatro leitores mas quatro controladores, quatro perseguidores, foi para mim uma enorme surpresa ter-me apercebido que Mountain View é a sede da Google, logo o pensamento me derivou para este simples facto, a Google espia-me, mas para quem ? A mando de quem ? Porquê ? Quando na brincadeira acusamos o Facebook, podem incluir a Google, de saberem mais sobre nós que nós próprios não estamos a brincar, “eles” pelo menos não estão, a tecnologia e os modernos filtros e algoritmos permitem-lhes espiar e filtrar tudo e todos, temos tido provas disso, até com os telemóveis e os televisores, que nos espiam mesmo que os desliguemos.

Mas por quê eu ? Que mal fiz ? Sou terrorista ? Não, não sou, mas há perto de quinze anos integrei uma missão humanitária inserido numa ONG internacional, numa missão de paz em visita ao Iraque precisamente quando a operação “Choque e Terror” eclodira, operação que parcialmente vi e vivi e acerca da qual na altura escrevi um livro. Tal foi o bastante para ser colocado na lista negra, ou foi por isso ou foi pelo meu papel em África há quarenta anos, mas neste último caso duvido, porém não brinco, vejam com os próprios olhos, cada vez que meter um texto novo no blogue ou simplesmente lhe mexer aparecerão seguidinhos e automaticamente as quatro visitinhas dos quatro magníficos de Moutntain View !


- Olá !! Estão aí ????? Isto é p’ra vocês !! Beijinhosssssss !!



No dia seguinte um amigo remeteu-me este link : 
http://tempocontado.blogspot.pt/2010/01/mountain-view-causa.html

domingo, 14 de maio de 2017

430 - OS ALGORITMOS E AS POSSIBILIDADES...*

Não que tenha alguma influência, que não tem, nada do que possamos dizer teve, tem ou alguma vez terá a mínima influência, contudo quem numa mesa de café segura o fio aleatório que as conversas tomam qual fio de Ariadne, caindo matemática e regularmente no centro do círculo quadrado que a mesa representa, tal qual nela caem as bicas, as minis e os tremoços ou as ervilhanas ?

Dizer que a coisa este ano ou desta vez vai ser aguerrida como alvitrou o Maiorgas, não fosse ele de Alvito, é coisa que já nem pega, tanto que ninguém na mesa o levou a sério mantendo continuidade a candente questão do tetra ou a do Sobral, não esse em que estão pensando mas o genro do Guilhermino que é natural de Sobral da Adiça e foi contratado pelo Marrazes para a próxima época, tendo-se deslocado este fim-de-semana a Leiria para cheirar o ambiente e arranjar quarto.

Mas a conversa pegou e continuou, apesar de todos os candidatos apresentarem uma promissora e confusa imagem na bola de cristal em que a endiabrada da Ada, que nem é próspera nem endinheirada, antes natural da aldeia de Endiabrada no concelho de Aljezur vê ou imagina ver quando a olha, quando olha a bola à luz singela de uma candeia de azeite como havia na sua terreola. E sendo verdade o que ela afirma nem valeria a pena o trabalho e o gasto com estas eleições, esclareço que me refiro a este nosso concelho, onde quem está está, ou ficará, e quem vai vai, ou seguirá.

Mais pela Ada que pela conversa a coisa pegou, pegou mas não chegou a arder, quero dizer a aquecer, a primeira a pronunciar-se foi naturalmente ela, Ada, defendendo o seu ponto de vista, isto é defendendo o que a vista lhe alcança quando se põe, tal como há muitos anos víamos os fotógrafos à la minute na entrada do jardim público, espreitando secretos e misteriosos segredos debaixo duma mantilha preta, a fim de travarem a mínima iluminação externa capaz de lhes estragar ou alterar o resultado do banho de sulfeto de prata, assim faz a Ada debruçada sobre a bola de cristal, chegando a trazê-la para o café corroborando o que há muitos dias vem afirmando à boca cheia.

Por duas ou três vezes me calhou ser convidado a meter a cabeça debaixo do improvisado xaile da Ada e a espreitar o secreto futuro que ela apregoa, mas em boa verdade vos confesso, a única coisa que lembro é o inesquecível e frescatível perfume dela e as cores dos sutiãs que em cada um desses dias levava, quanto ao resto a bola de cristal foi sempre para mim um misterioso segredo e um mistério secretissímo. No que respeita às cores o fúxia teve sempre a minha preferência, o que há muito é do conhecimento geral.

