quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

484 - QUEM CASA QUER CASINHA , QUERIA ...

                                

Vendem-se cada vez mais casas em Portugal, segundo a imprensa as agências imobiliárias movimentam milhões a cada ano que passa mas, vender cada vez mais casas e mais caras, será isso bom, ou mau ?

Versando este tema lancei há dias numa rede social a pergunta em causa, desafio que pouca gente se dignou aceitar e quem aceitou errou desalmadamente porque as pessoas já nem sabem pensar, colocar o que quer que seja em questão ou ver por trás da aparente realidade que lhes mostram. Ora eu continuava nesse desafio afirmando a quem se dignasse responder e caso errasse que diria mais tarde de minha justiça o que sobre o assunto pensava e penso, pedia somente uns dias e dir-lhes-ia por que não seria a coisa boa, ou por que sim por que razão o será.

Muitas alegações poderão ser feitas com base na questão, umas mais ligeiras outras mais aprofundadas, eu faço-as remontando aos anos do PREC e seguintes, aos anos em que a falta de coragem para tomar medidas ou forjar soluções se começou fazendo sentir, hesitações das quais hoje, neste como em muitos outros aspectos sofremos os nefastos efeitos.

Mui justamente uma das palavras de ordem do 25 de Abril, “pão, paz, habitação” em especial no que à habitação concerne, um dos problemas que ora estamos a sofrer, teve o seu corolário com a ocupação ilegal de casas devolutas, as designadas ocupações selvagens feitas a torto e a direito, submetendo a sociedade a enorme pressão que antiga e justa sede de justiça, sede de democracia, sede de habitar uma casa e a necessidade que estas premissas se cumprissem ditou, sem que contudo o estado se tivesse debruçado sobre o problema e muito menos legislado em conformidade.


A virtude do equilíbrio entre a procura e a oferta foi deste justo modo violentamente alterada e mais o foi ainda quando retornaram à metrópole quinhentos mil portugueses fugidos das ex colónias ultramarinas, o desequilíbrio foi tão gritante, a falta de habitação tão pungente que o prato da gigantesca procura elevou o da exígua oferta de tal modo que as rendas subiram astronomicamente, respondendo naturalmente à exorbitante falta de habitações sentida e ao desalvorado nível que a procura alcançou, tornando a habitação um achado precioso...

 Neste contexto o estado foi, pela pressão das circunstâncias obrigado a legislar, mas fê-lo da pior maneira possível, congelando as rendas, mantendo-as obrigatória e artificialmente baixas, agravando um problema que já era sério e viria nas décadas futuras a codilhar-nos a todos. Com as rendas congeladas quem investiria na habitação ? Quem retiraria delas, habitações, rendimentos para a manutenção das existentes ou um pé-de-meia para futuras construções ? Ninguém, o estado que resolvesse o problema, o que ele estado fez, mal e porcamente como se diz por aqui, através sobretudo da habitação cooperativa de custos controlados e da oferta de casas de rendas sociais. Duas boas medidas, excelentissímas, caso não tivessem pecado por insuficiência.

A situação chegou a atingir o caos, o desastre, e só não redundou em desgraça maior dado o elevado custo dos novos arrendamentos, já então elevadíssimos, facto que tornou compensador ou preferível comprar uma casa com recurso ao crédito bancário, não tendo a ninguém ocorrido que estávamos uma vez mais saindo da lama para nos metermos num atasqueiro. Começara por essa época o triste hábito de não pensar o país, não o pensar a longo prazo, nem a médio nem sequer a curto prazo, como não analisar quer a montante quer a jusante o efeito das leis que iam sendo elaboradas. Com o fascismo, que caía, erguia-se a democracia mas também o improviso, o imediatismo, a irresponsabilidade e a ignorância.

Para fazer face ao afluxo de solicitações de crédito a banca nacional foi lá fora endividar-se, “ignorando” (?) que esse endividamento só a longo prazo seria amortizado, “ignorando” estar o crédito sendo afectado sobremaneira ao sector da construção, “ignorando” outras áreas do sector produtivo quiçá mais proveitosas de desenvolver que a simples construção civil. Cegamente passou a medir-se o crescimento do país pelo número de habitações licenciadas e pela tonelagem de cimento produzido, esquecendo a economia a fulcral área dos bens transaccionáveis e passiveis de exportação. Donde e quando foram exportadas habitações ? E quantas ?

Desregulada a economia, passámos de um deficit de 700 mil casas em 1977 para um superavit d’outras 700 mil em 2016, mas estranhamente este desequilíbrio não afectou o mercado imobiliário, devia ter afectado mas inexplicavelmente não afectou, nem as rendas desceram nem o preço das casas caiu. Portugal mantém assim a sua velhíssima peculiaridade de estar blindado contra os altos e baixos do mercado, não é só a gasolina que sobe sempre e apesar do custo da matéria-prima baixar nos mercados internacionais.

