sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

407 - MARCELINO - PRESENÇAS E NOVIDADES

     
Tomei um banho e perfumei-me, até porque o velhote é segurança num hipermercado e já fica feliz com o meu cumprimento e sorriso, com um cheiro a lavado e um toque de perfume até vai ao céu. Arrumei a casa para estar limpa quando as meninas chegarem. Depois já sei que vai andar toda fodida. Gosto de arrumações e de asseio. Agora arranjar-me toda, bem produzida e perfumada e sair para um bar ver divorciados isso não... Foi coisa que não fiz, que nunca fiz, nem me mexeria para ir ver divorciados”. Isto ouvi eu na mesa atrás de mim enquanto de pé tomava a bica ao balcão. Queria apressar-me e ter tempo e vagar de admirar e ver uma expo que há muito me suscitava a curiosidade e que o dia de sol, convidativo, compelira a tirar a mota da garagem e a fim de fazer caretas ao estacionamento. 

Há cerca de quinze dias, mais precisamente no dia 15 de Dezembro, visitei na Biblioteca Pública de Évora e disso dei conta, uma desejada exposição do pintor Marcelino Bravo, artista e pessoa que em casa apreciamos e admiramos, sobretudo a sua particular visão do Alentejo e temáticas afins, cousa que este eborense magistralmente reproduz com traços e cores peculiares e inconfundíveis. *

Mas deparei com um Marcelino Bravo fora dos carris** quero dizer descarrilando dos temas a que eu estava habituado e esperava ir encontrar, quer dizer, eu vou explicar. Digamos que metade da instalação era ocupada por temas normais, habituais nele, Alentejo & Cª, o busílis é que a metade restante apresentava telas inovadoras, diferentes, sem título nem tema, aleatórias, de uma corrente anormal ou inusual nele o que me confundiu.

Nem sei se ele conhece os novos caminhos que está a trilhar, pensando bem, retiro o que disse, claro que conhecerá e saberá o que está a fazer, eu é que o não sei, nem lhe conheço os planos, nem tão pouco estou por dentro da sua mente e digo mente porque os novos quadros apresentados são uma coisa da psico, um abstraccionismo psicadélico que esteve em moda há umas boas décadas e geralmente fruto de mentes provocadas, excitadas, estados mentais alterados, coisa que não me pareça ser o caso do nosso amigo Marcelino Bravo. Ele lá saberá das suas razões, e eu confio num eborense que toda a vida conheci ponderado e circunspecto, todavia só agora me pronuncio por ter primeiro querido averiguar a fundo essa coisa dos abstraccionismos, em especial o psicadélico, e que para ser franco eu tinha muito enterrado ou esquecido na memória. 

É que a arte abstracta por sua vez e para complicar ainda se divide em três tendências, o vulgar abstraccionismo, há quem o designe por corrente lírica, expressiva ou informal (Fig 1) e do qual para melhor vos situardes darei os exemplos de Kandinsky, Matisse, Francis Bacon (o artista), Paul Klee, Antón Lamazares, Requena Nozal, Pablo Picasso, Almada Negreiros, Júlio Pomar, Amadeo Souza Cardoso, José da Fonseca, Sandra Bravo e alguns outros mais. Mas deveremos invocar igualmente a corrente mais facilmente identificável do abstraccionismo, a geométrica, (Fig 2) cujo nome diz tudo, corrente de que poderíamos apresentar como representantes, Mondrian, Victor Vasarely, Julio Pomar, Maria Keil, Manuel Gargaleiro, José da Fonseca e Sandra Bravo. Para finalmente chegarmos ao tão, não diria contestado mas inusitado abstraccionismo psicadélico (Fig 3) retratado nas novas telas de Marcelino Bravo e cujos embaixadores chamo aqui, Alex Grey, Pouyan Khosravi, Keerych Luminokaya, Cameron Gray, Michael Garfield, Randal Roberts, Larry Carlson, Android Jones, Jonathan Solter, Matei Apostolescu, José da Fonseca e Sandra Bravo.****

Não esqueçamos jamais que o objectivo desta última corrente, a psicadélica, é caracterizado pela nossa percepção nela de aspectos desconhecidos, inusitados e duma criatividade que poderíamos considerar sem regras ou limites. Estudiosos têm demonstrado que o uso de drogas psicotrópicas expande os limites da mente, limites cujas expressões nos são dadas por essas experiências (alguns chamam-lhes alucinações), que provocarão mudanças de percepção, sinestesia (sentir várias sensações em simultâneo) experiências cujos estados nos darão a pintura psicadélica. Decididamente e a menos que Marcelino Bravo ande a abusar das pastilhas para a tensão arterial não me consta, nem acredito que seja o uso ou abuso de drogas a origem do seu desvio ou desvario (sem sentido pejorativo).

É que isto da arte tem muito que se lhe diga, Van Gogh não cortou uma orelha? Outros não fizeram melhores ou piores figuras ?  Talvez tenham reparado ter eu ali atrás alguns nomes repetidos, não foi erro nem engano, é que raramente um pintor, ainda que exímio numa tendência, não tentou por desfastio, motivos económicos ou capricho meter uma perninha numa outra qualquer corrente ou tendência… há milhares de casos desses, daí que Marcelino Bravo tenha todo o direito de fazer uma incursão fora do seu habitat natural.*** Na realidade eu fui lá há quinze dias e, chocado como fiquei, decididamente não estava preparado, reneguei as novas telas, a que nem dei atenção e nem sequer fotografei, tendo preferido deliciar-me com as restantes. Contudo a consciência levou-me a reconsiderar e anteontem, dia 28, voltei lá para as olhar com atenção a essas novas telas e temas, nova corrente e tendência, e devo dizer que felizmente essas mesmas telas denunciam desde logo o autor, pois continua a observar-se o mesmo cuidado exímio na pintura, mantem-se inegavelmente o mesmo traço, é inequivocamente o mesmo ambiente e decididamente M.B. socorreu-se das mesmas cores a que nos habituara sem fugir um milímetro da sua matriz habitual. Contudo, a haver heresia, e quanto a mim houve, circunscreveu-a à temática de cada tela e aí confesso a minha inabilidade, incapacidade e sobretudo falta de autoridade para sobre essas manifestações altamente subjectivas me pronunciar.