E quanto a preferências as da Ada recaem sobre o candidato do PSD, segundo a ela o único que satisfaria os pontos de vista por si incansavelmente sublinhados, é um homem jovem, culto, bem-parecido, com postura e experiente, mas com o burburinho que se levantou mal ela falou, fiquei sem saber se a mesa estava contra ela, contra a suposta e por ela não suficientemente explicada ou justificada experiência, ou contra ele, visto ter havido quem alvitrasse, sim esse mesmo, o tipo de Alvito, o Maiorgas, ao alegar que pela primeira vez em mais de vinte anos esse partido apresentava um candidato a sério e não um qualquer para inglês ver, como era habitual e ao que a cidade já se tinha habituado, isto é ao que a cidade se terá habituado tanto que nunca levou esses candidatos a sério, facto que iria custar muitos votos a este, mesmo que os merecesse, contudo estava capaz de apostar em como este novel candidato obteria o melhor score das últimas décadas. Porém será mais um daqueles casos em que pagará o justo pelo pecador adiantou.

Ele não queria e bem o escondia mas toda a gente sabia, o Maiorgas era xuxa e envergonhava-se disso, daí que escondesse as suas preferências mas a malta é manhosa e conhecendo-o há bué de anos, nunca esqueceu nem lhe perdoou os dias e os fins-de-semana em que se manteve hirto e firme ao portão do Estabelecimento Prisional de Évora, facto com que de vez em quando alguns o confrontam e pelo qual ainda é gozado. Não era o caso agora em que ele perdeu a vergonha e veio em defesa da sua dama, mas a dama dele não passa de ilustre desconhecida para o resto do pessoal em volta desta mesa e decidido a afiar as facas, preferindo centrar as atenções no passado recente do partido de que a ilustre dama é candidata.

Não faltou quem de imediato deitasse achas para a fogueira, mas de modo generalizado e concordante a opinião maioritária era a de que o Zé do Cano só tinha feito trampa e esta desgraçada agora é que iria pagar as favas. Só fez caquinha e não foi pouca avançou a Ermengarda, doze anos imaginem, o que esse partido ganhou com isso é que agora durante os próximos vinte e quatro não vai ter lugar no poleiro, pelo menos enquanto as pessoas se lembrarem da muita conversa fiada e do muito mais que ficou por fazer ou foi mal feito, os compadrios e a promiscuidade entre amigos e cargos, ou as urbanizações que ninguém entende. Ela está desempenhando o papel de idiota útil aventou o Sobral sem gaguejar, calhando já os partidos decidiram p’ra quem ficará Évora e ela não passa dum verbo de encher p’ra apaludir as iludências ou iludir as aparências, seja como for ela agora é que vai pagar as favas da merda que o outro fez, lixou as espectativas de alternativa a toda a gente e agora não se admire se o Zé Povinho lhe fechar as possibilidades de alternância...

Alto aí e pára o baile, ponto de ordem à mesa disse eu impondo-me, nem a senhora é uma idiota útil nem é parvinha como parecem estar a fazê-la, ainda há dias confrontei o meu amigo Romão precisamente com essa questão e a resposta dele foi pronta, ela não é parvinha nenhuma nem está fazendo um frete a ninguém nem sacrifício nenhum, ela é esperta e sabe ao que vai, agora aguenta, e depois espera a vez dela, a presidência da CCDRA, ou da D.R. Educação do Alentejo, ou da Direcção Regional da Cultura, ou do IEFP, aposto que aceitará quaisquer nomeações, não há almoços grátis, ela é esperta não é tolinha nenhuma rematou ele, e tendo dito isto calou-se, como se já tivesse falado demais.

Enquanto emborcámos mais um uísque e lhe disse para não contar comigo nesse tal almoço da efeméride de fim de curso cujo convite me trouxera dado o meu estado de saúde. Deixei cair na conversa isto é Portugal, ninguém leva a mal, não havemos nós de estar como estamos, ter chegado onde chegámos… De qualquer modo essa candidata vai ser lançada às feras, é um sacrifício que irá custar à bondosa senhora o score mais baixo do seu partido nos últimos anos, vai uma apostinha ?   

- E tu Januário, em quem apostarias rapaz ?
- Eu ? No vencedor pá !! Só aposto quando vejo dinheiro em caixa !!
- E já agora quanto a ti quem vai ganhar dizes-me ?