E por falar em petróleo, gasolina, automóveis, direi também que a prática generalizada da opção pela compra de casas ao invés da criação dum verdadeiro mercado de arrendamento, naturalmente forçou os senhorios a optar por construir para vender. Dizia eu que essa opção pela compra minou duas coisas, a primeira foi retirar dinheiro dos bolsos dos casais recém-formados que dessa forma não puderam ajudar o desenvolvimento de outras industrias por falta de poder de compra, ganha-se para a casita, para o carrito, para comer e pouco mais, chapa ganha chapa gasta, a segunda foi a morte da mobilidade do operariado, que impede hoje que trabalhadores do sul, “amarrados” aos seus contratos de compra e venda, às suas casinhas, não possam deslocar-se livremente para o norte a fim de preencheram vagas de emprego ali surgidas e vice – versa. A menos que vendam a sua casita de um dia para o outro e com a riqueza e mais-valias efectuadas consigam passar férias em Bali, comprar um Ferrari, ou dois, e uma outra casita no lugar para onde irão… Só lirismos...

Entretanto a banca, engordada e endividada lá fora, com uma divida colossal amortizável a trinta anos, ao primeiro sinal de crise e de desemprego abarbata a casa aos desgraçados que ficaram sem ele, ele trabalho, inocentes a favor de quem ninguém na AR se ergueu a defender. Fizeram-no agora somente em relação às penhoras do fisco. Na democrática Holanda enquanto estiver desempregado o estado assume os encargos com o pagamento de rendas ou a prestação da casa e do carro, sim é solidariedade, por cá é o estado que lha tira e persegue o desgraçado com ameaças fiscais até muito depois de ter ficado sem a casinha se por acaso o IMI ficou por pagar. Ora a juventude, que não é parva de todo pura e simplesmente foge deste país de agiotas que contudo e tratando-se deles mesmos se abotoa, como vimos há dias na AR em relação ao financiamento dos partidos.


O que a maltinha não sabe é que para Salazar, o tal bandido das costas largas, a casa era sagrada, embora eu deva recordar aqui uma das máximas salazaristas, "a politica é para os politicos" dogma que automáticamente autorizava a PIDE a entrar a quaisquer horas na casa de quem não pertencesse ao bom povo trabalhador. Fora este nada despiciendo pormenor a casa, a habitação familiar, era lugar sagrado e quer inquilino ou comprador quer senhorio ou banco, tinham direitos e deveres que nenhum se atrevia a pôr em causa porque a casinha era mesmo sagrada, relembremos "Deus, Pátria, Familia" e nem a banca a tiraria, se não quisesse correr riscos não tivesse concedido crédito. Nem o banco nem as finanças dispunham de leis que lhes permitissem abrir mão dos desaforos e criar os dramas que esta democracia tem permitido, porém ai de quem incumprisse pois se havia direitos também havia obrigações, havia direitos sim, muitos mais direitos que hoje, e deveres, deveres, coisa que hoje ninguém parece saber que seja, nem querer saber. Hoje nem há deveres nem há vergonha, nem responsabilidade, nem competência, tema para um outro texto.

As imobiliárias prestam um serviço, são necessárias, não tantas quantas há mas são necessárias, quem venderia os milhares de imoveis que a banca financiou e tirou aos portugueses ? Quem promoveria a justiça e a injustiça ? Sim porque por trás de cada casa penhorada há um drama, e por cada casa vendida barata em leilões ao desbarato existe uma boa oportunidade de compra, ou um oportunista. Empobrecem-se uns para enriquecer outros. Quantos pobres são necessários para fazer um rico ? *

As imobiliárias são necessárias, intermedeiam, prestam um serviço, mas não esqueçam, não produzem um caralho, nem um tijolo, uma janela, uma porta, as Caldas da Rainha ao menos produzem-nos, e outra loiça, a AutoEuropa produz carros, as adegas vinhos, mas as imobiliárias mexem em dinheiro, de uns para outros, nada se cria, nada se acrescenta, nada produzem, apenas aproximam interessados em vender de interessados em comprar, são um elemento imprescindível e funcional do mercado, mas não façamos confusões, nem Sócrates o melhor comissionista da história conseguiria aguentar um país à base de comissões.

Vivemos num mundo de faz de conta, de ilusão, em que a banca, asfixiada com o crédito mal parado e as chamadas imparidades mais parece um presidente de câmara lançando comissões, derramas, taxas e taxinhas sobre tudo e sobre nada, quem casa quer casinha, mas parece-me que quem quer casar primeiro desanda daqui, emigra, vende a casinha se a tem, ou se ainda a tem ou nem chega a comprá-la, e que mal faz ? A banca agora nem é nossa já, nem nada é nosso já, não demora que nem precisemos de emigrar, seremos emigrantes e explorados na nossa própria terra e tudo isto deles, dos outros…

Vendem-se cada vez mais casas em Portugal, é bom, ou mau ? Cada um de vós que ajuize por si mesmo ...