Para mim nada como o velhinho dois e dois são quatro e a arte abstracta ou abstraccionismo é entendida como um modo que não representa objectos próprios da realidade concreta, como uma flor, um pássaro ou uma paisagem, mas ao invés disso compõe com traços e cores uma realidade que faz surgir a partir das experiências estéticas vividas. Também há quem a designe por arte moderna em oposição aos movimentos anteriormente vividos na pintura, dou o exemplo de oposição ao impressionismo inicial ou primitivo e às amorfas naturezas mortas. No inicio do século XX, escolas como o cubismo e o futurismo mais não foram que perseguições duma abstracção absoluta e buscaram sintetizar os elementos da realidade natural, transmutando-a em obras que estilizavam e projectavam a ideia e o conceito do mundo concreto fugindo à mera imitação desse mesmo "concreto observado".

Porém quanto ao psicadélico por onde M.B. enveredou dizem os entendidos serem os aspectos artísticos projecções de mentes (afectadas ou não) e na bibliografia especializada expressões como arte psicadélica ou lisérgica (oriunda de alucinações, como por exemplo ver ou criar na mente algo irreal, como um elefante cor de rosa com pintinhas) referem-se em concreto ao movimento hippie de contracultura dos anos sessenta e ao recurso a drogas psicotrópicas (entre as quais o LSD estava então muito em voga) capazes de alterar os estados de consciência. Ou isso ou uma psicose ou transe originado por êxtase religioso, ora simplesmente não acredito em nada disso, nem tão pouco que M.B. ande a sonhar ou abusando das pastilhas Rennie. Entrou numa de experimentalismo foi o que foi, com todo o direito de o fazer e quem não gostar que meta na borda do prato.  E já agora Bom Ano Novo a todos nós. 













   

Fig 1 Abstracionismo informal, Henri Matisse , fim de dança
Fig 2 Abstraccionismo geométrico, Piet Mondrian, rectângulos
Fig 3 Abstraccionismo psicadélico, Alex Grey, cabeça luminosa












Para que melhor me possais entender deixo-vos algumas telas de M.B. e testemunho do seu peculiar estilo, em cima telas estilo antigo e em simultâneo e em baixo exemplares da nova tendência, a fim de que possais avaliar e comparar a diferença a que aludi e me chocou.
**** Por três vezes aludi aos artistas Sandra Bravo e José da Fonseca, eu explico, em primeiro lugar não existir parentesco algum entre eles e M.B. em segundo lugar tratar-se de jovens artistas eborenses a quem a dimensão do meio em que orbitam e do universo de apreciadores que os rodeiam  jamais lhes possibilitar atingir a dimensão que as suas potencialidades deixam antever, o que lamento. Recomendar-lhes-ia uma mudança temporária para um dos bairros de Paris a fim de ganharem o prestigio que jamais alcançarão cá dentro (santos da casa não fazem milagres como todos sabemos), poderiam optar entre Montmartre, Ile de France, Marais, ou Saint-Germain-des-Prés, nem precisariam de muito tempo, duas ou três décadas seriam mais que suficientes.  






segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

406 - O QUE É O CAPITAL ? * ....................................


Diariamente zumbem-me aos ouvidos as novas, novas de novidades, sejam elas boas ou más, sobre o populismo e o avanço da extrema-direita, o avanço do capitalismo, do capital como diz o Honório, ou dizem quaisquer outros e, mor das vezes olho os meus interlocutores e interrogo-me sobre quanto entenderão eles de capital, do capital, e se saberão mesmo o que seja isso do Das Kapital, a sua génese, a sua etimologia, a sua história. A origem da palavra remonta ao latim caput (cabeça). Nos primórdios o adjetivo capitalis designava "o que está acima dos outros, o principal, o dominante" Como ainda hoje observamos ao afirmarmos ser algo de capital importância, ou quando falamos nos sete pecados capitais, e quando chamamos capital à cidade em que fica a sede do governo. Do Classicismo ao Feudalismo passando pelo Renascimento e até aos nossos dias a palavra nunca perdeu o seu significado semântico, antes o ganhou ou enriqueceu  sendo por isso importante sabermos o que significa capital e capitalismo.

Porque esta coisa do capital, do capitalismo e do capitalista não provoca unicamente turbulência na minha mesa do café, desde o homem das cavernas, do homem pré-histórico aos nossos nebulosos dias o conceito tem navegado de modo truculento, turbulento, e a sua evolução tem-se processado de modo assaz complexo, contudo em contrapartida é hoje um conceito claro para toda a gente muito embora nada pacifico e de síntese pouco consensual por pouco conhecida e demasiado recusada ou ignorada.

Digamos que a palavra ou concepção andou de boca em boca sempre conotativamente ligada a situações de poder, de capacidade, de privilégio, permitindo ascensão ou elevada posição e inerentes benefícios. Deste modo a função exercida assentava sobre situação de capital importância no meio, ou na sociedade em que se movimentasse, conferindo a quem dela fruísse dividendos, benefícios, ascendência, vantagens ou favores tal qual hoje uma pessoa ou empresa se detiver capital ou a maioria do capital ou mesmo somente um capital considerável, uma posição, uma quota em determinado património, financeiro, imobiliário, ou qualquer outro meramente físico. (hoje tb é reconhecido e atribuído valor à propriedade intelectual).
O sortudo de posse duma cota destas poderá capitalizar um capital de esperança considerável, pôr e dispor, dar ordens, fazer-se obedecer, investir, empreender, ordenar, fazer. Assim ascenderam a posições elevadas D. Afonso Henriques por exemplo, que teve um papel capital na fundação do reino de Portugal cuja primeira capital como sabemos foi a cidade de Guimarães, por ser dali que emanavam as ordens, por ali estar sedeado o poder, o passado, o presente e o futuro. Devido a isso muito antes de haver dinheiro muitas cidades adquiriram um estatuto de capital importância histórica, acontecendo que mais tarde se tornaram capitais de reinos ou de nações, tendo-se algumas transformado em capitais de zonas económicas como por exemplo a City de Londres, cumulativamente capital do Reino Unido, da Grande Bretanha e de Inglaterra.