– Claro que digo, o Pinto de Sá, afinal é o único que está limpinho, puro, livre de todas as culpas, o único que podia fazer alguma coisa e não pode porque o preto e o Zé do Cano só lhe deixaram uma montanha de dívidas, não é de cá, nunca cá esteve, não tem culpas no cartório, se for inteligente e não abrir a boca, não disser nada e não fizer nada ganhará com maioria absoluta e averbará a maior vitória da sua vida e que ficará para a história.

Falas a sério ? Deixa-te de brincadeiras pá.

Nunca falei tão a sério, é dos livros que em caso de dúvidas ou incertezas o que a sociologia política nos ensina é o jogo eleitoral beneficiar quem detém o poder pois leva vantagem, é mais fácil conservar o poder que conquistá-lo, Pinto de Sá não precisa convencer quem já está convencido, basta-lhe não hostilizar ninguém para que não perca votos, com uma postura dessas antes ganhará mais alguns.

- E Évora ?

- Évora ? 
- Que tem Évora a ver com tudo isto ? Évora nem é para aqui chamada pá... 

              - Que interessa Évora ?


* Nota importante, todos os nomes deste texto são inventados não correspondendo a nenhuma realidade, circuntância ou pessoa. 

Pintura de Sónia Barreto (pormenor) Évora 2017

terça-feira, 25 de abril de 2017

429 - ALCÁCER-QUIBIR, DISSE O ASTRÓLOGO

  
Observo neste domingo ensolarado pela montra de vidro, antigo, biselado, o movimento na rua e, destacando-se entre os intervalos do ferro forjado, na orla do quadrado que a montra qual moldura desenha na parede deste vetusto prédio, os traços argênteos duma loura parecendo carregar sobre os ombros pesada melancolia, delineando-lhe a irregularidade dos passos num rumo apontando à solidão e em cuja projecção se atravessa uma florida mimosa atapetando de amarelo o chão por ela pisado mas que não pisa, pois chuta p’ra diante as flores, p’ra diante e para longe ficando eu pensando no meu recanto se aquela mulher loura carregando tanta tristeza, retirada, recolhida em si mesma, supondo eu ao ver-lhe vagamente no dedo uma aliança, se o fará por entretanto ter criado aversão ao casamento, não tendo eu contudo a certeza de ser ela casada ou não e a ser, se terá falhado esse vínculo cuja existência uma visível mágoa parece denunciar.

Mágoa espelhada numa carinha de anjo de rara beleza, uma beleza rara, daquelas capazes de conduzir à loucura o mais listo, uma loucura translúcida, das que se podem carregar sem que os demais dela dêem conta, dela loucura, não dela beleza, porque a beleza essa é elegíaca, insensata e extravagante de manifesta duplicidade, tanto nos fazendo meter para dentro como sair de nós mesmos, cada um de nós a seu modo inda que raramente imbuídos ou impelidos por um raio de luz que, professara um astrólogo, desde Alcácer-Quibir seria por alguém cavalgado numa manhã fantasmagórica de nevoeiro.

Porém quem nos surgiu e surge não passa nunca de cornaca, bufarinheiro, ou marinheiro, como com o último anacoreta aconteceu, o mesmo que se apresentou totalmente tatuado, roda de marear nas costas da mão direita e, na esquerda, compasso traçando firme um azimute certamente arrancado duma bússola, essa palavra esdrúxula, rumo que sob a luz trémula da incerteza torna duvidoso o caminho apontado a uma miragem e, quando já perto da margem, da orla, dissipado o nevoeiro o comandante avistou terra, algumas aves raras e uma estranha e florida ilha, acorreram a vê-la, interessados, em júbilo e em horda incessante toda a marinhagem, toda a canalha arrebanhada para as artes da nau em véspera anterior à partida por tavernas, albergues e bordéis e, entre todos eles nem um probo, antes e na generalidade cobaias, heróis uns mártires os outros, todavia a todos o mar, os ciclones, tornados, furacões e o escorbuto dava conta, levando-os a lento agonizar e profunda depressão.