* Frase atribuída a Mia Couto.

domingo, 24 de dezembro de 2017

WEST STREET IT'S MORE SOUTH ...

             

A esta distância é difícil recordar qual deles, o João Ruas ou o Celestino David levantou numa das aulas o problema da dúvida existencialista,* a verdade é que começava sentindo-lhe a mordida e se há coisas que me incomodam, garanto-vos, são as dúvidas, já que são bem piores que as certezas. Basta observar o comportamento de um qualquer cabrão, ou cabrona, por mor da igualdade de géneros.   


Quanto mais olhava mais me apercebia do variadíssimo, enormíssimo e riquíssimo arsenal bélico que a URSS e Cuba colocavam à disponibilidade de uma das partes, dando-me o caso mais razões para a vontade de afastamento sentida e que a consciência me ditava. Todavia tinha duas espinhas atravessadas na garganta, um contrato a cumprir até ao dia aprazado, e uma indiscutível lealdade para com os meus homens, os quais cegamente em mim confiavam, cegamente seguiam e cegamente cumpriam o que quer que lhes ordenasse. Essa lealdade e solidariedade eram indiscutíveis, eram inegociáveis, eram o baluarte moral e a base ética da nossa relação, da nossa coexistência. Eram irrevogáveis.

Aquilo era uma guerra, não era “o da Joana” porém as alianças a sul do equador eram estabelecidas tão depressa quão depressa eram quebradas e vogando ao sabor dos interesses do momento, deixando-nos pensando se estaríamos efectivamente combatendo pelo lado dos justos, pelo lado dos pobres, necessitados e oprimidos, pelo lado certo. Se um dos lados** tinha tudo de mão beijada por parte dos amigos e de quem colocava toda a riqueza ao serviço do internacionalismo proletário, uma outra parte corrompia a pureza ideológica da facção contrária*** ao colocar à sua disposição toda a riqueza que o apartheid consentia e no qual apostava.

Extremavam-se os campos e extremavam-se as dúvidas, e ali, no meio do mato, não havia lugar nem tempo para as lentas, arrastadas e plurais aulas de filosofia, ali o existencialismo consistia em mantermo-nos vivos, e claro, natural e preferencialmente actuar sem deixar lastro que pesasse na consciência, tal implicava acreditarmos fazê-lo pelo lado bom e cumprir escrupulosamente com os ditames da “Convenção de Genebra” num cenário em que era necessário ter tomates para o fazer. Nós fazíamo-lo, cumpríamos, mas até uma guerra por mais horrorosa que seja tem momentos hilariantes, ou caricatos, não irei invocar Sartre, nem Vergílio Ferreira, irei no fragor da guerra que cumpríamos chamar à colação o baixinho barrigudo de Torres Vedras.
                               
Era fim de tarde, a hora mais inapropriada para uma emboscada, estava-se ainda longe do lusco-fusco ou do escurecer que o sol-posto proporciona, caminháramos desde manhã, o Calaári há muito ficara para trás e a coluna serpenteava por entre a vegetação a qual ia paulatinamente ficando mais densa. Todos ouvimos nitidamente o matraquear de metralhadoras, todos nos atirámos automaticamente ao chão procurando manter uma formação em meia lua, dispersados seríamos um alvo difícil de abater e a formação escolhida permitiria contra atacar envolvendo ou cercando o foco ofensivo inimigo e abafá-lo fosse ele qual fosse. Irritei-me por não ter sido capaz de identificar claramente a proveniência do ataque, quanto a mim demasiado longínqua, demasiado distante para ser eficaz, um ataque sofrido pelo destacamento duas semanas antes ainda fazia sentir os seus efeitos e os tímpanos, ofendidos e doídos incapacitavam-me de localizar a origem do atacante e a sua verdadeira grandeza ou proximidade. Confiei nos meus homens e, como eles, mantive-me colado ao chão e de atalaia.


Dez longos minutos de feroz silêncio depois o banto Pende fez-me sinal para que olhasse por cima do capim, qual não foi o meu espanto quando, a cerca de cem metros vi, avançando na nossa direcção um individuo de cor branca, baixinho, arvorando um grande pau trazendo hasteado no cimo, um pano, uma bandeira branca. Caminhava hirto, lenta e cuidadosamente, gesticulando e falando alto. Eu e Pende entreolhámo-nos surpreendidos e, ante a visão dum branco desarmado, armado com um estendal daqueles, fiz sinal para que ninguém abrisse fogo, havia que deixá-lo aproximar-se, dar-lhe oportunidade de dizer ao que vinha e de, em simultâneo “matar” a nossa assanhada curiosidade.