Interessa sobretudo relevar o facto de a palavra capital ter igualmente percorrido ao longo dos séculos um caminho ligado ao poder, religioso, politico, militar e económico, o que acontece desde os tempos remotos da caça e recolecção, das trocas directas e da rota da seda, do nomadismo, tendo ganho força com o sedentarismo e o aparecimento da escrita, a evolução do conhecimento, o desenvolvimento da cultura, o aparecimento da moeda, de tal modo que antes dela, moeda, já existia todavia quem beneficiasse de um capital de crédito, isto é alguém em cuja palavra se podia acreditar. Esta confiança ou crédito eram honras obtidas em redes de organizações civis pela confiança compartilhada entre as pessoas, era fruto de sua própria interacção social, do seu comportamento e atitudes. Assim por exemplo nasceu na história a história de D. Egas Moniz (de Riba Douro), de cognome o Aio (1080-1146) ** Atitude nobre a deste Egas Moniz, por ser a verdade uma particularidade hoje em dia muito depreciada, dado que os nossos políticos como sabeis dizem uma coisa num dia outra no outro, afirmando uma coisa e simultaneamente o seu contrário, desbaratando irremediavelmente algum capital de crédito de que porventura alguma vez tivessem beneficiado, ponto de honra capital a que não dão o menor valor mas que D. Egas defendeu e garantiu, como deveis saber, com o pescoço. Continua porém cousa de importância capital nos nossos dias.

É portanto capital que honra, virtude, verdade, mérito, responsabilidade e competência voltem à nossa ideia e práxis políticas ou estaremos mais condenados que réu forçado a submeter-se à pena capital. Temos portanto que lançar mão do capital de honra e do sonante, do cabedal, da narda, sendo primordial e de capital importância para o nosso desempenho e vivência, sobretudo se se pretende ou sendo-se líder, ou empreendedor, já que paulatinamente e ao longo de séculos, senão milénios, quem passou a liderar pessoas e moeda, investimentos, foi a vanguarda que dispusesse destes meios e que concomitantemente passou a ser designada por capitalista pois reunia massa crítica e fazia uso e aplicação quer do capital pessoal quer do capital possuído e desta forma se foi forjando o método que, sobretudo a globalização iniciada com as descobertas portuguesas no séc. XV tornou modo, regime, sistema, sistema que especialmente nos últimos séculos se disseminou ou espraiou global e generalizadamente por todo o mundo.

Podemos perguntar-nos sobre ou acerca desta difusão generalizada e quase monopolista que a história nos responderá; não aconteceu por milagre, aliás aconteceu ao serem espalhados p’lo mundo os vícios e os defeitos, e já agora para sermos coerentes e sinceros também as qualidades do próprio ser humano que o tinha gizado a ele, sistema capitalista, capital global, assente no capital, sonante, de poder, de pressão, de repressão, de medo, de violência, de vantagens e desvantagens, por elites, por vanguardas, quantas vezes bem-apessoadas de “cabedais” mas mal preparadas cultural e formalmente. No fundo o sistema limitou-se a acompanhar e reflectir o próprio homem, daí também a universalidade da sua aceitação, da preferência que lhe foi concedida e a facilidade de difusão verificada.

O homem é egoísta, o sistema também, o homem é avaro, o sistema também, o homem é ambicioso, sonhador, dominador, o sistema permite-lhe sonhar, o homem é um carrasco, o sistema pode sê-lo, o homem é um predador ? o sistema bem no-lo mostra e demonstra, o homem é perdulário, samaritano, ambicioso, caridoso, filantropo, o sistema também, no fundo o “homem” carrega uma série de peculiaridades que a mole humana assimilou como caracter, como personalidade, e entre os exemplos dessas peculiaridades encontramos a bondade e a nobreza mas também a cobiça, a soberba, a preguiça, o altruísmo, a cegueira, a estupidez, a perfídia, a prepotência e a avidez. No cristianismo, os pecados capitais são aqueles que são o princípio (a cabeça) de outros, sendo eles a luxúria, a gula, a preguiça, a avareza, a ira, a inveja e a vaidade. Aceitarão que se puxasse pela cabeça certamente arranjaria mais uma ou duas dúzias de adjectivos deste jaez.
        E não há nem houve outros sistemas ? Claro que houve, há e haverá sistemas diferentes, opostos, antagónicos, contudo o capitalismo foi-se sobrepondo naturalmente a uns e tem conseguido sobreviver a outros. O próprio capitalismo não é todo ele igual, tem nuances, vertentes, pode ser social democrata, social cristão, apelidar-se de socialismo democrático, soluções que vingaram sobretudo no norte e centro da Europa e na américa do norte e algumas delas muito invejadas, ou ser um regime democrático musculado, autoritário eficiente e rico como em Singapura, ou disfuncional, pobre e desigual como em Portugal. Como oposição pudémos observar a URSS, uma experiência de comunismo ou socialismo duro falhada e que degenerou no capitalismo selvagem que agora grassa, temos ainda o exemplo de Cuba e de outra economia centralizada, da Coreia do Norte, do Vietnam, de mais dois ou três sem grande significado como poderá ser a Argélia, Angola, a Venezuela, sistemas que não parecem vir a perpetuar-se ou a agradar a uma maioria. Propositadamente deixei para o fim a China comunista a qual para não soçobrar como a sua congénere URSS, abraçou o capitalismo dando origem à expressão “um país dois sistemas”, direcção centralizada de cariz comunista, beneficiando simultãneamente das vantagens do centralismo na planificação e das inerentes ao funcionamento duma economia nitidamente capitalista.
     Basta que nos lembremos nem tão pouco a democracia clássica grega ter considerado cidadãos os escravos para imaginarmos a elasticidade ou plasticidade do conceito de democracia… Karl Marx na sua teoria, a chamada doutrina marxista, explica como o investimento capitalista na força de trabalho resulta na apropriação da mais-valia desse trabalho. “O Capital” (“Das Kapital”, em alemão) o livro de Karl Marx, pormenoriza todo o modo de apropriação usado no sistema capitalista. Infelizmente Marx é pouco lido entre nós, mesmo entre as pessoas ditas de esquerda que aliás na sua grande maioria desconhecem ser esta obra, dedicada à crítica da economia política, a primeira de uma trilogia do marxismo de que Marx só conseguiu acabar o primeiro volume enquanto vivo. Os dois outros volumes foram posteriormente editados pelo colaborador e amigo Friedrich Engels.