Fundearam num extenso vale entre montanhas albergando o planalto aí existente uma vasta planície por onde deitaram correndo na sua sede de terra, tremendo, de pernas bambas, dolentes, inseguros e induzidos ainda pela dança dos balanços no mar, tendo reparado então que de terra todos quantos para eles acorriam dando as boas vindas estavam loucos, esfarrapados e esfomeados. Foi só nessa ocasião que a tripulação, em delírio e dando conta da sua própria demência reparou em toda aquela faixa de terra estéril, num lindo e florido jardim à beira mar plantado pelos andrajosos indígenas, entretidos há quarenta e três anos lançando ao mar nas noites de lua cheia e do alto das falésias os mortos purulentos de olhos cavados e línguas inchadas, a fim de poderem ver o mar levá-los como foice prateada nas mãos de ceifeira desastrada.

Alguém trouxera do navio uma ampulheta e duas clepsidras, ajeitando-as equilibradas na praia, sobre o cadáver dum cachalote em decomposição ao qual já tinham comido uma barbatana, assim calcularam o tempo, a hora, o dia, e, com o luar no auge estimaram estar a viver esse prodigioso momento numa terça feira, p’las zero horas do dia 25 de Abril daquela terra onde a diferença entre natureza e sociedade não chegara ainda, nem chegaria nunca, mas quem o sabia ?

E, enquanto na abóboda celeste a lua caminhava lentamente, em terra os loucos e os dementes festejavam sem saber o quê, lançando uns os foguetes e correndo os outros a apanhar as canas, das quais uma loura ensimesmada e receosa se ia desviando desde que se conhecera a si mesma, temente dum medo que agora não lograva evitar, esquecida da medicação, esquecida das consultas, recordando somente que a primeira cana a assustara mais do que ferira já lá iam quarenta e três anos, quarenta e três anos em que fugia a uma festa que não compreendia mas que perniciosa insensatez ano a ano replicava automática e irreflectidamente reproduzindo-a sem refutação,  agora sem graça por não haver quem saiba biselar um vidro ou construir uma janela em ferro forjado a cuja montra possamos sentar-nos observando através dum vidro antigo, trabalhado, biselado, o movimento da rua num qualquer domingo ensolarado.  


sexta-feira, 14 de abril de 2017

428 - POESIA OU PROSA, GOSTOS NÃO SE DISCUTEM ...


Gosto de poesia, contudo deixo desde já bem claro não ser ela a minha praia. Gosto de ler poesia, e se consigo entendê-la, não estou ainda à altura de a depurar, quanto mais de a elaborar duma forma perfeita, elegante, como a prosa que vou tentando e conseguindo umas vezes, outras nem tanto. A prosa sim, é a minha praia e a minha onda, adoro cavalgá-la e, sempre que posso, ou estou lendo ou escrevendo, entre uma e outra coisa venha o diabo e escolha.

Desde cedo a literatura me seduziu e acerca dela poderia dizer o que Sócrates nos disse falando para si mesmo, conhece-te a ti próprio, e eu, quanto mais sei de literatura mais concluo só saber que nada sei. Nunca tive ouvido para a música ou mãos para tocar viola, mas fico feliz com um livro à minha escolha ou com quatro folhas de papel e uma boa esferográfica, deslizando bem, correndo bem sobre o papel e me permita acompanhar as ideias sem que as perca. Falo da prosa claro, porque a poesia demora, tem uma maiêutica dificílima, a formatação demorada, é como uma gestação, é parida a custo, e aqui os cuidados serão antes não esquecer meter a tampa na caneta para que a tinta nunca seque no aparo.

Uma seca a poesia ? Eu não diria, alguma talvez, não a maioria, mas com a poesia chia mais fino, e o que menos conta será a rima. A poesia é do âmbito do transcendente, é uma subjectiva objectividade múltipla, como quem espreita um caleidoscópio ou se delicia com uma mandala. A poesia intima-nos, exige de nós muito mais que uma qualquer prosa, por vezes intimida-nos e tanto nos pode assustar como deslumbrar, comover ou convocar a raiva, a solidariedade, tanto quão a repulsa ou a rejeição.

E não faz isso a prosa ? Claro que faz, é evidente que faz, mas não o faz num verso, num soneto, num poema, numa estrofe, é esse o ponto fulcral da poesia, a prosa lida com descrições, explicações, narrativas, parágrafos, pontos finais e reticências até nos dar uma imagem, até que percebamos onde quer chegar, a poesia dá-nos imagens, atira-nos com imagens, convoca-nos ante uma imagem baseada em três palavras ou três linhas, confronta-nos com metáforas, toma, pensa, medita, desvenda, traduz, desenrasca-te, bastando uma palavra para nos exigir que saibamos ou tacitamente reconhecer que conhecemos todo um texto, todo um livro, toda uma história, trabalha num patamar diferente a poesia, num degrau mais elevado, não como o arame farpado e rasteiro que evita as vacas no lameiro, trabalha no arame, no limite, brinca connosco, faz malabarismos, ri-se de nós umas vezes elogiando-nos noutras e, nalgumas raras ocasiões condecora-nos.