Fugira de Angola dias antes da independência, tinha feito e sido de tudo, agricultor, revendedor, distribuidor, transportador, fugira com a família para a África do Sul e de momento era batedor e intérprete do SAA (South African Army, exército sul-africano), sabia quem eu era, não me conhecia mas havia quem conhecesse bem e desejasse falar comigo. Ri-me do que ouvi mas não pude deixar de abraçar o meu compatriota, embora tal fosse tarefa difícil dado a enorme barriga que o fazia ridículo e risível. Baixo, barrigudo, dois olhinhos muito juntos e muito vivos, loquaz, bom observador, tanto que cuidei de não permitir que viesse a saber de quantos homens se compunha a minha coluna, pelo que gritei para eles bem alto:

- Atenção ninguém se mostra, ninguém muda de posição, ninguém fala, ninguém descura a atenção !

e assim foi durante as quase duas horas em que trocámos impressões. Seria correcto, não o hostilizaria, não desrespeitaria o seu sinal de paz, de tréguas, a sua bandeira branca, mas não lhe permitiria informar quem o mandara de quantos éramos, qual a nossa força, que armamento carregávamos. Amigos amigos negócios à parte, o calado é o melhor e se o lado contrário, o SAA se dispunha a tanta consideração pela minha pessoa tal se deveria única e exclusivamente ao facto de não me terem ainda conseguido “calar”, cousa com que muito teriam a ganhar, portanto nunca fiando. Desde que a Africa do Sul apoiava a UNITA, opositora do MPLA e aliada da Swapo, a nossa actividade na zona passara a processar-se com muito maior dificuldade e sobretudo maior perigo. Evitar a UNITA e a sua aliada de conveniência, a Swapo, passara a ser uma preocupação constante, alianças e amizades sofriam de uma volatilidade assinalável nunca nos permitindo saber de certeza certa a disposição hoje dos amigos de ontem e como cautela e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém, mais valia prevenir e evitar que remediar…

Fixei-lhe os olhinhos juntinhos, pequeninos, sobre uma cara de bolacha torrada, uma vez mais não sustive o riso ao ver-lhe o peito medalhado, isto é a proeminência da barriga aparar-lhe-ia todo o pingo babado pelo que as nódoas eram mais que muitas sobre a camisa de caqui do uniforme que não envergava, o chapéu era um velho chapéu do exército bóer mas os calções, a contradizer, testemunhavam nitidamente uma moda nascida em Lisboa há bem mais de uma dúzia de anos, as bota mal amanhadas e as meias curtas na perna despida não auguravam nada bom quanto às mordeduras das cobras, um elemento caricato na caricata situação criada, contudo levei-o a sério. Tersilian House, Ridge Road, West Street, n.157, Durban, não fora o que dissera ?


Que me esperassem pois lá apareceria um dia. Apertei-lhe a mão, garanti-lhe que voltaria em paz, pedi-lhe que voltasse p’lo mesmo caminho e que o percorresse sem olhar para trás, fiquei vendo-o ir pensando de mim para mim que nunca mais veria tal personagem mas estava enganado, dei de caras com ele no Mercado Municipal de Torres Vedras há umas semanas, conseguira regressar e trazer toda a família, uma história com diamantes disfarçados em estreitos e compridos furos nas tábuas dos caixotes que carregavam os seus haveres, era e é um agricultor, bem sucedido.

A vida tem cada uma …


* Profs. de filosofia do meu antigo 7º ano.
** MPLA
*** UNITA





sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

483 - " PASSAJAR-MI "


" PASSAJAR-MI "
   
Abro a caixinha da costura,

procurando o ovo centenário,

foi da bisavó, da avó da mãezinha, e inda dura,

andou de cestinho em cestinho, vivendo solitário,

olho os veios da madeira velha,

como voltas de um novelo, veios como rugas,

ofensa ao materialismo, centelha,

lume, tradição, soltando chispas, faúlhas.

  

Enfio o ovo p’la meia a passajar,

de dedal, a linha enfiada já pela agulha,

pico-me, retraio-me a praguejar,

o sangue surgindo lento e a pingar,

penso rápido, e mais rápido vou buscar um penso,

remendo-me com calma e o pinga-pinga estanco.

 

Pensando se poderia passajar a alma,

a alma, as almas deste mundo denso,

onde pontifica o civilizado branco

prenhe de dividas, à terra, à natureza,

sonhando rumar a Marte em caravela,

quando para passajar este lhe falta destreza,

fugindo, levando os eleitos, os outros deixando à luz da vela

ficando e comendo-se uns aos outros,


até ao último, e aos poucos.
   
Humberto Baião - Évora, 19-12-2017