Significa tudo isto ser o capitalismo o melhor sistema ? Não foi isso que disse ou pretendi. Deixarei para vossa apreciação, ao sabor do vosso desejo. Essa escolha ficará à vontade de cada um dos leitores. Limitei-me a aflorar coloquial e historicamente alguns factos que a história regista e são verdadeiros. A expansão generalizada e global do capitalismo é uma realidade, como a escravatura o foi, como a exploração do homem pelo homem o é e foi desde os tempos mais remotos e pré-históricos aos nossos dias quaisquer que sejam os regimes que vigorem ou vigorassem. A avidez é inerente ao homem, os excessos por ela e por ele provocados que a história regista são igual e lamentavelmente uma triste realidade. 


* O Capital - Tomo I - Karl Marx, 364 páginas, Edições  Avante, Lisboa 1990.

* O capital no século XXI, Thomas Piketty, 912 Páginas Edição Temas e Debates, Lisboa 2014.




terça-feira, 13 de dezembro de 2016

405 - SINES – CAIA em segunda classe ida e volta sff


Reza a nossa história que, quando Dom João II subiu ao trono, cerca de 1481, se ter queixado de seu pai pois este só lhe deixara as estradas do reino, as estradas de Portugal. De um modo exagerado terá dito que praticamente todo o país estava nas mãos das classes nobres, de um modo actual diremos até as estradas estarem nas mãos de parcerias público-privadas, isto é nas mãos da pouco nobre banca. Dom João II tudo fez para tornar mais forte e incontestada a sua autoridade de rei, nós por cá aguentamos como muito bem profetizou há anos Fernando Ulrich.

Actualmente vai por aí grande alarido nos jornais em especial nos alentejanos, relatando a previsão do governo, não passa ainda de uma previsão mas o berreiro é tamanho que mais parece o anúncio da inauguração da obra, gritaria relacionada com a intenção, repito para os mais distraídos, a intenção de avançar com a construção da ligação ferroviária entre o porto de Sines e Caia na fronteira espanhola, perto de Elvas.

Segundo o ministro respectivo, que nem sei quem seja pois desabituei-me de perder tempo com eles; -“este projecto irá dar competitividade ao porto de Sines “. O que o ministro não diz, e os jornais não perguntam nem alardeiam nem esclarecem, é que o porto de Sines já não é nosso, aliás já pouca coisa o será, há muitos anos que um grande operador de contentores de Singapura, uma empresa de dimensão mundial tomou conta do dito cujo.

O itinerário deste percurso será, mais uma vez tiro as palavras da boca do ministro; -“de importância estratégica para Portugal, pois potencia o tráfego e blá blá blá rebéubéu pardais ao ninho” pois é ouvir todas as Tvs e as rádios ou ler os jornais que todos papagueiam a mesma ladainha e não vos vou massar ou maçar ou massacrar com a lengalenga do novo. * Nem sei até que ponto a teimosia na construção do contestadíssimo terminal de contentores do Barreiro tem que ver com a perda de Sines mas vou estar atento.

O que o ministro não disse, nem a comunicação social em geral, é que há alguns anos, quando da assinatura do contrato de concessão Portugal se comprometera a realizar essa ligação ferroviária dentro de um prazo curto, e definido, prazo esse que se fez velho e foi sucessiva e progressivamente adiado e ultrapassado. Contudo, todavia mas porém, os singapuros, cujos olhos estavam a ficar redondos de nada verem de promessas cumpridas, assentaram os pés na parede e prepararam-se para coice duro, que é como quem diz ameaçaram levar Portugal aos tribunais internacionais competentes e exigir deste exaurido país uma indemnização compensatória de perdas e danos na ordem dos triliões, o que finalmente fez acordar o governo de serviço que outro remédio não teve que ajoelhar-se e ir ao castigo.

 Agora prometem-nos tudo e mais alguma coisa, especialmente potencialidades, mas também plataformas, melhoria de capacidades, competitividade internacional, alargamento da influência do Alentejo, vantagens das acessibilidades internacionais, organização em rede, corredores azuis, lógicas de articulação e complementaridade, logística big super plus, economias e eficiências de escala e conjugadas ou o contrário… Aldrabões, não passam de uns aldrabões e vendedores de banha da cobra a quem os singapuros finalmente meteram na ordem e a quem chegou repentinamente a pressa, como quem abala de calças na mão e, na aflição para não se esborretearem todos traçam linhas a torto e a direito, por cima de Évora e tudo que o progresso vem aí ao virar da esquina e não se pode pará-lo nem perdê-lo muito menos encalhar em pequenos pormenores ou ligeiras minudências.

Recordo-vos que o projecto data de 2003 e fora acordado na XIX Cimeira Ibérica da Figueira da Foz, tendo sido reafirmado nas subsequentes cimeiras mas nunca levado a sério e muito menos cumprido, embora fizesse parte do “Eixo Prioritário Nº 16, Sines, Algeciras, Madrid, Paris” eixo primordial da Rede Transeuropeia de Transportes do Corredor Atlântico. O escarcéu levantando em relação ao que vai agora ser finalmente cumprido não é uma ideia nova, é aliás bem velha e o planeado vai finalmente cumprir-se visto termos levado um valente chuto no cu, não tivesse sido assim e teria ficado para as calendas como ficou e vai ficar por muitos anos o celebérrimo TGV.

É óbvia a falta de transparência com que tudo é feito e tratado na nossa peculiar democracia, democracia onde tudo corre mal e os ricos ficam cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres, onde os governantes clamam por imigrantes e emigrantes como clamam por mais nascimentos quando afinal se deve à sua proverbial estupidez o simples e visível facto de passados quarenta anos estamos literalmente pior que à data do bambúrrio do 25 de Abril. A prova disso é que de superavit passámos a dever muito, devemos demais, temos menos vergonha e mais burlas, menos futuro mas mais indiferença, menos moral e mais egoísmo, menos ética e mais ignorância, menos dinheiro e mais pobreza, menos PIB e mais miséria, menos emprego e mais arbitrariedade, menos esperança mais prepotência, menos riqueza e mais oportunismo, menos gente mas mais estupidez, menos oportunidades e mais oportunistas, menos empresas estatais mas mais corrupção, menos lucros e mais roubos, menos país e menos dignidade, mais divida e mais desigualdade.