A poesia não ensina, exige que saibamos, que conheçamos, mas depois, maravilha das maravilhas, torna-se cúmplice, de sentimentos, sensações, e confronta-nos com o que sabemos com o que julgamos saber, sobretudo com aquilo que ignoramos saber. Diria que a poesia nos convoca, nos convida e desafia a entrar e a desvendar o seu mundo imagético cuja diegese a partir desse momento reparte cumplicemente connosco, bandeirantes da sua geografia, aprendizes de feitiçaria, duendes numa floresta de gnomos e gigantes de um mundo nem liliputiano nem dos ciclopes onde se nos torna acelerada a pulsação, precisamente quando reclino a cabeça, fecho os olhos deixando-me transportar, viajar no espaço e no tempo, ou num abraço ternurento, outras vezes sobrevoando uns lábios sequiosos mergulho num corpo quente, abrasando, sendo então que em sobressalto acordo e corro a tomar um duche frio pois a sensibilidade da poesia afoga-me os sentidos num caldeirão em turbilhão, em lume quente, ebulição, fazendo que me sinta João Ratão rodeado de canibais famintos, dançando em transe em redor duma fogueira ameaçando cozer-me em lume brando mas, soltando um urro animal deselegante furto-me ao fantástico e fantasista erotismo sensual do amor poético cuja fantasia, enrolando-me, enleando-me, ameaça quebrar-me submisso ao fogo que ela mesma aviva com ervas de cheiro, rabos de lagartixa e folhas de ulmeiro, cujas fragrâncias me enovelam quixotescamente dentro das palavras que eu próprio murmuro.

E agora ? Agora, outro duche naturalmente …




quarta-feira, 12 de abril de 2017

427 - UMA CASA MILAGROSA * ..............................


Frei Baltazar estava satisfeito, vira-se livre da velha abadia que remontava ao tempo dos romanos, conseguira aproveitar todos os materiais ajudando-se a poupar para o muito ainda a gastar, a satisfação notava-se-lhe nas bochechas avermelhadas que as noviças adoravam repenicar, mas só quando tinham oportunidade e sempre que a irmã Blimunda, a madre superiora, não as estivesse observando.

Frei Bento, dando passinhos mais parecidos com saltinhos percorria o perímetro das obras, mãos cruzadas sobre a pança, impando de contentamento como só um abade sabe impar. Depois de quarenta longos anos conseguiram erguê-la, pô-la de pé, não sem que tenha tido que arrancar grandes exigências aos mesteirais, aos mestres e operários cujas vidas eram passadas ali, mas finalmente ali estava ela, solenemente erguida apontando aos céus numa prece ao divino Senhor.

De modo elegante tinham solucionado o problema das altas paredes, altas e estreitas, altas e finas, atreitas a tombar, mas em simultâneo a solução encontrada evitaria que caísse sobre elas o peso do tecto da cobertura, da abóboda à cúpula, da abside e deambulatório e do baptistério claro não o esqueçamos nem à sua importância.

Durante alguns dias houve festa na vila, arlequins, bobos, aedos, caçadores de faisão no braço, archeiros e cavaleiros, tocadores, todos e cada um no seu mister contribuíram com canções, músicas, habilidades e jogos para as festas daqueles dias de alegria, mas uma preocupação dominava alguns deles, depois de assentarem o tecto que seria da luminosa claridade que deveria preencher a casa de Deus ?

Naquelas finas, graciosas extensas e elegantes paredes teriam que ser rasgadas janelas, teria que ser aberto caminho à luz, mas como evitar que por elas entrasse também a inclemência do clima ?

Ainda a obra não estava completa e já Frei Bruno para ela conduzia as criancinhas na hora da catequese, o seu jeito para contar histórias era um tributo à tradição e à oralidade, tendo sido ele mesmo quem sugeriu ao mesteiral-mor aproveitar aquelas paredes e nelas pintar cenas da vida de cristo, do nascimento à morte, parábolas dos evangelhos, pinturas em cores vivas que o ajudassem na divulgação do exemplo de vida e da palavra de Deus. O mesteiral-mor anuiu num movimento do queixo e desandou, pois tinha que vigiar o trabalho dos canteiros vindos de Carrara e a quem fora entregue uma valiosa quantia para a feitura de uma dúzia de estátuas marmóreas.

