sábado, 2 de fevereiro de 2013

137 - E QUANTOS ANOS VÃO ? … By Luísa Baião *



Vi-o ontem mesmo. Acabadinho de chegar de Havana e ainda com aquela cor morena ensaboada que só Cuba impregna na pele. Aliás a efusão do encontro foi mais para meu marido, de quem é amigo, que eu saiba de tempos anteriores ao meu nascimento. Quantos anos já lá vão, parece-me que uma vida inteira.

 Não estava ébrio, não estavam para ser mais correcta, mas aquele ar bronzeado, o ar feliz e alegre de quem ainda teima em prolongar umas férias que adivinho maravilhosas, fizeram-me lembrar as noites calientes do Malecon, as cubanas e cubanos despidos de preconceitos, orgulhosos da sua cor, ébrios de vida, vidas vividas numa ilha paradisíaca.

 Naquela ilha, naquele passeio à beira-mar, caída a noite os nativos não escondem antes nos mostram porque é o beijo a parte mais importante de uma relação física entre dois seres. Porque é o beijo maravilhoso, como interage com o corpo do outro, umas vezes subrepticiamente outras podendo significar um mergulho no abismo da volúpia, quase uma viagem sem volta.

 Naquela ilha se aprende porque depois do amor, em nossos lábios pétalas de todos os matizes se agitam orvalhadas como brisa suspensa da delicadeza, por transitarmos em contramão pela fragilidade do outro. Quantos anos já lá vão, parece-me que uma vida inteira.

 Também ele esse recém-chegado meu amigo, amigo de meu marido, cheirava ainda à névoa do mar das Antilhas, mar que naquele passeio, no Malecon, nos salpica.

 Não será por acaso que Cuba é considerada a pérola do Caribe. Ali naquele passeio dei uma vez por mim completamente encharcada, após ter admirado religiosamente uma gigantesca pintura mural do “Che” deixando-se vislumbrar numa das antigas casas coloniais que embelezam a cidade. Quantos anos já lá vão, parece-me que uma vida inteira.

 Visitei cafés e ali provei do melhor, quase tão bom como o nosso Delta. Ali me deleitei com um charuto indígena que me enrolou os sentidos, sentidos que recuperaria numa instituição cubana que dá pelo nome de Cabaret Tropicana.

 E naquela ilha vi o mundo antes de mim, a época colonial espanhola, o Palácio do Governador, salvo erro e omissão agora o Museu de Arte Colonial, também vi o não menos célebre e polémico Museu da Revolução, carros de há cinquenta anos e um operário tomado de súbita emoção por ter constatado assombrado que tudo naquela mesa, garrafa, prato, facalhão, era ele quem fazia. Ele, um humilde operário, um operário em construção, como teria dito Vinícius de Moraes.

 Quantos anos já lá vão, parece-me que uma vida inteira. E claro, como não poderia ter deixado de ser visitei, visitámos na irreverência da idade La Bodeguita D’el Médio, sim essa a tal do Hemingway a quem igualmente erigiram um Museu. Resultado, uma ressaca só curada na Isla de la Juventud, a penitência auto imposta de atravessar acordada a Província de Pinar del Rio toda ela considerada património mundial pela Unesco, com final e recolhimento obrigatório no Convento de Stª Clara.

  Ali recuámos no tempo, visitámos a ilha do Papagaio, famosa por ter sido retiro e quartel-general de gente tão famosa como os piratas Francis Drake e Henry Morgan e, como se não bastasse tanta fama, ainda se diz ter sido essa ilha a inspiradora de Robert Louis Stevenson's em “ A Ilha do Tesouro”. Quantos anos já lá vão, parece-me que uma vida inteira.

 No regresso, navegámos não no mesmo mas num outro Granma, por Bayamo, Baracoa. E num Cadilac descapotável dos anos cinquenta cortejámos Trinidad e Santiago de Cuba.

 Após tanta agitação o regresso foi mais moderado, há lembranças que não podemos arriscar serem maculadas com palavras, lembranças que uma atenção aproximada demais poderia danificar. Depois das festas, depois dos passeios, instala-se-nos no íntimo, quase sempre, um silêncio de museu. 

Toleram-se apenas os ruídos mais profundos que o silêncio, nada de barulhos excessivos, nada que incomode o suficiente, nada que invada os mistérios de cada um, é proibido tocar o sagrado de cada uma, para não profanar, p’ra não quebrar, p’ra que a magia e os recuerdos durem por muitos e muitos séculos.

 Esse nosso amigo perceberá tudo isto antes de lhe ter passado o bronze. A vida não é um poema de domingo. 


By Maria Luísa Baião, redigido na ‎quinta-feira, ‎28‎ de ‎Julho‎ de ‎2005, e muito provavelmente publicado no Diário do Sul, coluna KOTA DE MULHER nos dias ou semana seguinte.