Decididamente esta democracia não só está a matar-nos como nos fica caríssima e, quer o aceitemos quer não, é um dos grandes fiascos das gentes portuguesas, um bluff, um engano, um falhanço espectacular, um caso grave de incompetência e irresponsabilidade, uma autêntica mistificação, vivemos numa simultãneamente completa ausência e necessidade de equidade, será caso para perguntar se o fascista seria mesmo o outro… 





domingo, 11 de dezembro de 2016

404 - ESTENDIDA AO COMPRIDO * by Luísa Baião


               O meu filho tem dois cães muito meigos muito giros que, volta não volta me pede para acolher, como de netos se tratasse e sempre que o momento o impeça de os levar com ele. Como adoro os ditos cujos e a coisa vem a desejo, nada me importo com isso, mau grado o tamanho dos mesmos, assim para burro, mas um enlevo.

Calhou-me em sorte guardá-los no dia em que vim de férias e pelo fresco da noite saí com o meu marido, cada um com um p’la trela, ele c’o cão, eu c’a cadela. Como a noite estava fresca pisámos o jardim das canas e à boleia de lérias trocadas com alguns amigos rumámos à praça grande na mira das esplanadas. Entretida na conversa não me apercebi a tempo que o meu marido chamava e que a cadela, apressada, resolveu logo acudir. Dá-me tal puxão na trela, qual locomotiva em marcha, que me estatelou no chão onde sem eu saber como acabei por me ver estendida e, como devem calcular, c’a dignidade ofendida.

Embora tal não me alivie não fui nesse dia a única a ver-me estendida ao comprido, assim jazia também o CIEA, Centro de Inovação Empresarial do Alentejo. Nessa mesmíssima tarde e ao pôr em dia a escrita quanto à leitura de jornais reparei que, sem quaisquer propósitos, publicara o Diário do Sul a quinze do corrente, páginas centrais, 16 e 17, três notícias que o acaso alinhou e me levaram a esta singela conclusão acerca da qual vos convido a dedicar cinco minutos de meditação sobre o nosso fatalismo e o tempo que entenderem de requiem por todas nós, alentejanas e eborenses.

Numa dessas notícias afirma-se que mais de 50.000 empresas portuguesas se encontram neste momento em risco de falência, vinte por cento do total nacional, reportando ao mais recente inquérito promovido pela AIP. Outra, em caixa, colocava a nu o facto de a distribuição total do rendimento em Portugal ser a que apresenta maior disparidade entre os países membros da CEE, o que faz de nós os campeões da desigualdade, com os portugueses mais ricos a ganhar quinze, quinze vezes mais que os compatriotas mais pobres !

A última, bem, a última era a que nos dizia directamente respeito pois se tratava de uma convocatória do CIEA para a realização de uma Assembleia Geral Extraordinária, com um único e curioso ponto na ordem de trabalho; “a dissolução”, pura e simples, assim sem mais nem menos, a frio, de tal modo que apesar do calor que se tem feito sentir, estremeci com um arrepio.

Lembro-me ainda quando o mesmo Diário do Sul, há uns anos, publicitou a constituição desta instituição que julguei, como os seus estatutos então divulgaram, ser a chave, o motor, a alavanca sinergética do que nos faltava e infelizmente continua a faltar. Esperei que dessa vez fosse de vez e que em harmonia com outras instituições de que a cidade se orgulha, como a SODERA, o NERE, a UNESUL, a Associação Comercial do Distrito de Évora, o ODA, Observatório do Desenvolvimento do Alentejo, (se esqueci algumas, que me desculpem o lapso), a coisa fosse mexer, andar, que é como quem diz, desenvolver-se, assumir, como os estudiosos gostam de afirmar; “massa crítica” que permitisse quebrar a “inércia” detectada, a diagnosticada aversão ao risco, a ausência de espirito empreendedor. Enfim, tive esperanças que dessa vez estivessem completos os ingredientes necessários ao tão prognosticado caldo de cultura empresarial de que Évora carecia, e carece.

Temi então que os meus desejos não passassem de boas intenções, sabido como tudo se move tão lentamente por aqui e acreditei que dessa vez seria a vez de Évora, podem pois acreditar quanto lamento e desilusão  essa convocatória me provocou. Embora não faça parte do número de associados do CIEA, como eborense desejo fazer saber e sentir quanto lamento o desmembramento deste Centro de Inovação e de estudos, cujo trabalho não consegui acompanhar mas que a exemplo das outras instituições acredito ter sido esmerado e particularmente profícuo.

Não é justo que se iludam os eborenses, que não lhes sejam dadas condições para o seu próprio desenvolvimento, que se lhes tolham os meios de assumpção da sua realização. Este não é mais que um triste exemplo de como as boas intenções não faltam, nem chegam...

Se a minha vontade esmorecesse a cada contrariedade, há muito não estaria viva, por um lado, ou os projectos que abracei teriam atrofiado, por outro. È preciso teimar e querer... para vencer.


* Escrito por Luísa Baião numa quarta-feira, ‎23‎ de ‎Julho‎ de ‎2003, ‏‎pelas 13:35h e publicado por esses dias na coluna Kota de Mulher, Diário do Sul, Évora.



quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

403 - A BIZINHA DA BIZINHA POETINHA * ...........


Caíam as seis da tarde neste Dezembro frio quando entrei no Café Sportif para atestar e me aquecer c’uma bica antes de rumar a casa. Um tipo que eu nunca vira, simpático aliás, vendo-me entrar bafejando e esfregando as mãos cedeu-me o espaço dele junto ao balcão apinhado e:

- Faz favor amigo, à vontade, parece que vem com frio, já agora sabe dizer-me se a sua vizinha está melhor ?

- A minha vizinha ? Qual delas ? Tenho algumas dez ! Respondi eu.

- A poeta - disse-me ele um tanto ou quanto indiscreto, surpreendido com a cara de curioso que lhe mostrei.

- Por acaso é editor dela ? Ou espera entrevistá-la ? Para ser franco nem a sabia doente...