Alguns dias depois, vendeu o mesteiral-mor ao mestre artesão da obra e como sendo sua, a ideia de pintarem nas paredes grandes painéis aludindo à vida, obra e exemplo do Senhor, pinturas alusivas aos dez mandamentos por exemplo, ao que o dito artesão, cofiando a barbicha, respondeu: Não poderia ser assim, pois as paredes teriam que ser rasgadas, abertas, inda não sabia como mas teriam, a fim de deixar entrar a luz.

Numa anterior conversa soubera esse artesão, de nome Geraldo, através do comerciante Nacodemo, terem em Itália, em Murano, perto de Veneza, o clã Barovier, uma antiga família de vidreiros, inventado o vidro plano e sobretudo o modo de lhe dar cores, que adicionavam ao vidro e o tornavam ligeiramente opaco mas alegre e lindamente colorido, pelo que em sua mente começou a brotar a ideia de rasgarem as paredes sim, mas preenchendo o espaço com esses vidros, painéis grandes desses vidros às cores, e matutava nisso quando frei Benedito se aproximou com um cesto de ovos assentes em palhinhas.

- Ovos de grifos frei Benedito ?

- Saiba vossa mercê que só após comidos saberá se sim se não, pois que os trouxe para com prazer os ofertar a vossa senhoria.

Quebrado o gelo teve o artesão oportunidade de dar conta ao frade dos seus pensamentos, das paredes rasgadas, do vidro de Murano, da hipótese de painéis coloridos taparem o espaço aberto e protegerem da inclemência do tempo mas permitindo a entrada de luz, podiam mesmo animar a nave com painéis de vidros aos quadrados, ou faixas de diversas cores, um vidro colorido ligeiramente opaco e lindo, tal vidro prestava-se a isso, que achava o bom frade da ideia ?

- E porque não construírem painéis com figuras, aproveitando a diversidade de cores e a habilidade de mestre Nicolau ? Ninguém corta vidro como ele ! Já que não podem pintar as paredes, pois se terão que ser rasgadas, então que não pintem, ao invés de pinturas criem-se desenhos, porque não ? Que pensa vossa senhoria desta minha humilde ideia ?

- Não está mal pensado não padre, os caixilhos vão ser um problema mas tudo se há-de resolver ! Porém, com a ajuda de Deus, nada haverá que mestre Bonifácio não consiga.

Dez anos depois desta conversa era inaugurada a nova catedral, lindas colunas sustentavam por dentro o peso da nave, no exterior os contrafortes, agora desferindo graciosos arcos a que chamaram arcobotantes, escoravam as esbeltas paredes lindamente guarnecidas de painéis coloridos, cada um deles versando um episódio da vida de Cristo, e, beleza das belezas, à medida que os viajantes se aproximavam do templo todos reparavam num enorme círculo encimando a frontaria e que depois de entrarem a todos deslumbrava.

Esse círculo permitia que o sol da manhã irrompesse pela nave, mas também a inundava das várias cores com que o vidro que o preenchia imitava uma rosa, uma mandala, o fundo de um caleidoscópio, coisa mais linda ! exclamavam todos, enquanto as criancinhas se quedavam embevecidas ante as histórias coloridas que as paredes contavam.


Uma menina de dez anos, Leonor de seu nome, com um cãozinho no colo, não descansou enquanto não viu com os seus olhos uma catedral perto de si, adorou, ela que tanto gostava de cores e de desenhar. 


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 Altar da Igreja dos Salesianos - Évora, onde o vitral tem um efeito meramente decorativo e de aproveitamento da luminosidade natural. 
  Igreja dos Salesianos - Évora, vitral, tem um efeito meramente decorativo e de aproveitamento da luminosidade natural. 
  Igreja dos Salesianos - Évora, vitrais, têm um efeito meramente decorativo e de aproveitamento da luminosidade natural. 
  Igreja dos Salesianos - Évora, vitral, tem um efeito meramente decorativo e de aproveitamento da luminosidade natural. 
 Baptistério da Igreja dos Salesianos - Évora, onde o vitral tem um efeito meramente decorativo e de aproveitamento da luminosidade natural.