- Sou amigo, e estou em cuidados, o senhor já reparou que o carro dela não sai do mesmo lugar vai para mais de dois dias ?

- É amigo ? Peço desculpa, é que nunca o vi por estas bandas, a minha vizinha tem um furo no carro homem, se você espreitar a roda do lado do passeio verá que está vaziíssima. Apareça lá com um macaco que ela agradecer-lhe-á, digo-lhe isto porque tenho evitado sair pela garagem não vá ela aparecer-me à frente em robe chinês e com uma chave de rodas na mão.

Emborquei a bica quando acabei de falar mas ao pousá-la já o não vi, saiu cedo, com um frio destes, onde iria ?

Gosto do café Sportif, de vez em quando e ao fim da tarde costumo passar por lá e confessar-me, em especial nos dias frios, tem uma óptima garrafeira de aguardentes velhas e visquis. Nesse dia entrei e pedi a bica como normalmente, mas quando pedi a queijada habitual o Sr. Paulino muito solícito e de missal na mão disse-me não não. Olhei-o surpreendido.

- O cafezinho tá pago por uma menina prendada mas o bolinho não senhor Baião.

- Qual prenda amigo Paulino ?

- Não é prenda é prendada amigo Baião, refiro-me concretamente àquela fulana que costuma aqui vir com beltrana e o cumprimentam sempre efusivamente não se recorda amigo Baião ? Da última vez que aqui estiveram vinham com a tal sicrana em que a gente, enfim percebe-me, até lhe deixaram dois livrinhos de poesia que a semana passada lhe devolvi.

Bem, resumindo a história, lá tive que pagar a trampa da queijada, nem são muito boas sequer... Há horas em que a gente por causa de um bolinho perde a fé nas pessoas.

Conquanto perante o senhor Paulino mostrei-me surpreendido mas agradado. Costumo frequentar o Café Sportif, não sou habitué mas passo por lá de vez em quando, é agradável, fica perto de casa, o senhor Paulino é uma simpatia, ele e a esposa, e as casas de banho têm um chão que se pode lamber. Pena a televisão sempre tão alta e o senhor Paulino ultrapassar as barreiras do bom conversador e espetar-nos uma seca mal nos descuidemos, quem sabe se por ser licenciado em direito, talvez seja por isso, o que sei é que transforma o mais pequeno assunto num processo cível e depois, sendo a justiça lenta o assunto naturalmente arrasta-se… Tem dois ou três gatinhos que ronronam por ali e já me conhecem, gosto deles e eles gostam de mim, mal me vêem ocupam uma cadeira na minha mesa, talvez por eu cheirar a gatas, mais concretamente à minha Mimi que só falta mijar-me em cima para marcar a sua posse, o dono é dela e acabou-se.

No entretanto falamos, quer dizer desconversamos, ou tergiversamos, porque eu e o senhor Paulino estamos bem é embirrando, pelo que lhe atirei:

- Pois é amigo Paulino, se a nossa dívida começar a ser paga nem pedrinhas os portugueses vão ter para comer...

- Ó amigo Baião primeiro há que sair do euro, pelo menos é o que ouço dizer aí na televisão.

- Sair do euro amigo Paulino ? Então e passamos ao escudo de novo ? E fazemos a operação contrária e a divida será de imediato multiplicada por 200,482 não era esta a cotação quando aderimos à moeda única ?  Estamos metidos numa camisa de onze varas amigo Paulino, os nossos políticos não souberam erguer esta democracia, as nossas elites não conseguiram fazer-se respeitar nem respeitaram o Zé povinho, nem sequer souberam fazer a pedagogia desta democracia, só souberam fazer trampa... Estamos a empobrecer alegremente e vamos todos a caminho da miséria generalizada, há cada vez mais ricos e cada vez mais pobres, é a desigualdade generalizada quando afinal não é preciso não é forçoso que alguns vivam pior para que todos vivam decentemente... Bastava organização... Organização social... Funcionou na Europa durante mais de 50 anos... E agora admiram-se por se levantarem os nacionalismos claro !

- Pois é amigo Baião, lá porque a esquerda claudica o povo não deixa de exigir visão e liderança, neste momento a nossa pobreza de liderança é tanta que até eu votaria em Salazar mas isso já você sabe naturalmente, ou já sabe ou já intuiu... E digo-lhe mais, olhando a espuma dos dias passados, da semana que passou que acabou, em que Fidel e Salazar foram colocados em dois extremos opostos mas ninguém se lembra que um atrasou o país, a ilha, 50 anos, enquanto o outro o desenvolveu 40 anos, ninguém parece lembrar que um foi-se abaixo com a turbulência dos dias da guerra fria e o outro aproveitou as vagas desse mesmo mundo para subir mais alto, um quebrou e cedeu ante o bloqueio e não foi capaz de usar a diplomacia mas que o outro fez da diplomacia uma arte e fez-se vingar na maioria dos casos em que se meteu, como me pareceu aberrante um ter prendido e matado milhares enquanto o outro nem uma milésima dessa parte mandou “arrecadar ou apagar” sendo caricato que o primeiro tenha sido considerado um herói e o outro um fascista desprezível, é caso para dizer estar a vida pejada de arbitrariedades...

- Não deixa de lhe assistir a razão amigo Paulino mas este povo cega-se a ele mesmo enfiando os dedos nos olhos... tivéssemos nós uma direita inteligente, actual e culta e outro galo cantaria, até a esquerda seria outra... 

- Boa tarde apesar do tempo !

 - Olá boa tarde, que tem o tempo amiga ? Se é para pesar o tempo vais precisar de um bom barómetro amiga.

- Já o apesei, está muito apesado para o meu gosto.

- Olha,  tens um bom remédio, mete a mão na balança...

 - A balança, ainda continuo à espera que ma devolvas, já lá vai um mês ...  sem ela bem me deu trabalho a trafulhar... por causa da ASAE ...

 - Esses gostam muito de chatear a malta só para mostrar serviço.

 - Isso isso !  Mas eu dei-lhes a volta cá c'uma pintarola que nem imaginas !

 - Imagino pois, imagino que quando foram ver se a balança estava aferida e lhe prantaras um penso rápido.

- Pois pois ! Penso mais depressa do que falo.

 - É sempre um bom método.

 - Descartes nem falava !

 - Esse só pensava, só cogitava.

 - Ya, a esse bastava-lhe pensar... agora por mais c'a gente se ponha a pensar não acha modo de dar volta à vida ...

 - Nem a pensar, nem a trabalhar.

 - Calma aí, o meu primo Horácio tem dado umas palmadas numas seguradoras com uns esquemas que ele lá sabe e tem-se safado bem, e se bem as pensa melhor as faz... há que saber trabalhar diz ele.

 - Mas não te deu a receita pois não ? Deve ser segredo de família.

 - Dar deu, a coisa até é simples, a Luisinha é que nã me deixa meter no negócio, arrendas uns palacetes mobilados à burguesia do norte, mandas lá um avaliador fazer a coisa por alto, a seguir fazes um seguro de tudo e é só dar a palmada e esperar que a seguradora te pague os milhões levados... O Horácio tá rico, até a mulher anda tomando aulas de dicção que ela nem falar sabia e agora é uma senhora, arrendou na Garraia um armazém para guardar o material palmado... e daqui a uns tempos vai vender o que  roubou coitado... escorre-lhe por todos os lados... até já dá mecenato aos partidos...

- Que estavam a dizer de Salazar e do Fidel, quando falarem desse homem desse grande português ponham-se em sentido, não esqueçam que com ele foram quase 5 décadas de "orgulhosamente sós" mas que mantivemos o orgulho, agora desde pretos a chinocas devemos a toda a gente e nada é já nosso. Isto aventou para o balcão a Mariazinha que não se coibia de uma boa intromissão.

- Ora finalmente alguém que me compreende ! Alguém que patilha a minha opinião ! - Regozijou-se o senhor Paulino – E pensar que toda a vida a família me afastou da prima Ermelinda que tinha uma pensão no Beato... casei bem na mesma mas se sou um tipo opinioso a ela o devo ... e nunca lhe fiquei a dever nada ! Saibam vocês que a esses dois há mais semelhanças a separá-los que diferenças a uni-los... Gosto tanto de expressar a minha opinião como de ouvir quem a reitere, bem atirado minha senhora.

- Não há ditaduras festivas, por muito bem que se saiba dançar a rumba ou por muito rum que o fígado aguente. – Disse o Ismael que estava mortinho de bêbado e mortinho por se meter na conversa - Era só, mas é engraçado como se revoltam todos contra Salazar, que nem matou nem metade dos que Fidel "encomendou a Deus" e rezam a um bandido que oprimiu o povo e o fechou na ilha durante mais de 50 anos...

- Amigo Ismael não se deve falar de Cuba nem de Fidel, se não se leu Guillermo Cabrera Infante, o primeiro entusiasta da revolução e o segundo a virar-lhe as costas... Disse a Mariazinha tentando colocá-lo à margem da conversa.

- Sei bem do que falo, em Cuba a merda ta escondida, e nem falaria de Cuba e de Fidel se não tivesse lido esses e muitos outros, Dulce Loynaz, José Lezama, Reinaldo Arenas, Heberto Padilla, e o outro, Camilo Cienfuegos, e Huber Matos e os outros, tantos outros...E já agora diga-me então a senhora quem foi o primeiro ?

- Esses também foram para Miami ? – atalhou o Murta que sofre de um complexo de esquerda velho e apuradíssimo.

- Não, foram fuzilados alguns e exilados outros pelo teu bandido bem amado... – Ripostou o Ismael visivelmente irritado com a intromissão pela esquerda.

- É por estas e por outras destas que virei as costas á nossa esquerda... A mais estúpida do planeta... E que após o 25 de Abril depois de 40 anos de merda ainda acha que o país está bem...  mais valia que o parvalhão do Otelo e os outros tivessem ficado quietos e estaríamos decerto melhor... Portugal não passa dum país de palermas governado por sacanas ! Ferveu a Cilinha encostando-se ao balcão.

- Topem-me isto ! Vociferava o Galhardas espumando dos cantos da boca com a irritação, - A Dívida Pública Portuguesa aumentou num só mês (Outubro de 2016) mais de 12 mil milhões de euros ! E fica tudo quietinho e caladinho.

É este o "grande" sucesso do Governo da geringonça...
Devemos viver num país de palermas, só pode ser !
Topem-me a evolução da dívida líquida:
Dezembro de 2010 : 158.736 mil milhões de € (boletim 04/2013)
Dezembro de 2011 : 170.904 MM€ (boletim 04/2013)
Dezembro de 2012 : 187.900 MM€ (boletim 04/2013)
Dezembro de 2013 : 196.304 MM€ (boletim 04/2014)
Dezembro de 2014 : 208.195 MM€ (boletim 01/2016)
Dezembro de 2015 : 218.093 MM€ (boletim 03/2016)
Setembro de 2016 : 224.307 MM€ (boletim 10/2016)
Outubro de 2016: 236.774.835.815 MM€ (boletim 11/2016).
(Fonte: Instituto de Gestão do Crédito Público)

              - Tomem e embrulhem.... isto não vai acabar bem....

- Olha quem chegou, nina peço desculpa pois só a tinha visto uma vez e precisamente aqui, na igreja do Sr. Paulino ! Por isso no outro dia não a reconheci ! Você nem o véu levava !

- Reconheceu pois ! Perguntou-me: - é a Inês não é ? Tirei-a pela pinta ! – Eu nesse dia já tinha vendido as pitas todas e levados os camelos a passear... O véu era desnecessário.

- Pois o véu, ó bizinha cuidado com esta nina, anda nas aulas de dança do bentre da professora Amélia Mendonza !! sabia ?

- Pois saiba que não ando mas tenho pena porque adoro dança do ventre. E o bizinho da mãe bizinha também gosta ?

- Claro que gosto, ou gostei, na minha idade a musica é outra ! Eu agora gosto muito é de saltos para a mesa e de pulos para a cama !

- Quem é a pequena Baião ? – segredou-me o Ismael dando-me uma cúmplice cotovelada nas costas.

- Uma pequena que conheci há uns anos, tinha um bazar à entrada do Hotel Palestina, aos anos que não a via – respondi-lhe entre dentes. - teve um negócio de dança do ventre mas com a falta de corrente a toda a hora acabou por arrumar as botas... não sei para onde foi depois – acrescentei.

E foi assim com um súbito e despropositado desvio da conversa que me vi livre do esquerdista do Murta, do salazarista do Ismael, do chato e cuscas do Paulino e dos três gatos dele, do Galhardas e da Mariazinha, da bizinha e da filha que diga-se em abono dela e da verdade acabou por pagar a queijadinha, pelo que antes que me pedissem para mudar a rodinha ao carrinho sumi-me pela porta do fundo nem disse água vai nem água vem, deixando-os a discutir o sexo dos anjos precisamente no momento em que entrava pela frente o chato do engenheiro Arcanjo. Sumi-me mesmo na hora H que o tipo é um crava do caraças.

Bom Natal ! 



* ATENÇÃO, NOTA IMPORTANTE - Este texto não é totalmente original, todo ele é constituído por retalhos retirados de um outro texto e de diálogos mantidos pelo autor com outras personagens na plataforma Facebook. O alinhamento, colagem e escolha dos comentários e dos parágrafos que os mesmos vieram a constituir, foi sim alvo duma disposição deliberada e uma escolha criteriosa do autor do texto. Os nomes dos envolvidos foram por cortesia naturalmente alterados. Obrigado.

domingo, 4 de dezembro de 2016

402 - A ESPERA ... por Maria Luísa Baião * ................


Foi ansiosamente aguardada. Todo o meu mundo durante muito tempo girou em volta dessa espera. É verdade que quem espera sempre alcança, mas o tempo, que não passava, e a situação, que nem atava nem desatava. Nunca imaginei que a espera pudesse ser desesperante, ou quase.

Os meus estados de alma alternavam entre o júbilo, a alegria pelo momento aguardado e a tristeza pelo lento evoluir do tempo, esse tempo que quanto mais desejado mais intolerado se tornava. Eu andava já stressada, eléctrica umas vezes e cansada outras, de tanta energia colocada nas coisas, em tudo. E o tempo, e a demora demolindo as minhas resistências.

Sou ágil a pensar e a agir, mas nessa situação, impossível de controlar, tornei-me mesmo agressiva, insuportável, quando não precipitada. Nem as primeiras chuvas, nem o cheiro grosso a terra molhada, realidades que normalmente depositam no meu espírito, como rios extravasando os leitos, um aluvião de paz, me cercearam a emoção vivida. Uma emoção profunda e velha de tanto usada e abusada.


Momentos houve dando por mim intolerante para com o cheiro das flores, os ornamentos, os livros e os discos, e então, nessas poucas e raras vezes, tombei combalida, soturna e infeliz por não chegar esse momento tão ansiosamente aguardado. Na sala todos os móveis me pareciam taciturnos e austeros, escuros. E eu a distanciar-me de mim mesma, numa tentativa de me alhear de toda a situação, absorta na espera e no desespero. E o tempo sem se apressar, parecendo desejar irritar-me, passando em passinhos pequeninos, eu procurando não chorar, aferindo vezes sem conta relógios e calendários, cujas horas e folhas iam caindo de maneira compassada, regular, demasiado tarde para a minha pressa, para a minha ânsia, para a minha circunspecção.


Eu procurando dominar-me e às circunstâncias, eu a inflar-me de calma e cerimónia, enchendo-me de salamaleques para com as amigas e vizinhas, numa sofreguidão de empatar o tempo e esconder a mágoa difusa e inequívoca que não esquecia um momento sequer. Os físicos embirrando comigo, que tudo estava bem, sob controlo, no tempo próprio. E mostravam-me provas e exames, eu alheia a tudo aquilo mirando constantemente o calendário do relógio e fazendo contas de cabeça, enquanto por civismo e deferência debitava frases óbvias, fórmulas de ocasião, odiando-os por terem razão, olhando-os de soslaio e atirando-lhes críticas pensadas por não me enganarem, por não me iludirem, por não me mentirem.

Era errado pensar assim, mas animava-me, trazia-me um conforto sem alívio, e eu, num débito de reconhecimento e consideração sorria-lhes e agradecia-lhes, concordando.

Um dia houve que após a chuva, manhã alta, ergueu-se uma bruma colada à terra, imersa nessa névoa, enterrei nela a minha solidão e tristeza. Coisa pouca, o ritual de cerimónias instalou-se de novo mal saíram os primeiros sinais de um sol quente, afastando as nuvens. Voltei ao formalismo de um funcionário do ministério dos estrangeiros, diplomacia a quanto obrigas, corri as cortinas mas a bruma não voltou, a névoa não voltou, nem me cegou nem fez esquecer. O coração voltando ao ritmo acelerado que se tornara norma, descompassadamente, indiferente à devastação que ele e a espera talhavam em mim.  


A espera, essa terrível evidência de que nenhum recurso me podia livrar e que tive, uma vez mais, de admitir sem contestar, sem protestar, prostrada já ante uma natureza imutável que nunca lograria alterar. Aceitei os factos, foi como se me deixasse conduzir por mão amiga, impregnei-me de uma solicitude afectuosa e, de quando em quando, passava por baixo das narinas um lenço embebido em água-de-colónia.

Lembro-me de, por vezes sentir frio em pleno verão, um frio enorme dentro de mim como se fora de gelo, o estômago sempre contraído, eu apertando as mãos junto ao peito. Colocava então um casaco sobre os ombros, acendia um pauzinho de incenso e esperava. Esperava que o tempo que não passava passasse, que fosse já amanhã, a semana, o mês seguinte, sentava-me no sofá, a minha gatinha no colo, e adormecia com essa esperança que nos desespera.
  

Finalmente chegou o momento ! Todas e todos corremos acossados para ver o milagre ! Fizemos de magos, telefones e telemóveis tiniram e surgiu ouro, incenso, mirra. À nossa frente o milagre, buscando a mama na avidez da vida, muito cheiinha e muito bonitinha, cabelo escuro, comprido, como as mãos e os dedos, olhos pequeninos perscrutando a existência, a novidade, a beleza de ser.

Os pais chamaram-lhe Leonor, e eu tornei de novo a ser quem era. 
  
                        
* Escrita numa quinta-feira, mais precisamente a 19 de Outubro de 2006, às 15:48:13 e publicada por esses dias por Luísa Baião na coluna Kota de Mulher, Diário do Sul – Évora